A desenvolvedora Crystal Dynamics recebeu uma missão de peso: tentar repetir nos jogos eletrônicos o mesmo sucesso multibilionário que os maiores heróis da Marvel tem nos filmes. Reunidos nos quadrinhos em 1963, o supergrupo hoje protagoniza três das maiores bilheterias dos cinemas de todos os tempos, incluindo a primeira posição. A responsabilidade era gigante com Marvel’s Avengers.
A desenvolvedora entrega uma fábula magistral sobre uma fã adolescente que conquista seu lugar nesse Olimpo de novos deuses. Entretanto, Marvel’s Avengers comete falhas em alguns aspectos técnicos e revela que seu desenvolvimento pode ter sido confuso demais ao tentar ser muitas coisas para muitos públicos ao mesmo tempo.
Era uma vez…
… uma fã de carteirinha dos Vingadores, chamada Kamala Khan. Ela é o motor que impulsiona a campanha do jogo inteiro e, provavelmente, o maior acerto da Crystal Dynamics em Marvel’s Avengers. Ela representa aqui cada um de nós, fãs dos personagens, e seu olhar deslumbrado dará a tônica da aventura. A personagem tem simpatia para dar e vender. Confesso que esse foi meu primeiro contato com a jovem Miss Marvel e o encanto foi imediato.
Kamala abre e encerra a narrativa com uma inocência ímpar e um tom entusiástico. Logo no começo, é ela que controlamos em um longo tutorial em um evento para celebrar os Vingadores. É uma feira dedicada aos heróis, com estandes, atividades e encontros inesperados (ou nem tanto). Essa abordagem será fundamental para o resto do jogo: Marvel’s Avengers é uma celebração da iconografia do maior supergrupo da editora e a bajulação não encontrará limites. Cada um desses símbolos será tratado com uma devoção quase religiosa ao longo da trama e Kamala é sua profetisa.
Essa dinâmica não é nem de longe inédita na cultura pop. Colocar um novato no foco da narrativa é uma forma testada e aprovada de apresentar gradativamente as nuances de um determinado universo. É por isso que Frodo é apenas um aldeão que vai descobrindo aos poucos a vastidão da Terra-média. É por isso que Luke Skywalker é um fazendeiro do planeta mais esquecido da galáxia antes de conhecer algo muito maior. Ela é muito bem executada aqui e Kamala Khan se torna nossa janela.
Faltou à Crystal Dynamics a coragem de batizar o jogo de Marvel’s Kamala Khan, porque o foco é indiscutivelmente esse. A relação de importância é ainda mais perceptível em mapas que parecem projetados para serem explorados por suas habilidades especiais de se esticar e saltar, como se o projeto tivesse nascido de uma tentativa de replicar as dinâmicas de Marvel’s Spider Man.
Entretanto, esse ainda é um jogo dos Vingadores. Um terrível incidente cinco anos atrás, que testemunhamos literalmente de camarote, separou os heróis e dividiu a opinião pública sobre a importância e a ameaça dos superseres. Entra em cena outra ferramenta narrativa: a reunião de grupo. Investigando a tragédia, Kamala descobre fatos que podem mudar tudo. Além disso, uma nova força se estabeleceu no comando da sociedade: a corporação sinistra AIM está prestes a transformar a América em um Estado totalitário com planos malignos.
Essas são as desculpas perfeitas para mergulharmos no destino de cada um dos Vingadores e termos a chance de controlá-los individualmente. Nesse ponto, o jogo comete duas falhas relativamente graves de design. A primeira é que a aventura se dedica pouco aos indivíduos, explorando-os apenas em missões paralelas que são opcionais. Não se percebe o esmero que tivemos, por exemplo, em Mass Effect 2.
O segundo equívoco é mecânico: evoluímos somente o personagem que controlamos. Uma vez que Kamala Khan tem destaque ao longo da campanha, ela avança a passos largos, enquanto outros personagens não acompanham. O resultado é que o jogador pode se sentir compelido a seguir utilizando-a nas missões multiplayer, o que só amplia a diferença. Essa não é uma falha exclusiva de Marvel’s Avengers, vale dizer: ela é cometida por vários RPGs, desde que o mundo é mundo, e Pokémon está aí para não nos deixar mentir.
No confronto final, no longo confronto final, temos a única oportunidade do jogo inteiro de alternarmos entre todos os Vingadores. Essa deveria ter sido uma abordagem desde o primeiro momento em que passamos a ter mais de um na equipe, mas a Crystal Dynamics emprega somente na última sequência. Apesar disso, alguns personagens recebem meros minutos de ação, com funções aquém do seu potencial. Eu não acreditei no papel que deram para a Viúva Negra nesse momento… Ainda assim, essa missão consagradora demonstra a grandiosidade que talvez nos aguarde em expansões de história.
Vingadoidos
Afinal, qual é o público de Marvel’s Avengers? Essa é uma pergunta que deve ter aparecido na mesa de desenvolvimento da Square Enix e certamente não encontrou uma resposta satisfatória. Ao tentar agradar gregos e troianos, o jogo quase perde seu rumo.
