Avaliar Atomic Heart não foi uma tarefa fácil. Este “indie” da Mundfish vinha chamando a atenção desde 2017, quando lançaram o primeiro teaser. Com apenas um jogo no currículo, Soviet Lunapark VR, seria essa desenvolvedora russa capaz de entregar um jogo no nível do hype criado? Pois os trailers seguintes só colocaram mais lenha na fogueira. Mas a verdade é que, infelizmente, Atomic Heart oferece uma experiência que começa muito bem e rapidamente perde o brilho, tropeçando a todo momento em suas próprias ideias.
Antes de esmiuçar o game por completo, eis um resumo da história: você encarna o Major Nechaev, um experiente soldado também chamado de P-3, que não bate muito bem da cabeça. Enquanto passeia pelo belíssimo Complexo Tchelomey num pedalinho moderno, o protagonista conversa com a inteligência artificial de sua nova luva, chamada Char-les. Um presente do Dr. Sechenov, de quem segue ordens.
No caminho para encontrá-lo, flutuando por um meio de transporte nada convencional, ele testemunha a mudança no comportamento dos robôs, sendo atacado e derrubado. Após sobreviver à queda, o Dr. Sechenov informa P-3 que um traidor chamado Viktor Petrov hackeou a central do Kollektiv e fez os robôs civis atacarem. Petrov possui os códigos de acesso da central, sendo o único meio de parar os ataques. Seu objetivo é encontrá-lo e trazê-lo vivo para o Dr. Sechenov.
Mistureba de influências
Atomic Heart é o resultado da mistura de conceitos emprestados de vários jogos famosos. Possui forte influência de Bioshock Infinite, com cidades flutuantes, tecnologia retrô e habilidades elementais. Também pega emprestado o estilo das animações cartunescas de Fallout, embora não as use como material didático. Tem a “visão do Batman” (scan que atravessa paredes), um pouco do gameplay do Doom (dash no ar, a roda de armas que abre em câmera lenta), dentre outras influências menores.
Avaliando friamente, o jogo não possui nenhuma característica de gameplay que seja inédito ou que, ao menos, seja utilizado de um jeito novo. Com a luva você pode mover objetos, abrir gavetas e baús pra pegar loot, e utilizar habilidades como congelar os inimigos e disparar uma carga elétrica, esta também usada para ativar mecanismos. Os upgrades são feitos em uma máquina (safada) chamada Nora, que mais parece uma geladeira antiga cujo a inteligência artificial foi programada por um pervertido. Aliás, o primeiro encontro rende boas risadas.
Nora consome os recursos e neuropolímeros que você junta ao longo da campanha. Com ela você também cria, melhora ou desmonta seus equipamentos, desbloqueados conforme você encontra os projetos. O problema começa na interação com essa “loja”, que sempre traz duas opções para escolher: mexer nas armas ou na luva. Por que não trazer uma interface unificada, pra navegar pelas opções através de abas? O visual da lista do arsenal também não ajuda, com caixas que ocupam espaço demais na tela e aumentam o scroll.
Um ímã pra coisas chatas
Acredite, a frase acima é dita pelo próprio protagonista em um determinado momento da aventura. As falas humoradas de P-3 acabam por expressar um tédio real que toma conta do jogo, muito em função do excesso de quebra-cabeças. No início os puzzles são bem legais e criativos, exigindo timing, memorização e raciocínio. Mas chega uma hora que você não aguenta mais destrancar portas pra avançar. Felizmente alguns dos puzzles são únicos, como uma grande maquete que você manipula para rolar uma bolinha de metal por um labirinto até cair no buraco.
Atomic Heart começa empolgante, com uma área ampla para explorar livremente, pra uma hora depois te confinar em um bunker onde passará mais de 3 horas juntando vários canisters pra abrir a droga de um portão – e isso se repete em outra área, com partes de uma robô desmontada. Ok, tem muito combate, inclusive com novos inimigos como um mutante com planta na cabeça (semelhante aos estaladores de The Last of Us). Mas adivinha o que você fará a maior parte do tempo? Sim, resolver quebra-cabeças.
