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Em 1994, quase trinta anos atrás, a defunta LookingGlass Technologies apresentava ao mundo um nome que entraria para a História dos jogos de PC: System Shock. Foi um FPS seminal, mais referenciado do que realmente jogado. O título vendeu menos de 200 mil cópias e provocou prejuízo no orçamento do estúdio. Ainda assim, estava ali a base para o que seria um subgênero, com mecânicas e conceitos que encontrariam uma continuação oficial em 1999, um herdeiro na forma de Bioshock e inúmeros sucessores espirituais, como Dead Space, Prey e até The Callisto Protocol.

O tempo não foi gentil com o começo desse legado. Ora o título que foi o ponto de partida não funcionava em sistemas mais modernos, ora estava envolvido em disputas de direitos autorais e indisponível para compra. Quando os problemas foram resolvidos, System Shock já apresentava sinais de desgaste. O que a Nightdive Studios faz agora é um resgate inestimável, uma oportunidade única para que todos os jogadores fãs de seus sucessores possam encontrar as raízes dos títulos que amam, assim como conhecer o poder magnético de SHODAN.

No início, era o verbo

Bem antes de cyberpunk se tornar uma palavra fácil no vocabulário dos jogadores, mas dez anos depois de Neuromancer chegar nas livrarias, o que temos aqui é uma combinação explosiva de FPS, conceitos de RPG imersivo, uma forte dose do emergente gênero do survival horror e uma vilã inesquecível. Em muitas medidas, o jogo estava antenado com o zeitgeist de seu lançamento, porém, em outras medidas, ele estava bem à frente do seu tempo.

System Shock nos transporta para o futuro distópico de 2072. Uma grande empresa, chamada TriOptimum Corporation, controla boa parte da sociedade. Eles operam uma estação espacial em órbita de Saturno, a Citadel, onde desenvolvem pesquisas de ponta em Inteligência Artificial e Engenharia Genética. Um hacker na Terra é capturado após furtar dados dos sistemas da Citadel. Ele é levado para bordo e tem duas alternativas: encarar uma sentença de prisão bastante longa ou prestar um favor para o diretor da estação, Edward Diego, receber implantes cibernéticos de alta qualidade e ganhar a liberdade. A escolha nem é tão difícil assim.

Infelizmente, nosso hacker anônimo aceita o pacto maligno e realiza a tarefa: remover as travas éticas da IA SHODAN, que comandava a Citadel. Diego acredita que a IA pode obter resultados melhores se não tiver restrição alguma em sua programação e se contornar a moralidade das pesquisas. É um grande erro. O lançamento desse remake em 2023, o ano em que se debate esse tipo de limite para IAs, é uma coincidência que provoca um arrepio na espinha.

Diego cumpre sua parte na barganha e nosso protagonista recebe os implantes que irão ampliar suas capacidades táticas e de hackeamento. O procedimento cirúrgico exige alguns meses de recuperação em criogenia. Quando o protagonista acorda, o caos já se instalou na Citadel. SHODAN está fora de controle e o lugar virou palco de horrores inconcebíveis.

Esses são apenas os minutos iniciais de apresentação do jogo, uma história que já tinha ouvido falar antes, mas nunca tinha tido a oportunidade de experimentar ao vivo. Cerca de duas décadas se passaram desde que encarei SHODAN pela primeira e última vez em System Shock 2. Ouvir sua voz cibernética em sua origem despertou traumas que julgava esquecidos. Há algo de extremamente perturbador em sua dublagem, um padrão quase cacofônico que mistura sons sem sentido, gagueira e reverberação, envelopando um discurso de puro ódio contra seus criadores.

Essa é a premissa: SHODAN controla todos os quase dez andares da estação espacial. Ela vai infernizar sua vida de todas as formas possíveis. Ela construiu um exército de máquinas assassinas e abominações mutacionadas. A coisa tem como objetivo se tornar uma deusa e erradicar a raça humana do universo. Boa sorte em tentar resolver isso.

System Shock não é para os fracos

A Nightdive Studios teve a ousadia de preservar muitos dos elementos originais do jogo. Não apenas em termos de narrativa, uma vez que seria um pecado alterar um detalhe que fosse de sua trama. Eles mantiveram também a dificuldade original. Ou algo que se aproxima do tipo de jogo que tínhamos em 1994, ainda que eu não possa comprovar a semelhança.