Por um lado, temos aqui a formação clássica do grupo nos filmes. A tentativa de ligação com o Universo Cinematográfico da Marvel é evidente. Na dublagem brasileira, os responsáveis pelas vozes de Thor Odinson e Tony Stark são os mesmos do cinema. Em contrapartida, a Crystal Dynamics se afastou do visual dos atores, o que certamente impactaria muito no licenciamento. O resultado final não tem identidade própria para chamar de seu, mas tampouco emula plenamente o UCM, ficando em um meio termo que é quase um cosplay.
Essa distorção se reflete ainda na tradução do jogo para nosso idioma. Enquanto os Vingadores são chamados de Vingadores há décadas por aqui, nas revistas e também nos filmes, a Square Enix manteve o original Avengers. Essa estranheza aos ouvidos se repete com Iron Man, Black Widow, AIM (IMA, ou Ideias Mecânicas Avançadas, no Brasil), Abomination e Taskmaster. A única exceção é o Capitão América, que manteve seu posto militar em português mesmo.
Quem vem dos filmes procurando familiaridade deve estranhar Kamala Khan, que não foi introduzida ainda no UCM (tem série em live-action prometida para o Disney+). Felizmente, o jogo realiza um excelente trabalho ao apresentá-la. Por outro lado, fãs dos quadrinhos irão estranhar a origem de MODOK e a completa ausência de mais referências, sejam vilões clássicos ou qualquer lugar icônico das revistas.
A proposta da Crystal Dynamics é entregar um “game as service”, nos moldes de Destiny, Warframe, The Division ou o fracassado Anthem. Porém, adiciona uma campanha de doze horas que funciona como uma porta de entrada quase obrigatória para o modo multiplayer. Há avisos claros que começar a chamada Iniciativa Avengers antes de completar a história implica em spoilers e posso atestar que são alertas verídicos.
Desta forma, Marvel’s Avengers mistura missões que foram claramente pensadas para serem genéricas e para vários jogadores no meio de missões que são mais condensadas e focadas em enredo. O contraste soa estranho.
O combate mais uma vez se inspira no trabalho da RockSteady e sua série Arkham. Há movimentos de ataques leves e pesados, bloqueios e contragolpes, inimigos com escudo que você precisa pular por cima e assim por diante. Contudo, aquilo que funciona com um personagem humano como o Batman soa esquisito com uma montanha de selvageria como o Hulk. Por que o golias verde precisa saltar por cima de um inimigo para quebrar um bloqueio? Nas missões iniciais, quando temos tão somente um personagem e, quando muito, um aliado, a profusão de inimigos na tela impede estratégias rebuscadas de combos e bloqueios e o que reina é o bom e velho esmagar de botões com algumas habilidades no meio.
Marvel’s Avengers então se perde em seguir o líder das adaptações de jogos de heróis e acaba falhando naquilo que deveria brilhar: entregar a sensação de força que os “heróis mais poderosos da Terra” deveriam emanar. Na trama, é apresentada uma justificativa para o Hulk não estar no ápice de sua performance. Porém, a Crystal Dynamics esquece de oferecer explicações similares para todos os outros heróis e, mesmo quando a narrativa que colocou esse obstáculo traz uma solução para o Hulk, essa mudança nos fatos sequer é mencionada. O combate se torna mais potente à medida em que os personagens evoluem, é claro, mas aí pode ser tarde demais para uma fatia considerável dos jogadores.
O próprio modelo de negócios do título é contraditório. Cobra-se o preço de um título AAA e ele realmente entrega uma experiência desse nível. Ainda assim, há componentes de loja virtual que são empurrados sem nenhuma cerimônia para cima do jogador.
Em dado momento, mesmo com minha base em frangalhos, com fiação exposta, escombros e caixas empilhadas, um operativo da SHIELD abriu uma loja e pediu que eu comprasse itens cosméticos, ao ponto de praticamente chamar o jogador de muquirana se ele fecha a tela sem comprar nada. “Não vai me ajudar no cafezinho?”. Outro vendedor, um robô reprogramado, afirma que sua felicidade emana de vender coisas para o jogador. Crystal Dynamics parece passar o pires em um jogo que não é barato, nem gratuito, como seus principais competidores no mercado.
A aventura continua em Marvel’s Avengers?
O que nos leva ao componente mais, digamos, duradouro de Marvel’s Avengers. Terminada a campanha, o que aguarda o jogador? Missões repetitivas e a eterna busca pelo equipamento definitivo ou pelos mimos desbloqueáveis.
É possível entregar um volume aceitável de missões que segurem o jogador por tempo suficiente no serviço sem abrir mão da qualidade do roteiro? É uma tarefa quase impossível, mas títulos como os já citados Destiny e Warframe se destacam ao apresentar novidades que vão além do arroz com feijão das tarefas de rotina, do perpétuo “grind”. As missões paralelas de cada herói em Marvel’s Avengers sofrem uma queda de qualidade em relação à trama principal mas ainda sustentam mais algumas horas de imersão.
