Imagine você, em sua vida corrida de trabalho ou estudo, sem a chance de se encontrar com os amigos para uma boa partida de Dungeons & Dragons, daquelas em que você precisa preencher a ficha do seu personagem e ouvir o mestre falar por horas. Seus problemas acabaram! O estúdio australiano Defiant Development é o grande responsável pela franquia Hand of Fate, que chega aos consoles em uma continuação digna de roubar a atenção dos, assim como eu, aficionados por RPG e jogos de tabuleiro.
A proposta desse jogo é mesclar elementos de Board Games, conhecidos como Role Play, Deck Building, Set Collection, Hand Management, Dungeon Crawler e Dice Rolling em um único título digital, com o Mestre e os eventos controlados pela Inteligência Artificial desenvolvida por esse estúdio independente. Muito termo novo e que você não entende? Vamos falar mais sobre eles, mas acrescente também à fórmula o estilo de combate em tempo real e elementos de roguelike. Pronto! Bora começar a falar o que realmente importa: Hand of Fate 2 já está na minha lista de melhores do ano.
They see me rolling
Não adianta eu ficar comentando sobre a história, ponto extremamente forte e positivo desse jogo, pois ela se desenrola a partir das cartas do tarô, escolhidas inicialmente e conhecidas como Desafios, mas contada de acordo com o seu jogo. Ou seja, a mesma história pode ser vista de diversas maneiras durante as mais de 20 cartas presentes como desafios nessa terra misteriosa que sofre com um governo opressor, exército truculento, barbáries medievais e uma doença que transforma o ser humano em uma espécie de zumbi.
O responsável por tudo isso é conhecido apenas como O Negociador (The Dealer), uma espécie de cartomante, e que vai guiar a sua jornada por esse mundo medieval, tornando-se o Mestre ou Dungeon Master. O jogo inteiro se passa dentro de uma sala rústica, com pouca iluminação e com toda a aventura desenrolada sobre uma mesa velha e acompanhada de um mapa físico volumétrico desdobrado ao seu lado.
A cada desafio escolhido (todas vindas do Tarô como, por exemplo, O Tolo, O Mago, A Imperatriz etc.) você acompanha a jornada do seu personagem, muitas vezes tendo um NPC como companheiro, com parte da narrativa revelada a cada desafio e cartas de encontro do baralho, fazendo com que ela seja contada não-linearmente. Ou seja, nós sempre sabemos como ela começa por conta da escolha inicial, mas dificilmente sabemos o desenrolar da história do mundo e dos personagens dentro de cada baralho construído antes das partidas começarem.
Falando em baralho, essa é a segunda principal característica do jogo: o deck building. Deck, ou baralho, é construído por meio das partidas em cada Desafio. Você libera novas cartas colocadas na mesa pelo cartomante misterioso, viradas para baixo e formando sempre um caminho a ser percorrido pelo token do seu personagem, e após você sobreviver aos dizeres e ações daquela carta que o seu boneco atingiu, ela é sua! Antes de cada partida começar, você terá cada vez mais cartas para escolher e montar parte do deck que será misturado com as novas cartas que o Mestre acrescentar.
Por conta dessa escolha do desenrolar da história através de cartas, mesmo que utilizadas para construir fases, o jogo conta muito com outro elemento importante: o Role Play; a base do RPG acontece por meio de inúmeros textos, além da interação com o Mestre e a interpretação que o jogador precisa fazer dos acontecimentos descritos a cada carta virada. Isso explica muito bem o porque Morgan Jaffit, um dos fundadores do estúdio, resumiu muito bem o jogo ao dizer “uma sala de escritores se aproxima de um game designer”. Utilizando a mesma didática narrativa que um Mestre de RPG precisa para narrar os fatos, já podemos perceber que esse é um título que depende muito da leitura e interpretação, exigindo muito da nossa atenção para que tudo seja aproveitado em sua totalidade.
Para situar visualmente o seu progresso em cada etapa da história, o estúdio procurou no estilo Dungeon Crawler um meio para criar um “tabuleiro modular”, em que as cartas são dispostas e repostas como caminhos a serem percorridos. Dessa maneira, o jogador consegue “andar” pela mesa e escolher sua próxima ação. A cada movimento uma nova carta é revelada e uma surpresa sempre nos aguarda: novos locais, encontro com inimigos, situações que dependerão da sua sorte ou até mesmo itens para você colecionar. A partir dessa premissa básica de movimentação é que temos outros dois pontos complementares ao Deck Building. O Set Collection será responsável por você coletar itens, seja de customização, para cura ou energia, além do Hand Management, que nos obriga a escolher com quais cartas vamos iniciar os Desafios. Tudo isso, ligado diretamente à narrativa, faz com que o fator replay do jogo seja altíssimo, pois dificilmente uma partida será igual a outra e sempre teremos novos cards para ganhar e descobrir. Esse também é outro ponto que me agradou muito, em que os cards só terão suas descrições visíveis após serem utilizados e virados na mesa do jogo. Caso contrário você terá ele em sua mão e coleção, mas sem qualquer informação útil.
