Death Stranding. Um nome e inúmeros mistérios. Do mesmo modo como as outras obras de seu criador Hideo Kojima, Death Stranding vem encabulando e intrigando os fãs do famoso diretor oriental. Logo depois de ter sido demitido pela Konami, Hideo Kojima se uniu à Sony, que o ajudou a estrear seu novo estúdio Kojima Productions. Dessa forma, trailers e imagens cada vez mais intrigantes tomavam a internet de surpresa, provando que seu novo projeto estava por vir.
Três anos se passaram desde o anúncio de Death Stranding na TGA. Desde já, os olhos se voltam em direção a informações, imagens e vídeos vazados na internet. Igualmente a outros sites, recebemos a cópia com tempo de sobra para poder absorver e analisar todos os pontos da obra de Hideo Kojima. Já escrevi antes sobre ele, sobre P.T. Silent Hills e até mesmo teorizei sobre os acontecimentos de Death Stranding, mas agora posso compartilhar minhas impressões pessoais acerca desta marcante obra, que talvez supere até mesmo os antigos trabalhos do diretor.
Uma memória fragmentada
Como falar sobre um jogo tão complexo quanto Death Stranding? É realmente uma tarefa exaustiva. Venho martelando como transcrever minha experiência com o título desde que o terminei e ainda assim parece não fazer jus a sua qualidade. Afinal, esta é uma daquelas raras ocasiões onde vemos um produtor trabalhando sem amarras, criando e moldando um mundo próprio. Ainda mais quando temos isso vindo de alguém que sonhava em se tornar um cineasta.
Death Stranding é uma amálgama de tudo aquilo que Kojima já quis criar em um videogame, somado às suas inspirações cinematográficas, literárias e musicais. Do mesmo modo em que se é possível notar ideias novas e inusitadas em suas mecânicas de gameplay, por outro lado é como se enxergássemos um resgate daquilo que já conhecemos dos jogos criados por ele. Death Stranding é um encontro de mundos novos e antigos. De antigos jogadores com uma nova geração, ansiosa pela grande nova revolução. Tal qual Metal Gear Solid foi em 1998, Death Stranding também não será do agrado de todos.
Death Stranding nos mostra um mundo quebrado, repartido e isolado. Após o acontecimento que empresta seu nome para o jogo, o mundo se tornou um lugar “desconectado”. As pessoas, com medo dos grupos terroristas, maníacos e as terríveis E.Ps, se mantém reclusas em suas casas subterrâneas. Logo, são necessárias pessoas dispostas a entregarem mantimentos, roupas, remédios e até mesmo itens de lazer e diversão a essas pessoas através de contratos de entregas. É aí que Sam Porter Bridges, nosso protagonista, entra em cena.
Conhecido como um dos melhores no ramo, Sam é uma lenda viva, capaz de entregar qualquer encomenda, em qualquer lugar. Enfrentando tanto os perigos das E.Ps quanto o dos terroristas, Sam também enfrenta a poderosa e bizarra Timefall, uma chuva capaz de acelerar o tempo naquilo que toca, seja orgânico, mineral ou sintético. Assim Sam irá descobrir que é uma peça muito maior em jogo do que imagina.
Uma maneira de tombar
Assim que cai de sua moto durante uma entrega, Sam conhece Fragile. A misteriosa mulher o ajuda a fugir de um episódio de E.Ps, e após isto ele termina sua entrega e planeja seguir seu caminho. No entanto, é abordado por um funcionário da BRIDGES, que estava a caminho do crematório. No mundo de Death Stranding, os corpos devem ser incinerados logo após a morte. Caso contrário, uma nova E.P irá surgir, e caso a mesma consiga transportar um humano para o limiar entre a vida e a morte, uma enorme explosão, conhecida como obliteração, ocorrerá.
Logo depois de partirem rumo ao incinerador, o caminhão em que se encontram é atingido por uma forte chuva de Timefall. Fora o grande número de E.Ps que surgem, nisso o corpo que estava sendo transportado é absorvido e transforma-se em uma E.P.. Sam assiste imobilizado enquanto o funcionário é puxado em direção a titânica criatura, podendo apenas salvar o Bridge Baby do homem antes que ele seja absorvido pela besta, causando uma enorme obliteração.
A obliteração desolou o local, mas Sam e o B.B sobrevivem ao incidente. Neste momento, descobrimos mais sobre a missão e o passado de Sam. Após o Death Stranding, Sam foi adotado por Bridget, a então Presidenta dos EUA e da subsequente U.C.A – União das Cidades Americanas. Logo depois de se re-encontrar com sua mãe adotiva, além de Die-Hardman e Deadman, Sam é informado que ainda possui um contrato em aberto com a mesma. Sua missão? Re-conectar as cidades, partindo do Oeste ao Leste dos estados unidos, assim religando a população a “rede quiral”.
