Nostalgia da infância é um dos sentimentos mais pungentes que nos perseguem desde o início da vida adulta até o ocaso de nossos dias e não é fruto do acaso que ela esteja presente em tantas obras ficcionais que tentam resgatar aquela inocência perdida, aquelas amizades aparentemente eternas, aquela sensação de que o futuro nunca virá. Esse é o tema escolhido pela The Voxel Agents para ser a espinha dorsal de sua primeira obra madura, após vários títulos casuais.
Ao sentimento, a desenvolvedora agrega uma mecânica de manipulação do tempo que se encaixa como uma luva na temática: a memória, esse sistema não-linear que restaura eventos e lugares a partir de fragmentos não necessariamente sequenciais aparece em The Gardens Between em sua melhor metáfora. O que não dizer que estejamos diante de um jogo memorável.
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Sem diálogos ou palavras e uma dupla de protagonistas que estão no limiar da transição entre a infância e a adolescência, The Gardens Between começa sem dar explicações e segue daí em uma história que não é uma história, mas uma sucessão de lembranças encadeadas que são recontadas sem muita ordem ou lógica. Se outros jogos são prosa, esse aqui é pura poesia, não algo para ser explicado, mas sentido.
Entretanto, nessa ânsia por construir uma narrativa universal e minimalista, The Gardens Between perde sua capacidade de prender o jogador em sua atmosfera. Essas duas crianças, vizinhos e amigos (ou vizinhas e amigas), tem seu gênero deixado em segundo plano, assim como seu carisma. E seu universo, formado por ilhas surreais que remetem a momentos na vida delas, para de surpreender logo em suas primeiras horas.
Você irá conhecer um vislumbre do dia em que um dos protagonistas chegou na vizinhança, o dia em que o casaco de um deles quase caiu em um bueiro ou as tardes de atividade para construir a casa na árvore que lhes serve de conexão entre as ilhas. Certamente, um ou mais desses cenários será familiar a cada um de nós, mas peças de quebra-cabeças soltas não são a imagem completa e o encanto não se estabelece como deveria e logo estamos a caminho de outra ilha para repetir a mesma peregrinação.
Feitiço do tempo
Se a história, ou a falta dela, não empolga, resta à mecânica um dos trunfos do jogo. É difícil explicar em palavras, mas o vídeo acima pode ajudar: em The Gardens Between você não controla as personagens principais propriamente, mas o tempo. Elas caminham pelo cenário, não exatamente no mesmo ritmo, e você pode avançar ou retroceder essa jornada. Alguns elementos de cada mapa permitem que outras áreas tenham seu tempo e seus eventos manipulados separadamente, então seu cérebro irá demorar um pouco para se acostumar não apenas com o fato que o tempo não é linear no jogo como também ele não é o mesmo para todos os seus elementos. O resultado desse nó lógico são puzzles singulares, que exigem raciocínio e paciência.
Para um título que gira em torno de lembranças, a repetitividade é incorporada às mecânicas para o bem ou para o mal. O infame backtracking, tão odiado em outros jogos, aqui é uma necessidade: você terá que repetir várias vezes várias cenas até que todos os elementos e seu “tempo” estejam alinhados para a solução do mapa. É refrescante para o cérebro porque você está resolvendo os problemas, mas desgastante porque depois que você já encontrou a solução é preciso executar todas as idas e vindas na sequência certa e isso demanda uma farta dose de déja vu.
Essa intrincada repetitividade por design evolui a conta-gotas ao longo da jornada e apenas alguns novos truques são revelados aqui ou ali. Isso não impede que The Gardens Between tenha sacadas sublimes, como a quebra de quarta parede quando interagimos com um jogo dentro do jogo, mas a sensação de mais do mesmo é quase constante.
Por outro lado, a desenvolvedora parece tentar compensar as falhas de uma mecânica que nunca decola como deveria com um visual que envolve, abusando do imaginário infantil e transformando, com bastante imaginação, situações e objetos do mundo real em cenários de fantasia.
A jornada poética de The Gardens Between se apóia na nostalgia para vender um jogo sem enredo. É um caminho válido e certamente executado com louvor por várias outras obras. Entretanto, mesmo com mecânica e atmosfera trabalhando em sintonia aqui, ao contrário dos puzzles aleatórios de Solo, a impressão que fica é que há um imenso potencial desperdiçado nessa aventura. Ou talvez seja mesmo impossível resgatar a infância querida.