O acidente nuclear de Chernobyl, em 1986, é uma cicatriz dolorosa em nossa confiança na ciência, uma mancha vergonhosa no antigo regime soviético e um lembrete brutal dos riscos da energia nuclear. Por tudo isso, ele segue povoando nosso imaginário, 35 anos depois, em documentários e obras de ficção. Se não estava claro no nome, Chernobylite é a mais recente jornada ficcional pelas consequências da audácia humana.
Com esse título, a polonesa The Farm 51 realiza sua obra mais sublime, um sucessor espiritual de S.T.A.L.K.E.R. que, na verdade, transcende sua fonte de inspiração. É um misto de suspense e drama, uma comunhão de elementos mecânicos que oferece uma das experiências mais imersivas que já tive nos últimos anos, causando calafrios e uma sensação pesada de horror cósmico que deixaria Lovecraft orgulhoso.
Pripyat chama novamente
A primeira impressão que me atingiu foi a exuberância do cenário, a intensidade dos detalhes. Em questão de segundos, eu fui transportado para uma das zonas mais misteriosas do planeta, uma abominação criada pelo Homem, um espaço liminar abandonado por Deus. Quilômetros e quilômetros quadrados ao redor da usina nuclear de Chernobyl, em Pripyat, estão agora tomados pelo mato, enquanto estruturas de concreto, vidro e metal antes habitadas por nós agora são retomadas pela natureza, mas também por uma ameaça letal e invisível.
De certa forma, Chernobylite é um retorno. Já estive aqui antes, em uma outra vida, na companhia de stalkers mascarados, coletando anomalias e fugindo de vampiros mutantes com tentáculos na boca. A Zona é ao mesmo tempo um lugar familiar e hostil, sedutor e perigoso. Ainda assim, a The Farm 51 sobe nos ombros da GSC Software e sua franquia S.T.A.L.K.E.R. para mostrar que os ucranianos não tem o monopólio dessa geografia e o mesmo fantasma radioativo pode ser reinterpretado por outros autores.
Assim, Chernobylite nos puxa de volta. Para muitos, pode ser um primeiro contato, um vigoroso primeiro contato que deixará sua marca indelével na imaginação, uma armadilha para aqueles que curtem explorar cada canto de um mapa. A The Farm 51 visitou a Pripyat real em uma missão de captura para um projeto que deveria ser um documentário em 3D, uma recriação virtual da Zona verdadeira e acabou se transformando em um jogo com múltiplas camadas. Foram anos de conversão das inúmeras fotografias tiradas para trazer para os jogadores a reprodução mais fiel possível desse ambiente, ao mesmo tempo que se adiciona uma trama de ficção-científica que respira e amplifica o horror da realidade.
Por cima de todo esse apuro visual, está um prodígio de otimização que não julgava ser possível. Não tenho placa de vídeo RTX, não tenho computador de ponta, é um PC de meio de caminho, surrado, mas fiel, que não aguentaria muitas coisas da atual geração. Entretanto, em Chernobylite, testemunhei com esses meus olhos a The Farm 51 extraindo não leite de pedra, mas ambrosia. Vi efeitos, gráficos, texturas e iluminação que jamais imaginei que sairiam de meu computador, sem engasgos, rodando a 60 frames por segundo. Para efeito de comparação, o AAA Marvel’s Avengers, da gigante Square-Enix, teve uma performance muito pior na mesma configuração, para entregar um visual menos detalhado, em mapas bem menores. O trabalho de código desse jogo é um estudo de caso a ser avaliado por muitas desenvolvedoras.
Esse prodígio técnico nada representaria se não estivesse a serviço da narrativa. O objetivo em Chernobylite é claro: remover você da tranquilidade do seu lar e te carregar para um ambiente que é ao mesmo tempo hiper-realista e fantástico, algo que teria menor impacto se não fosse tão vivo ou se fosse estilizado. Nesse ponto, a The Farm 51 se insere na cena do Leste Europeu, com outros títulos que também fazem questão de trazer locais fidedignos, como 35 MM, In Rays of the Light, a franquia Metro ou mesmo o S.T.A.L.K.E.R. original.
Completando o ataque sinestésico, Chernobylite apresenta também uma trilha sonora que vai do contemplativo ao perturbador, passando pelo espectro melancólico, efetivamente sintetizando em áudio a montanha-russa emocional atravessada pelo jogador. São faixas que induzem um temor do desconhecido com sonoridades bizarras, mas que também transitam pela tranquilidade, para que você tenha um tempo para apreciar a beleza de um dia de sol entre as ruínas. No núcleo dessas músicas, também habita a perene tristeza da jornada de Igor e seu time de rejeitados.
A moça do vestido vermelho
Onde S.T.A.L.K.E.R. trazia um roteiro mais solto, que estimulava mais vivenciar a Zona do que seguir um caminho narrativo, Chernobylite consegue oferecer um foco preciso como um laser, mas retém o aspecto exploratório em sua estrutura mecânica. Sua abertura remete a Silent Hill 2 e não consigo imaginar que seja fruto do acaso: o protagonista Igor Khymynuk recebe uma carta e uma foto de sua noiva, desaparecida desde o incidente de Chernobyl. A partir dessa pista, trinta anos depois do acidente nuclear, ele irá retornar para a Zona de Exclusão em busca do paradeiro de Tatyana. Será ela uma alucinação que surge nos sonhos de uma mente atormentada ou forças que desafiam a compreensão humana estão em ação aqui?