A princípio, Sam não deseja tomar parte nesta missão, mas após uma segunda volta do incinerador e agora com seu novo companheiro BB 28, Sam recebe a segunda parte de sua missão. Sua irmã adotiva, a qual ele apenas pode ver na “praia”, está esperando ele na última cidade. Dessa forma, Sam recebe o Q-pid, um cordão com placas que possuem equações físicas, capazes de manipular a rede quiral das cidades e reconectá-las à U.C.A. Assim começa uma jornada cheia de emoção, onde laços novos serão criados e antigos serão reparados, em busca de unir novamente uma nação rompida após o Death Stranding.
Aqui por você
Em Death Stranding, a palavra desolação e solidão estão sempre em voga. Sam é uma pessoa que sofre de Afefobia e detesta ser tocado, mantendo sempre distância das pessoas, mesmo daquelas que lhe são importantes. Além disso, quando sobrevive à obliteração logo no início do jogo, descobrimos que Sam é o que eles chamam de Repatriado. Após o Death Stranding, as pessoas descobriram sobre as praias, uma passagem para o pós-vida. Após morrerem, as almas das pessoas atravessam um local chamado emenda até chegarem as praias, mas Sam jamais atravessa a emenda totalmente e com isso sempre volta à vida.
Mas não é apenas Sam quem possui uma dolorosa cruz para carregar. Fragile, Deadman e todos os outros personagens em Death Stranding possuem suas peculiaridades neste mundo envolto em morte e tristeza. Hideo Kojima é especialista em criar histórias emocionalmente poderosas para suas personagens, fazendo com que o jogador sinta diferentes emoções durante a jornada. Um grande espectro abrangente das emoções humanas se abre como um leque ao se experienciar de maneira focada o jogo.
A história de Death Stranding traz muito do que se pode esperar dos trabalhos de Hideo Kojima. Desta maneira, reforço o que havia dito anteriormente sobre este ser um jogo que dificilmente agradará o mainstream dos jogadores. Igualmente a Metal Gear Solid 1, Death Stranding é um jogo que foge do convencional, aplicando um gameplay e história muito fora do convencional. Aqui, cada ação tática e escolha devem ser pensadas e re-pensadas, pois cada uma delas resulta em uma consequência.
Um grande exemplo disto é o próprio transporte de cargas. Death Stranding permite que o jogador acesse o seu mapa todo, se souber onde pisar e quais caminhos tomar. Um passo em falso pode fazer com que Sam caia e danifique a carga, esta que algumas vezes sequer pode chacoalhar muito. Planejar o quanto irá transportar também é uma ótima maneira de sobreviver e ser mais eficaz neste mundo. Se você se sobrecarregar, será cada vez mais difícil chegar ao local e se esconder dos Mulas, entregadores que devido à exposição intensa aos cristais quirais, se tornaram loucos e ladrões de cargas.
Quando os céus se dividem
O gameplay de Death Stranding gira em torno das entregas. No começo, o jogo serve como uma “armadilha” para aqueles que não tem paciência. Realmente um jogo focado em entregas? A questão é que, dessa vez, o game é dedicado em se parecer com um “serviço postal”. Mas como em muitos games sempre vamos a um ponto X, buscamos algo e trazemos de volta para ponto Y, Hideo apenas deixou o processo mais literal em Death Stranding.
No entanto, o jogo ainda possui seus grandes momentos de adrenalina. O jogador demora para poder criar as primeiras armas, focando mais na ação de stealth, para que assim possa se acostumar a desviar dos mulas e das E.Ps. Começando com o laço, que é uma das melhores armas de Sam no jogo, e mais para frente o próprio sangue de Sam, que pelo fato de ser um Repatriado e sofrer de DOOMs – habilidade que permite que o mesmo sinta/veja E.Ps -, pode ferir as E.Ps e as destruir.
É aí que entra outro ponto chave da jogabilidade de Death Stranding: o peso da escolha. A única maneira de se ferir as E.Ps é através de armas que usam o sangue de Sam, ou seja, a cada tiro ou bomba lançada Sam irá perder vida. Claro que existem bolsas de sangue que podem encher novamente a sua barra, mas Sam pode carregar apenas um número delas consigo. O que faz com que quando elas acabem, o jogador fique em um verdadeiro mato sem cachorro, tendo de escolher entre ficar com pouca vida ou fugir.
Matar Mulas também é uma situação complicada, pois como dito antes, no mundo de Death Stranding, cadáveres que não são incinerados se tornam E.Ps. Logo, cada morte causada significa uma nova viagem aos incineradores, o que pode se tornar bem maçante. Cada nova E.P surgida de cadáver é um obstáculo a mais, fora as E.Ps já existentes, os mulas, terrenos traiçoeiros e a ocasional aparição de Higgs, o Homo Demens.