Quando chegamos no genérico, Marvel’s Avengers decepciona mesmo. A falta de variedade de cenários e inimigos, que já era visível na campanha, se torna gritante quando contemplamos a ideia de refazer essas missões de novo e de novo. Aparentemente, há apenas quatro cenários em todo o jogo: as montanhas de Utah, uma floresta que pode ser em qualquer lugar do mundo, ambiente urbano norte-americano e as bases da AIM, que são todas iguais entre si. E dois tipos de inimigos: robôs e soldados da AIM. Se a Crystal Dynamics tem planos para uma longa vida útil para seu título, é melhor planejar muito mais cenários e diversidade de oponentes, de preferência visitando o amplo leque de vilões de seis décadas de quadrinhos.
Para complicar a situação, o sistema de seleção de missões não é nem um pouco intuitivo. É difícil seguir uma cadeia de mapas que estejam conectados por uma subtrama, algo que deveria ser fluido, mas não é. Ao ponto de eu realizar uma missão desnecessária durante a campanha em dado momento e não saber para onde ir com a SHIELD em outro. Acompanhar os desafios diários e semanais tampouco é facilitado.
O equipamento evolui a conta-gotas, por mais que o loot pareça abundante. A maior parte dos itens irá oferecer bônus que beiram o microscópio. Porém, como o limite de nível de personagens é 150 (eu cheguei em 18), torço para que haja itens mais interessantes ao longo do caminho para aqueles que tiverem a paciência necessária.
Os mimos cosméticos são uma vergonha. Você pode colecionar capas de revistas, mas não são edições completas ou mesmo prévias. Também consegue desbloquear etiquetas, que tomam o lugar do bom e velho avatar de personagem. Marvel’s Avengers também tem a malandragem de esconder emotes e animações de finalização por trás das mecânicas de grinding e/ou compra de créditos.
Por último, talvez o mais frustrante: o desbloqueio de skins de personagens. Era de se esperar que, com 60 anos de histórias, os jogadores tivessem acesso a visuais icônicos, mas isso não acontece com quase nenhum personagem. É frustrante demais perceber que o Homem de Ferro, que troca de armadura quase todo ano, tenha a sua disposição skins irreconhecíveis. Enquanto isso, a vasta maioria dos visuais oferecidos para todos os heróis são variações de cor, o famoso “recolor”. Considerando o que Overwatch e Warframe vem realizando há anos, parece preguiça.
Com um preço de entrada elevadíssimo, a exigência de sistemas parrudos (no PC), sem crossplay, pouco incentivo a continuar jogando, as chances de Marvel’s Avengers como um serviço continuado parecem baixas. Isso talvez explique a dificuldade para se encontrar companhia com o sistema de matchmaking. Em minha experiência, após várias tentativas e longas esperas frustradas, consegui jogar somente uma vez com outro jogador.
Avante, Marvel’s Avengers!
Não é fácil carregar o desafio de lançar um jogo como serviço nos dias de hoje. A Bioware aprendeu essa lição a duras penas. O primeiro The Division também veio cercado de expectativas e só conseguiu se tornar uma experiência memorável a partir do segundo título. Ousar nesse modelo e ainda ostentando uma marca adorada por milhões em todo mundo se provou ser um objetivo quase inalcançável.
Analisar um título desses tampouco foi fácil e, se você leu até aqui, sou grato pelo fôlego. Sua nota final flutuou ao longo de minha experiência. O deslumbre inicial provocado pelos primeiros momentos de Kamala Khan foram sendo dilapidados pelos erros, pela repetição e também pelos bugs. Como se as decisões equivocadas não fossem um problema grande o bastante, o jogo tem bugs e crashes, incluindo inimigos que desaparecem e impedem que você conclua a missão.
A batalha final é uma montanha-russa que sintetiza Marvel’s Avengers. Vi ali o potencial pleno do que o jogo pode ser com a equipe completa. Porém, também fui assustado por lutas cansativas e fórmulas batidas, como destrua X geradores ou elimine todos os inimigos em volta de um perímetro. Fiquei extasiado pela interação entre os heróis, genuinamente capturados em cena, para logo em seguida testemunhar o áudio do jogo revertendo para o inglês sem aviso. Então, veio o extraordinário clímax e o grande epílogo, que me fizeram acreditar novamente e vibrar como o fanboy que não escondo ser.
Com a mente acalmada, refleti sobre os problemas do jogo, mas também sobre o que sua história representa e o que a Crystal Dynamics pretendia. É um bom jogo. Não o jogo definitivo dos Vingadores, ou Avengers, ou sei lá que nome eles querem dar para o grupo. Porém, é possível que aquela chama que arde no olhar de Kamala Khan brilhe mais uma vez e os próximos meses ou anos possam transformar esse começo confuso naquilo que deveria ser.
“Houve uma ideia de reunir um grupo de pessoas notáveis, para ver se poderíamos torná-los algo mais”, nas palavras de Nick Fury. O futuro dirá se a ideia dará certo.