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A primeira impressão é a que fica? Um mundo pós-apocalíptico inundado pelo aumento dos níveis do oceano não é nenhuma novidade na cultura pop, muito menos nos jogos eletrônicos (a franquia FAR não me deixa mentir). Porém, Highwater consegue entregar uma experiência inusitada, completamente apoiado em seu charme esquisito, em suas situações cômicas e em um combate gostosinho (embora desequilibrado).

O título da Demagog Studio teve lançamento inicial em 2023, para dispositivos móveis (Android e iOS). Sua distribuição foi limitada para assinantes da Netflix, em uma espécie de exclusividade temporária. Um ano depois, jogadores de todas as plataformas ativas na face da Terra podem experimentar também uma aventura despretensiosa e aprender que sobreviver nem sempre é tudo.

Too Much Water

Não foi por falta de aviso, mas a Crise Climática provocou a elevação dos oceanos. O que conhecemos como civilização agora está dezenas de metros embaixo da água em Highwater. Apesar disso, as mazelas sociais não mudaram nem um pouco. Os muito ricos estão seguros e com recursos abundantes em Alphaville, o último bastião de progresso. Rumores indicam que a elite está se preparando para deixar a Terra para trás e fundar Tesla City, em Marte, conduzidos pelos sonhos de grandeza de um bilionário chamado Muskovitch. Qualquer semelhança com fatos e pessoas reais é apenas coincidência.

Nesse futuro, os que tem sorte trabalham como entregadores da Orinoco (uma gigante do varejo com nome inspirado em um rio sul-americano, sem nenhum vínculo com o mundo real). Esses trabalhadores ameaçam greve por melhores condições de vida, enquanto pensam no amanhã. Na contramão desse sistema, estão vindo os Insurgentes, rebeldes armados com AK-47, calça camuflada e pensamento de guerrilha, que pensam em derrubar tudo que existe, mas não sabem o que colocar no lugar.

É com esse senso de humor descoladinho que Highwater nos apresenta Nikos, um jovem que representa o povão. Sua patota é gente como a gente, que está na luta do dia a dia tentando descolar uns trocados, tentando ser feliz e se ajudando uns aos outros. Nikos tem um objetivo em mente: entrar ilegalmente em Alphaville e, quem sabe, pegar carona naquele foguete, se o projeto existir. Nikos acaba então passando por um odisseia (não por acaso seu barco se chama Argo), encontrando e fazendo amigos ao longo do caminho, de ilha em ilha, de resto em resto do que sobrou da sociedade pós-industrial.

Tudo isso é embalado pela presença constante de uma rádio local que traz informações básicas para as pessoas comuns e é a desculpa perfeita para oferecer um pouco mais de contexto nesse universo, mas, principalmente para servir uma trilha sonora agridoce de diferentes sonoridades alternativas.

Nesse sentido, Highwater é quase uma balada hipster, com dois números musicais inteiros encaixados dentro da narrativa. Essas pessoas estão na beira do precipício, seu mundo caminha para a extinção, mas sempre há tempo para uma última dança, uma última festa e a importante presença dos amigos. Em dado momento, “alphavilianos”, Insurgentes e trabalhadores comuns se juntam no mesmo bar e avaliam que o futuro está deixando de existir. Há algo de Umurangi Generation aqui, seja no estilo gráfico, seja na mecânica de fotografia (que é apenas um adendo aqui), seja nessa coragem de encarar o fim olho no olho e rir na cara do destino.

Highwater não é XCOM

Ainda que o jogo seja centrado na narrativa e no amplo leque de seus personagens multiculturais, mecanicamente Highwater tenta ser um jogo de estratégia por turno. É uma decisão estranha, porém, tudo no jogo passa uma sensação de fora do lugar, logo, por quê não?

Com Niko e seus amigos, atravessamos grandes distâncias inundadas, até encontrar uma nova ilha de interesse, que pode ter um simples colecionável, um recurso importante para a equipe ou então uma batalha. Com tantas forças antagônicas no universo, as batalhas são inevitáveis. Pensar nos movimentos e habilidades do seu time é importante, assim como avaliar os oponentes e suas características.

Felizmente, ou infelizmente, Highwater não é complexo na hora da onça beber água. Se alguma luta parece mais difícil do que a média é apenas porque o jogador não percebeu um detalhe do ambiente que desequilibra tudo em seu favor. Uma personagem, por exemplo, pode ser turbinada ao ponto de solar a maior parte dos confrontos, sem nunca encerrar seu próprio turno. E existe uma conquista por descobrir isso.

Enquanto as ilhas e as paisagens em si acabam se repetindo depois de um tempo, os combates continuam sendo bem variados, adicionando novos e inesperados aliados a todo momento, assim como inimigos que beiram o bizarro (plantas carnívoras?). Para quem deseja um pouco mais de substância tática, Highwater pode decepcionar. Para quem só gostaria de passar batido, conversando com os habitantes desse apocalipse, o excesso de pausas para combate também pode decepcionar.

Infelizmente, em dois momentos, a luta não ativou. Os personagens do meu time e os inimigos ficaram parados na tela, sem nada acontecer. É uma leve irritação, porque basta fechar o jogo, abrir de novo e tudo se resolve. Highwater é muito generoso com os pontos de salvamento automáticos.

Ela gostava do Bandeira e do Bauhaus, Van Gogh e dos Mutantes, de Caetano e de Rimbaud

Há algo de Wes Anderson nas figuras que passam pela vida do protagonista. Uma mistura de pessoas estranhas com histórias melancólicas, que acabam apresentando uma palpabilidade maior do que a média nos jogos eletrônicos. Há uma certa latinidade (existe uma música em espanhol no jogo). Há algo de Casamento Grego. Há referências ao poeta Rimbaud, ao filósofo Francis Fukuyama, a Charles Chaplin. Highwater preenche quase todos os bullet points do típico filme de arte que passaria em um festival de cinema patrocinado por um banco, se é que vocês me entendem.

O final dessa jornada não é o tradicional final feliz. Decisões foram tomadas, decisões que dão o que pensar. É uma pena que a Demagog Studio não tenha deixado totalmente em aberto o que acontece depois. Uma vez concluído o jogo, são desbloqueadas duas aventuras adicionais. Uma delas é quase um interlúdio, jogando um pouco mais de luz em determinado momento do que já aconteceu, porém contém relances do que vem depois. É morno. A segunda aventura repete o mesmo erro de revelar demais daquilo que podia ser deixado para a imaginação. As duas aventuras extras não trazem nenhuma novidade mecânica e, em termos de mapas, são apenas sucessões de corredores insossos, que você pode completar no automático em vinte e poucos minutos.

Highwater cativa pela simpatia de seus participantes e seu humor peculiar. Ainda assim, escorrega em alguns pontos, traz uma mecânica de combate qualquer coisa e não sabe a hora de parar de contar sua história. Haverá aqueles que amarão o jogo, haverá aqueles que sentirão que perderam seu tempo.

85 %


Prós:

🔺 Personagens cativantes
🔺 Humor pitoresco
🔺 Trilha sonora impecável

Contras:

🔻 Combate desbalanceado
🔻 Epílogo desnecessário
🔻 Repetitividade

Ficha Técnica:

Lançamento: 14/03/24
Desenvolvedora: Demagog Studio
Distribuidora: Rogue Games
Plataformas: PC, PS5, PS4, Xbox One, Xbox Series, Switch, iOS, Android
Testado no: PC

Review – Liberté

Rafael NeryRafael Nery09/12/2024