Para acelerar a viagem, Sam pode utilizar escadas, cordas de escalada e até mesmo esqueletos tecnológicos que o ajudam a se mover mais rapidamente ou levar mais peso. Isso pode facilitar o acesso a regiões mais íngremes e até mesmo passar obstáculos como águas profundas e crateras imensas. Mais à frente, é possível criar estruturas como estradas e pontes, facilitando o trânsito de veículos pelo mapa.
Para facilitar a movimentação do jogador pelo mapa, é possível utilizar veículos, facilitando assim o transporte da carga e logo encurtando o tempo de viagem. No entanto, a movimentação dos veículos ainda é um tanto quanto travada e desajeitada pelo mapa. Muitas vezes, tive de abandoná-los pois travavam em pedras, ou então a direção estava mais complicada do que se mover a pé com Sam. Por isto, criar e manter estradas e pontes é algo importante no mundo de Death Stranding.
Deixei você esperando?
Sam possui um ranking de entregador, que irá se elevar de acordo com as entregas feitas, condições do produto e tempo de entrega. Isso serve para, além de ajudar a desbloquear itens, expandir ainda mais a rede quiral, facilitando a criação de itens e diversidade. A rede quiral transmite dados através da matéria quiral, algo semelhante à matéria escura, que também surgiu após o big-bang. A Matéria quiral, no entanto, é responsável por ligar as praias ao mundo dos vivos e “controlar” a passagem do tempo, seja em forma de partículas ou sólida.
Igualmente a uma rede elétrica ou até mesmo à internet, a rede quiral pode transmitir dados e energia em um piscar de olhos. Além disso, com a ajuda dela, é possível ler os chips de memória espalhados pelo mundo afora. Estes chips possuem informações de filmes, músicas, veículos e textos importantes para nosso mundo e o do jogo. Logo, também é possível ver muito do que influenciou Hideo Kojima durante a produção de não só Death Stranding, mas muitos outros trabalhos ao longo de sua carreira.
Death Stranding possui muito do feeling do diretor. Durante o gameplay, uma forte nostalgia de Metal Gear Solid V: The Phantom Pain lavou minha alma em relação ao jogo da Konami. Com um gameplay que tem um “quê” do jogo anterior, tanto em seu modo stealth quanto nos menus de carga, pode-se ver o quão melhor e marcante poderia ter sido originalmente. Também existe um tom de Silent Hill, que eu poderia citar mais aqui, mas isso será algo que deixarei para descobrirem e sentirem por conta própria.
Death Stranding também possui gráficos soberbos, o que é algo que também serve para atrair o público mais ansioso e com pouca paciência. Diversas vezes, somos convidados a sentar com Sam e deixá-lo tirar um cochilo, enquanto observamos o belo mundo de Death Stranding, com seus cenários naturais, abandonados de toda e qualquer interferência humana, sejam as montanhas, campos ou florestas. Tudo é convidativo para um passeio mais calmo e centrado neste silencioso e inocente cenário.
A proposta de trilha sonora é de ponta também. O jogador não conta com um aparelho de som, nem mesmo um media player nas algemas, que servem para ver o mapa, receber e-mails e ler documentos e entrevistas, o que permite uma imersão maior no que está rolando naquele momento no jogo. Constantemente, o silêncio será companhia para o jogador, fora por alguns risos de B.B ou o som do vento e chuva à distância. Mas nos momentos em que a trilha vem, ela acerta o jogador com tudo, trazendo um peso maior para a situação.
Eu continuarei voltando
Mesmo falando tanto, ainda mal raspei a complexidade de Death Stranding. Tal qual Metal Gear Solid 1, este será um jogo divisor de águas. Hideo Kojima realmente conseguiu completar tudo o que disse, e está é a primeira vez que vemos o diretor em seu momento mais libertino de criação. Death Stranding é uma mistura incrível de cinema, com jogos, música e uma mente que vem fermentando uma criação cinematográfica a anos.
A questão é: vale a pena a experiência já que ela é tão diferente assim? Com toda a certeza, não falando de maneira pessoal, mas de uma maneira mais abrangente mesmo. É como ir em sua lanchonete favorita e ver um prato estranho. Você já experimentou tudo no cardápio, mas isso é estranho demais para você, mas se deixar de experimentar, pode ser que esteja deixando passar uma experiência marcante e deliciosa.
Realmente o jogo começa realmente devagar, mas possui as sacadas de Hideo Kojima como em seus antigos títulos, o que deixa tudo mais divertido e nostálgico. Death Stranding é uma das experiências mais marcantes, se não a mais marcante, de toda a minha vida de gamer, me levando de volta àquela tarde chuvosa de Dezembro em 2002, quando joguei pela primeira vez Metal Gear Solid. O mesmo sorriso de ponta a ponta, as mesmas emoções à flor da pele e as mesmas lágrimas passaram pelo meu rosto, neste que é o próximo passo para a evolução de Kojima e os games. Do Homo Sapiens ao Homo Ludens.