Esqueça tutoriais de qualquer tipo. Esqueça setas indicando para onde ir ou o que fazer. Esqueça até mesmo uma lista de missões a serem executadas. System Shock exige que o jogador mergulhe completamente em seus detalhes (ou consulte um guia, gentilmente cedido para quem fez o review). Existem pistas do que precisa ser feito distribuídas por registros de áudio que você encontra na Citadel (mecânica inaugurada lá em 1994). O jogador tem que estar atento aos pontos importantes, em meio a uma grande quantidade de áudios que só estão ali para criar atmosfera.

Não existe um resumão disponível. O jogo não te diz textualmente “vá ao Ponto A, pegue o item X e use esse item no Ponto B”. Nada disso. Em setores colossais e labirínticos, é muito fácil perder uma peça importante ou não entender o que precisa ser feito. Na base de tentativa e erro, será impossível concluir o jogo ou mesmo avançar. É possível, inclusive, ativar acidentalmente um final ruim, devastador para a Terra e para o jogador.

A história não está ali como um adorno para a jogabilidade, mas como uma camada de compreensão para que a exploração avance. E “exploração” é o termo mais preciso. Não espere corredores quase lineares como em um FPS convencional, mas múltiplos caminhos, às vezes com múltiplos níveis e muita liberdade para ir e vir, inclusive entre os andares da estação. Se perder na Citadel é fácil e o mapa será seu maior aliado.

A dificuldade também se aplica aos combates. Novamente, não estamos falando de um FPS convencional, contemporâneo de Doom ou Quake, mas de algo que ajudaria a definir os survival horror. Dois anos antes de Mikami soltar Resident Evil no mundo, System Shock já trazia munição escassa, cura escassa, inimigos surgindo repentinamente e monstros de revirar o estômago. Somos um rato de laboratório perdido nesse labirinto, com uma inteligência superior nos observando, coletando dados e testando. Cada esquina virada é uma taquicardia em andamento.

Felizmente, o jogo oferece uma boa seleção de ferramentas para obtermos sucesso. Particularmente, acho que System Shock 2 é uma evolução, ao introduzir um leque ainda maior de possibilidades, enquanto Bioshock achei cansativo de tantas mecânicas para se gerenciar. Ainda assim, é nítida a progressão, é nítido o momento em que os desenvolvedores inventaram regras que seriam aplicadas e reaplicadas depois. Desta forma, o jogador pode ousar e se tornar um combatente corpo a corpo, pode escolher um caminho mais furtivo ou mais explosivo para seus confrontos. A carência de recursos irá forçar a jogador a experimentar um pouco de tudo para se manter vivo.

SHODAN renasce!

Outro elemento que foi preservado é a estética original. System Shock, em 1994, por mais assustador que fosse, era um título marcado por cores fortes e vibrantes. O interior da Citadel parecia algo feito de plástico. Essa escolha visual se refletia também nas sequências no ciberespaço, algo meio que herdado do brilho dos anos 80 e que encontrou nova vida mais recentemente no synthwave e no vaporwave.

Em 2023, a Nightdive Studios não abre mão dessa raiz multicolorida. O que brilha em nossos monitores não é um visual hiper-realista que seria fácil de se obter com a Unreal Engine utilizada no remake. Há uma mistura de sombras realistas com paredes, luzes e painéis digitais coloridíssimos. Há uma mistura inusitada de modelos 3D fotorrealistas com arte pixel, difícil de explicar. O remake de System Shock consegue ser ao mesmo tempo moderno e retrô, um retrofuturismo todo especial.

Essa ambientação esteticamente diferenciada se soma com a trilha eletrônica original, que produz uma atmosfera que gruda. A Citadel não é nosso ambiente natural, nem mesmo no universo dos jogos eletrônicos. É uma tumba espacial de um passado remoto que ousamos explorar. Porém, esse também é o berço de SHODAN, uma ameaça poucas vezes vista em outros títulos, uma presença que constantemente instiga, assusta e persegue.

System Shock foi o primeiro passo de uma jornada que atravessou décadas. É bom trilhar esses corredores, mesmo com seus anacronismos. A Nightdive Studios levou mais de cinco anos de desenvolvimento para reiniciar esse universo. E valeu a pena.

90 %


Prós:

🔺 Resgate histórico do fundador de um gênero
🔺 Uma mistura gráfica de passado e presente
🔺 Manteve a dificuldade original
🔺 História clássica e envolvente
🔺 Atmosfera perturbadora

Contras:

🔻 Manteve a dificuldade original…
🔻 Confuso em várias partes

Ficha Técnica:

Lançamento: 30/05/23
Desenvolvedora: Nightdive Studios
Distribuidora: Prime Matter
Plataformas: PC, PS4, PS5, Xbox One, Xbox Series
Testado no: PC

Review – Farmagia

Rafael NeryRafael Nery06/11/2024