“Acredito que posso ver o futuro, porque eu repito a mesma rotina.” Essas são palavras de Trent Reznor, ditas na canção Every Day Is Exactly The Same do Nine Inch Nails, e realmente acho que elas descrevem a minha experiência (SUBJETIVA) com Returnal, o novo exclusivo de PlayStation 5 desenvolvido pela finlandesa Housemarque, de Resogun e também do excelente Nex Machina. Roguelite (mais pra like do que lite, na verdade), o título surge como uma curiosa mistura de Everspace com Doom, trazendo uma narrativa cíclica que se desdobra de forma econômica ao longo da ação desenfreada.
A maior ousadia aqui, no entanto, está na perspectiva adotada para a ação. Inspirando-se em títulos bullet hell, Returnal ousa ao escolher a perspectiva de terceira pessoa sobre o ombro da personagem Selene, ângulo mais ou menos parecido com o que Control tentou fazer. Já quanto à sua narrativa, o resultado é ligeiramente envolvente, mas acaba ficando sob a sombra de Hades, onde o progresso era sentido a cada rodada bem-sucedida ou fracassada. Aqui as coisas são bem mais repetitivas caso o jogador fique preso em um chefão, por exemplo.
Uma proposta arriscada
A questão é: essa proposta bullet hell funciona nessa perpectiva? A resposta, ao menos para mim, é mais ambígua do que parece. Temos aqui tiroteios muito divertidos e cheios de adrenalina, mas também temos alguns problemas inerentes a essa escolha, como por exemplo o fato de não podermos ver tudo que está ao redor da personagem. Apesar de apresentar uma leve indicação ao redor de Selene, um círculo que pisca a la Simon Genius, é por vezes muito difícil desviar de certos ataques à distância. Existe um motivo para a maioria dos inimigos de Doom se basearem em ataques corpo a corpo.
Falando do aspecto rogue, as rodadas aqui são chamadas de Ciclos. Cada um desses ciclos pode ser muito, mas muito longo mesmo, com pelo menos uma dezena de salas repletas de inimigos sedentos por seu sangue até chegar ao chefão da área, uma fórmula que se repete ao longo de seis biomas diferentes. Durante os ciclos, é recomendado que se explore o mapa a la Metroid, com áreas que dependem de certos upgrades fixos para serem acessadas. Essa exploração, no entanto, pode ser um pouco repetitiva quando já estamos há diversos ciclos tentando passar do mesmo bioma.
Existe um equilíbrio delicado a cada rodada de Returnal, com uma variedade de itens que podem ajudá-lo, mas com consequências diversas. É o caso dos parasitas, dos quais cada um possui um bônus e um ônus, tornando a escolha de assimilá-los no organismo de Selene sempre em uma aposta. Por exemplo, o jogador pode se encontrar indeciso entre assimilar um parasita que aumenta bastante a integridade de seu traje, mas que também aumenta consideravelmente o tempo de resfriamento de suas habilidades, custando segundos valiosos em meio ao combate desenfreado.
Além disso, existem itens malignos que podem ser encontrados durante cada rodada. Estes itens também seguem a mesma lógica de bônus e ônus, mas podem ser purificados caso o jogador possua a quantidade suficiente de Éter, único recurso que não desaparece do bolso do jogador ao morrer. Apesar de serem herdados de partida a partida, ainda assim é preciso tomar cuidado e decidir muito bem quando usá-lo, já que ele não aparece tão frequentemente assim. O Éter também pode ser utilizado em um pilar próximo à nave de Selene em troca de itens e artefatos sortidos.
Desbravar um bioma se torna ainda mais difícil com as áreas em confinamento, que te trancam em uma sala com dezenas de inimigos e só te deixam avançar caso vença todos eles. Isso se torna ainda mais desafiador quando há um pilar de proteção ativo na sala, fortalecendo todas as criaturas enfrentadas enquanto não for destruído. Estratégias como essa são empregadas pela Housemarque para impedir que os jogadores apenas se apressem e corram para a sala do chefão, demandando que cada Ciclo seja devidamente aproveitado e explorado.
A escolha se prova extremamente arriscada, podendo alienar os jogadores mais casuais que esperam em Returnal uma porta de entrada para o subgênero rogue, principalmente sob o preço salgado. Os caminhos até os chefes são longos e trabalhosos, e as armas coletadas pelo caminho nem sempre são boas ou até mesmo diferentes da sua pistolinha tradicional, o que pode se provar extremamente frustrante para aqueles que acabaram de iniciar um novo ciclo esperançosos por uma carabina ou uma escopeta para poder enfrentar o próximo chefão de forma mais satisfatória.
Conforme o jogador mata inimigos sem morrer, ele vai desenvolvendo seu nível de proficiência, que o permite coletar armas de nível superior caso tenha sorte. Os tipos de armas continuam comuns, principalmente no início do jogo, mas um nível mais elevado de proficiência as garante modos de disparo alternativos variados, como balas que ricocheteiam e disparos concentrados, além de bônus diversos de dano ou cadência de tiro. É sempre recomendado que se abra os baús mais à frente em uma rodada, ao invés de quando primeiro encontrá-los, pois isso aumenta as chances de coletar armas de nível mais avançado.