Para desvendar esse mistério, Igor terá a sua disposição dois alicerces: sua ciência e seus aliados. Utilizando um dispositivo que ele mesmo desenvolveu, caberá a Igor localizar pistas no vasto mundo aberto que lhe permitirão reconstruir as cenas do passado, como se acessasse a memória coletiva do universo. Toda essa tecnologia funciona como uma segunda camada de objetivos para o jogador: para encontrar Tatyana, ele precisa encontrar as pistas. Para encontrar as pistas, ele terá uma terceira camada de objetivos, justificativas mais palpáveis para adentrar em áreas da zona e obter recursos ou informações.
Em sua jornada, Igor irá esbarrar em até cinco aliados, que se juntarão a sua cruzada em condições especiais. Cada um deles conta com uma personalidade própria e suas próprias metas, que podem inclusive bater de frente com o que o protagonista busca. Administrar conflitos, gerenciar equipamentos, tomar decisões e preparar sua base de operações constituem mecânicas novas e inesperadas de jogabilidade, que não estavam presentes em S.T.A.L.K.E.R.. Essa multiplicidade em Chernobylite pode parecer confusa inicialmente, principalmente porque apenas arranha a superfície do que pode ser feito no jogo, um título que segue surpreendendo e trazendo novas interações mesmo horas depois do começo. Entretanto, com o tempo, a base se torna estável e uma espécie de lar para você e seus guerrilheiros.
Além disso, esses personagens são mais do que peças arbitrárias, um recurso adicional para o jogador: eles se tornam companheiros, com a profundidade digna de um bom RPG, com direito a várias conversas pessoais e um merecido epílogo que revela o destino de cada um deles após as decisões finais do jogador. Essa integração emocional é vital para apresentar outro aspecto do jogo, que não aparece de imediato: ele tem elementos roguelite e seus aliados irão morrer. Múltiplas mortes. E você também.
A chernobilita, substância enigmática que dá nome ao jogo, está no centro de tudo, assim como Tatyana. Há muitas descobertas a serem feitas. Inclusive um nêmeses que irá perseguir Igor até o fim.
O feitiço do tempo de Chernobylite
Sem dar spoiler, morrer faz parte da experiência do jogo. É apenas na morte que Igor Khymynuk alcança a mais impressionante mecânica de sua jornada. Tudo que já aconteceu, todas as decisões tomadas, elas podem ser alteradas. O destino pode ser refeito, o passado pode mudar e o jogador irá despertar redivivo em uma realidade diferente. Ao contrário de muitos roguelites, a morte é apenas um incômodo em Chernobylite, uma vez que a perda de itens é mínima (ou mesmo não-existente), e tudo que o personagem construiu ou evoluiu continua com ele. Porém, há sempre uma chance de tentar diferente.
Essa sobreposição de versões pode gerar diálogos sem sentido em alguns momentos, mas tudo pode ser interpretado como um efeito colateral da própria fragmentação que está acontecendo na Zona. Mais do que isso, na contradição de Chernobylite está a chave para se obter o triunfo na missão final.
O jogo possui uma rotação de dias. A cada dia, o jogador pode fazer melhorias na sua base, se aperfeiçoar com novas ou melhores perícias, mas também pode realizar uma incursão na Zona, assim como designar aliados para missões em outras partes. Algumas dessas missões avançam a história, mas elas tem um fim. Uma vez que se chegue a esse ponto, tudo que resta é o ataque final. Outro dos (raros) defeitos do jogo é o tempo que leva para se alcançar esse patamar de não haver mais nada para se fazer. Com apenas cinco mapas exploráveis, antes do fim você já conhece cada canto de todos eles e, provavelmente, também já deixou suas estruturas pelo ambiente.
Curiosamente, a missão derradeira pode ser tentada a qualquer momento de Chernobylite. Falhar nela é esperado. Repeti-la é praticamente obrigatório. Estar preparado é essencial. É nesse ponto que as mecânicas e a própria narrativa do jogo se entrelaçam de uma forma que foi inédita para mim. Há uma certa semelhança com o filme “No Limite do Amanhã”, mas a analogia não sobrevive a uma análise mais profunda. O que acontece na sequência final de Chernobylite é único dentro da minha experiência.
Além disso, o que eu vi e passei poderá ser diferente da sua experiência, baseado nas escolhas que fazemos pelo caminho. Eu tinha tudo que era necessário para triunfar e, mesmo assim, foi um mergulho nas trevas.
Pela segunda vez em minha carreira de jogador, fui na Zona de Exclusão e voltei. Traumatizado, alquebrado, empolgado, saudoso, uma confusa mistura de sensações de uma travessia que deixará marcas. Chernobylite é um convite a uma outra realidade, uma janela aberta para um jogo impressionante.
Prós:
🔺 Atmosfera profunda
🔺 Gráficos extremamente otimizados de cair o queixo
🔺 Múltiplas mecânicas que se complementam
🔺 Final muito bem executado
Contras:
🔻 Um pouco mais longo do que precisava ser
🔻 Confuso, em alguns momentos
Ficha Técnica:
Lançamento: 28/07/21
Desenvolvedora: The Farm 51
Distribuidora: The Farm 51
Plataformas: PC, PS4, PS5, Xbox One, Xbox Series
Testado no: PC