O combate também não ajuda: a munição é escassa e você passará a maior parte do tempo usando armas de combate corpo-a-corpo, como um martelo bate-estacas. O primeiro inimigo apresentado, um robô técnico de laboratório com bigode, aparece em grande quantidade e depois com variações, como um que abre a cabeça pra disparar raio laser, um preto mais resistente e outro que usa escudo e espada elétrica. Eles dão bastante trabalho, então de duas uma: destrua-os com a luva chegando silenciosamente por trás ou corra!
Carniça defumada
Esta frase de efeito é disparada várias vezes por P-3. Não faz sentido pra gente, mas a tradução e dublagem PT-BR estão de parabéns, com adaptações populares da nossa língua. Os diálogos entre o protagonista e a luva dão um alívio cômico muito bem vindo, além de contribuir para o entendimento da história. Se não fosse por isso, a lore se resumiria a acessar terminais pra ler mensagens trocadas entre os funcionários, além de conversar com cadáveres cujo dispositivo neural ainda se encontra ativo e com suas últimas memórias. Conversa de louco, com opções de perguntas e tudo.
“Carniça defumada” acaba funcionando como uma crítica para os gráficos, que sofre com inconsistências. Em um momento tá bonito como carne defumada, noutro tá feio como carniça mesmo. Tá certo que a Unreal Engine 4 tá ficando datada, mas é duro ver um trabalho bem feito em toda uma área para sair dela e entrar em outra que não condiz com o mesmo padrão de qualidade. A diferença chega a ser gritante.
Há decisões de level design que não dá pra entender, como o próprio mapa de mundo aberto. Serve pra ver sua localização atual e acessar câmeras de segurança para olhar por ângulos diferentes, nada mais. Já as salas de descanso, onde você salva seu progresso, são AS MESMAS em praticamente todo lugar. Nem a biblioteca de objetos do jogo escapa da repetição, aplicados exaustivamente em vários locais, quebrando a imersão. Pessoas mortas no chão? Tudo o mesmo modelo, um homem ruivo que muda só de roupa. Raramente se vê uma mulher ou outro modelo masculino. E direto você encontra corpos em poses que desafiam as leis da gravidade.
Performance problemática
Em termos de desempenho, o game segue instável mesmo após um grande update que saiu no dia 18, antes do lançamento. Em áreas fechadas, roda muito bem e com raros engasgos. Já no mundo aberto tá bem difícil conseguir manter nos 60 FPS ou mais. Testei com uma GeForce RTX 3060 na configuração “Atômico” em 2K, com o DLSS 2.0 ligado em “Equilíbrio”, e mesmo assim vi o jogo sofrer pra ficar acima dos 30-40 FPS. Acessar um terminal de mensagens faz a performance cair pra 10 FPS ou menos, vai entender. Testei também configurações mais baixas e não vi diferença significativa. E olha que, por enquanto, não há opção de ray tracing pra pesar tanto no processamento, heim!
Se a performance gráfica não está bem otimizada no PC, imagine nos consoles. Encontrei muitos bugs e sofri com glitches que me travaram em algum canto do cenário, me forçando a carregar o último jogo salvo. E sofri dois crashes aleatórios, esfriando a minha empolgação com o game – que por si só já cansa com as idas e vindas do “ponto A a B” e a quebra de ritmo com os puzzles.
Atomic Heart pelo menos acerta em outras coisas. A começar pelos chefes, que são bem criativos e entregam um combate diferenciado. É legal demais ver o funcionamento de um robô maior, com animações caprichadas e que fazem sentido. Todo robô tem uma peculiaridade interessante, como o Rotorrobô, concebido pra ser um cortador de grama. O game acerta também no design das armas – bem diferente do que se vê nos primeiros trailers – e principalmente na trilha sonora, que alterna entre eletrônico, rock e música russa.
Gostaria muito que a realidade fosse outra, mas Atomic Heart peca em tantos fatores que não dá pra defendê-lo. O hype só piorou tudo, além do marketing vender outra imagem de produto: um FPS frenético, com gráficos de ponta. Não é frenético, muito menos tem gráficos de ponta. E esse trailer com o ator Jensen Ackles (o Soldier Boy, da série The Boys), qual o motivo de colocar criança nele? Não é um jogo violento? Ou vale tudo quanto ao público alvo? Pelo visto, já sabiam que Atomic Heart não entregaria o suficiente. E a essa altura nenhum update salvará o game.