“O amanhã chegará”. Com essa frase simples, mas marcante, a desenvolvedora estreante Sandfall Interactive busca nortear um experimento ousado: um RPG por turnos com valores de produção geralmente dedicados somente a jogos de tiro cinemáticos. Clair Obscur: Expedition 33 cumpre com louvor essa proposta em todos os seus aspectos técnicos.
Entretanto, esse mesmo Clair Obscur: Expedition 33 adiciona uma camada que ultrapassa a mera definição de produto de qualidade e penetra na definição de Arte, dentro e fora de sua narrativa. O que eu experimentei ao longo dessas dezenas de horas foi um mundo repleto de maravilhas. O que eu experimentei foi de perder o fôlego, sufocar o choro, explodir o riso, um poema multimídia que convida para ser desvendado.

Avante, filhos da Pátria
Em um mundo que parece o nosso, mas não é o nosso, existe uma cidade que parece Paris, mas não é Paris. Essa cidade se chama Lumiére. É o último bastião da raça humana, o único assentamento conhecido. Lumiere e seus habitantes foram separados do continente pela Quebra e agora vivem sob o olhar implacável do Monólito. No Monólito, existe um número colossal pintado de dourado fosforescente. É impossível para qualquer cidadão ser mais velho do que o número pintado no Monólito. Uma vez por ano, todos aqueles que tem a idade igual ao número pintado no Monólito são desintegrados imediatamente. Uma vez por ano, a Artífice acorda, apaga o número anterior e pinta um número cada vez menor.
Estamos em 33 agora. O tempo está se esgotando para os habitantes de Lumiére. Ano após ano, aqueles que estão prestes a morrer se alistam para uma expedição suicida. O objetivo dessa missão é navegar até a Artífice e destrui-la. Nenhuma expedição conseguiu. Nenhuma expedição retornou. Essa é a história da Expedição 33.
Clair Obscur: Expedition 33 não se apressa para nos apresentar seu universo. Os dolorosos momentos iniciais estão ali com um propósito: expor para o jogador todo o peso dessa realidade. São famílias desfeitas, são amores partidos, são tentativas anuais de esperança por um futuro melhor. Como eles dizem para si mesmos: “o amanhã chegará”. O jogador já parte de Lumiére torcendo por seus protagonistas, investido de um propósito poucas vezes visto em outros jogos.

O que a Sandfall Interactive traduz para sua obra é um temor inerente à própria condição humana. Nossos números já estão definidos. Não existe um monólito com esse número pintado de forma explícita, mas a verdade é que o tempo é contado para todos. O que a desenvolvedora busca perguntar é: até onde você iria para garantir que esse número não exista mais? Até onde você iria para derrotar a própria Morte?
Temas muito mais profundos disfarçados de grandes aventuras são uma tradição dos RPGs, principalmente dos JRPGs, a principal fonte de inspiração para Expedition 33. Não são poucos os jogos que colocam personagens tão humanos e frágeis atendendo ao chamado para derrotar forças elementares da própria realidade. Essa ousadia não é exclusiva dos japoneses ou de qualquer outro povo, mas uma vontade férrea de lutar até o fim e triunfar. Porém, poucos são os títulos que conseguem recontar essa história com tamanha maestria. Em nome do coletivo, abrindo mão de si mesmos, a Expedição 33 avança “pra aqueles que virão”.
O estandarte sangrento é hasteado
A força dessa narrativa poderia se perder sem uma preocupação quase obsessiva com os detalhes. É notável que Clair Obscur: Expedition 33 é uma obra de amor da Sandfall Interactive. Para essa história funcionar, eles constroem um universo mágico que encanta desde o primeiro minuto da odisseia dessa expedição. São paisagens deslumbrantes, não apenas do ponto de vista gráfico, de quantos efeitos uma GPU é capaz de processar simultaneamente sem pegar fogo, mas também em sua direção de arte, que busca em todas as Artes a inspiração para construir cenários inesperados.