Cada disparo alternativo possui suas vantagens e desvantagens. Os tiros que ricocheteiam, por exemplo, são bastante úteis para a sala do chefão ou corredores estreitos, mas são praticamente inúteis em áreas mais abertas. Um disparo mais concentrado, por sua vez, é excelente para tratar de inimigos mais fortes e isolados, mas tem um alcance afunilado demais em situações em que o jogador se encontra cercado de inimigos menores. Ou seja, absolutamente tudo em Returnal acaba sendo uma faca de dois gumes, honrando a tradição do subgênero rogue.
A dificuldade de Returnal mesmo vem da quantidade de vida que a personagem possui, que é mínima. A barra de health se esvai muito rapidamente, seja quando enfrentamos inimigos fortes ou fracos. E é aí que surge o principal problema de Returnal, ao menos para este que vos escreve: a maneira com que recuperamos a vida da personagem. Diferentemente de Doom e até mesmo Control, cujos inimigos soltam drops de HP incentivando a ofensiva constante do jogador, aqui no jogo da Housemarque os health points são escassos e estão localizados de forma um tanto desorganizada pelo mapa.
Isso acaba tirando o incentivo de lutar a não ser pelo puro propósito de sobreviver. Sei que não é justo exigir de um game a mesma abordagem utilizada por outros, porque, afinal, cada jogo é único, mas não consigo deixar de imaginar que a fluidez da ação seria muito melhor aproveitada caso pudéssemos recuperar ao menos parte da vida de Selene ao partir para a briga. Até porque o ataque corpo a corpo da personagem é poderosíssimo (aqui fica uma dica: SEMPRE use sua espada!). Inclusive imagino que a Housemarque escute certas críticas e introduza novos modos a Returnal.
Aliás, pode-se dizer que a metaprogressão de Returnal é um tanto econômica demais. Fora pelos upgrades fixos, que são desbloqueados ao matar chefes ou explorando, o restante do progresso é constantemente perdido, como os upgrades passivos de health ou itens consumíveis fabricados. A decisão de tornar tudo isso efêmero acaba por tornar o jogo desnecessariamente punitivo em certos momentos. Mas, no entanto, não posso dizer que a escolha da Housemarque é injusta: já foi expresso muitas vezes que Returnal é um game desafiador, então não vá comprar desavisado.
O lado bom de apanhar
Sei que até aqui este texto só pareceu um compilado de críticas, mas não se precipite: Returnal é um baita jogo. Primeiramente, Selene é uma maravilha de se controlar, ágil e por vezes bastante badass (isso quando o jogador aprendeu o beabá da ação). Fora por algumas animações um tanto artificiais, a personagem é visualmente bem construída e fácil de “ler”, ou seja, é bem prático identificar quando um erro foi cometido pelo próprio jogador, não podendo acusar o jogo como injusto ou apelão. Quer dizer, apelão até pode ser, mas você também tem que trabalhar pra vencer.
Segundo, a atmosfera é absolutamente acertada. Com ecos de Prometheus, de Ridley Scott, o planeta Átropos está repleto de vestígios de uma civilização antiga e misteriosa, com monólitos e hologramas marcando cada sala como um local com uma história pra contar. Vale apontar como a trilha sonora de Bobby Krlic, conhecido por seu trabalho em Midsommar: O Mal Não Espera a Noite, contribui para essa sensação estranha de estarmos explorando um local completamente funéreo e ameaçador. Mal espero para salvar e escutar esse álbum quando chegar ao Spotify.
Em termos simplesmente gráficos, o jogo é brilhante. Mesmo contando com uma resolução interna de 1080p (reconstruída para 4K) no propósito de mirar naqueles tão almejados 60 quadros por segundo, a qualidade de imagem ainda impressiona, principalmente quando há efeitos de partículas e vegetação viva em tela. Aliás, é incrivelmente satisfatório acertar os inimigos com a espada e vê-los explodindo com tripas e tentáculos pra lá e pra cá. Já as seções em primeira-pessoa, que ocorrem algumas vezes ao longo da história, são detalhadas e convincentes.
Terceiramente, Returnal vicia. Apesar de apanhar, mas apanhar feio do jogo, continuei com a vontade de voltar e jogar, para quem sabe fazer mais progresso da próxima vez. Essa vontade foi alimentada também pelo excelente uso do controle Dualsense, com seu feedback háptico e gatilhos adaptáveis, tornando a ação extremamente palpável e deliciosa de se experimentar. Mal espero para voltar e apanhar mais um pouco, e depois mais um pouco, até aprender onde errei e aí começar a acertar. O jogo pode ser desnecessariamente punitivo, sim, mas continua sendo um bom jogo.
No fim das contas, Returnal trepida no quesito recompensa, podendo afastar diversos jogadores (como eu) com seus ciclos longos e desafiadores. Contudo, isso tudo é passível de mudança, e mesmo que não mude, ainda existe um belo jogo debaixo destes sistemas hardcore. Pessoalmente, partes da experiência não foram para mim, mas consigo ver uma legião de fãs defendendo o game de seus críticos com paixão e fervor. Este, afinal, é o primeiro grande exclusivo (não remake) do PlayStation 5 nesta nova geração, e a Housemarque fez por merecer o título.