Lado a lado com os expedicionários e seus aliados, atravessamos lugares de encanto e perigo. Temos então, ruinas da antiga civilização que foi obliterada pela Quebra, em meio a ambientes que desafiam a lógica, a gravidade ou mesmo a sanidade. Exploramos e revisitamos o interior de uma mansão de extremo luxo que será fundamental para compreender essa trama, um quebra-cabeça arquitetônico que vai se revelando aos poucos. Uma estação de trem abandonada no gelo. Os restos de uma guerra colossal travada muito tempo atrás. Um coliseu dedicado à dança.
Aliado a esse choque visual, Expedition 33 ainda traz uma trilha sonora que oscila entre o épico e o melancólico em doses iguais. Tudo isso contribui para construir um título que está perto de ser um dos mais agridoces que já passaram na minha frente. Optei pela dublagem original em Francês (com legendas em Português), para preservar o aspecto cultural de seus criadores, e não me arrependi. Meu domínio do idioma é praticamente nulo, mas sua sonoridade adicionou ainda mais ao glamour da obra, assim como seu distanciamento de minha zona de conforto.
A Expedição 33 vai se aventurando mais profundamente no continente e em seus mistérios. Até mesmo os pontos de salvamento e evolução do jogo se encaixam na forma de contar a história: são bandeiras hasteadas por expedições que vieram antes, aqueles que abriram o caminho. Nessa trajetória, também encontramos diários dos outros expedicionários, assim como cadáveres, muitos e muitos cadáveres. A cada passo, o jogo nos lembra que a missão é uma corrida contra a morte e que a vitória é improvável.

Às armas, cidadãos
Clair Obscur: Expedition 33 traz para a mesa mecânicas de combate que remetem a Sea of Stars, para ficar em um exemplo recente. São jogos com combate por turno, porém, que exigem que o jogador tenha os reflexos certos para reagir aos eventos da batalha. No caso aqui, serão cobrados momentos de Esquiva ou Aparar, para sobreviver ao ataque dos inimigos. Infelizmente, esse é o único ponto baixo em um título que é impecável em todos os outros sentidos. Supostamente, acertar o timing desses eventos produziria resultados mais eficazes para as batalhas. Na prática, errar o timing é uma sentença de morte para a maioria absoluta das lutas.
Então, o que temos é um título extremamente complexo em suas estratégias de combate, com vários parâmetros que podem ser ajustados, poderes que podem ser desbloqueados, vantagens que podem ser customizadas, abordagens que precisam ser calculadas, mas que, na hora do confronto em si, podem cair por terra diante de uma esquiva mal executada.
É possível colocar a dificuldade em modo História, mas isso reduz o desafio a níveis ridículos. Não é nada que uma correção pós-lançamento não possa resolver, porém, fica o aviso para quem esperava um jogo puramente por turno ou onde as ações em tempo real tivessem um impacto menor nos resultados (como acontece em Sea of Stars).

Dito isso, não vou negar que o combate acabou me viciando. Alternava entre os personagens para tentar todas as combinações possíveis, provocava lutas desnecessárias com chefes opcionais apenas para testar meus limites. Ainda que o jogo insista que seja melhor jogado com um controle, como sempre, mantive minha confiança no teclado e no mouse. Não me arrependo, mas admito que meus dedos não tem mais o viço da juventude e pode ser que eu tenha saído de algumas sessões de esquivas no último segundo com dores nas articulações.
Cada um dos personagens controláveis tem suas próprias mecânicas, que poderiam render um jogo inteiro separado. A curva de aprendizado pode ser um pouco íngreme, mas nada que algumas horas de prática não resolvam.
Outro ponto que poderia ser melhorado, mas não chega a ser uma reclamação, é o equilíbrio entre momentos de combate e momentos de diálogos. Clair Obscur: Expedition 33 apresenta mapas com longas sequências de lutas sucessivas, antes de puxar o freio de mão em um acampamento e trazer longas sequências de diálogo. Obviamente, o conceito de equilíbrio pode variar de jogador para jogador.

O dia da glória chegou
Clair Obscur: Expedition 33 surpreende em cada curva de sua narrativa. Há mecânicas novas sendo apresentadas até muito depois de iniciada a jornada. Há personagens de extrema importância apresentados até muito depois de iniciada a jornada. Há hora para chorar, há hora pra rir. Há também hora para ter muitas dúvidas sobre a natureza desse universo. Dificilmente, o jogador conseguirá visualizar para onde esses caminhos seguirão e talvez a chegada seja o ponto menos importante.
Na companhia de amigos inesquecíveis e belamente escritos, o desafio supremo permanece, a ousadia da Sandfall Interactive toma forma e o jogador emerge do outro lado modificado. “O amanhã chegará”.
Prós:
🔺 Narrativa impactante e emocional
🔺 Mecânicas de combate deliciosas
🔺 Visualmente deslumbrante
🔺 Trilha sonora para guardar na memória
Contras:
🔻 Exige mais reflexos do que o marketing prega
Ficha Técnica:
Lançamento: 24/04/25
Desenvolvedora: Sandfall Interactive
Distribuidora: Kepler Interactive
Plataformas: PC, Xbox Series, PlayStation 5
Testado no: PC