O coração das cartas
Hand of Fate 2 surpreende por conseguir evoluir o que foi apresentado no primeiro jogo e complementa a experiência com melhorias gratificantes. Como se não bastasse o conglomerado de sistemas existentes no universo dos board games, a Defiant também conseguiu criar um jogo dentro de outro jogo, ou melhor, um jogo sobre outro jogo. Não controlamos fisicamente nenhum personagem, muito menos seus movimentos, mas para indicar que estamos no controle de suas ações e decisões, esse título preza pelas diversas maneiras para progredir pela história.
Além das esperadas rolagem de dados, você também encontrará uma roleta russa de cartas (imagine pelo menos cinco cartas girando na tela), depender do ritmo e timing correto para acertar um pêndulo no momento exato ou até mesmo escolher uma carta entre cinco delas embaralhadas bem na sua frente. E cada tipo de interação com o jogador é determinado pelo tipo de carta que você alcança no tabuleiro; por esse motivo você precisa invocar o modo Yu-Gi-Oh! do coração das cartas e torcer para que o menos pior aconteça com você! Todas essas são mecânicas que resgatam o universo dos jogos de tabuleiro e de maneira digital dependem da sua interação.
Acredito que, para mim e assim como nos jogos off-line ou analógicos (chamem como quiser), o fator sorte é muito maior do que a sua estratégia. Tudo nesse mundo depende da sua quantidade de vida, que influenciará no combate e nos danos tomados pelas cartas durante a sua exploração, além da comida, que é consumida uma a uma para cada movimento que você fizer em direção à uma nova carta. Ou seja, se você não montar sua estratégia para evitar cartas muito difíceis ou que consigam repor HP e Stamina, já que durante o combate você também perderá energia vital, com certeza você pode morrer apenas por se deslocar pelo tabuleiro ou até mesmo por algum efeito negativo ao virar uma carta nova e com a descrição desconhecida.
Durante os Desafios, nós acompanhamos a investida do exército do Império contra esse mundo, obrigando o povo do Norte lutar ou abandonar seus locais de origem. Essa questão de conflito nos leva para um dos pontos que, no primeiro jogo, dividiu opiniões: o combate. Quando uma carta contendo inimigos é virada, uma animação acontece e todas as cartas são puxadas por um vórtice, que nos leva para uma pequena arena para combate em tempo real. Nesse momento você realmente toma controle do seu personagem e utiliza comandos básicos para lutar contra inimigos e chefões; muito próximo, mas de maneira rudimentar, a jogabilidade lembra bastante Assassin’s Creed e Batman, em que você precisa esquivar ou contra-atacar para desferir seu golpe. O que ajuda bastante e é outra novidade dessa sequência, você pode escolher um entre os quatro NPCs encontrados no jogo (O Trapaceiro, O Vagabundo, O Soldado e O Blacksmith) para acompanharem os combates e auxiliarem com suas habilidades e/ou magias.
O mais legal, além do visual que pode até parecer datado quando estamos em combate – mas muito bem trabalhado na direção de arte que remete à um estilo mais rústico de jogos físicos antigos – é o mistério ao redor de quem é o cartomante e a vingança dele. As cartas de tarô, a história no melhor estilo Dark Fantasy, que parece ter sido tirado de um livro de Terry Brooks, com a magia do mundo de Shannara, com um pouco do estilo mais reflexivo de Neil Gaiman, com o peso das escolhas que você terá que fazer, acompanham todo o mistério e jornada dos heróis. Na verdade, ter a chance de jogar “alguém” jogando RPG e tabuleiro era algo que até hoje eu nunca imaginei fazer e na minha opinião esse é o ponto forte de Hand of Fate 2, pois todo tipo de interação é pensado para você, como se fosse um jogo de role play em primeira pessoa.
Talvez esse não seja um título com apelo para todos os estilos de gamers, mas que deveria ser experimentado por todos nós e aproveitado ao máximo graças à sua incrível capacidade em construir uma história não-linear, sem perder o ritmo em momento algum. E para agradar os brasileiros, o jogo foi totalmente legendado em português e toda a interface do jogo, além das cartas e descrições, estão no nosso idioma. Tudo bem que as falas do Negociador estão em inglês, na maioria das vezes como voice over e pontuando muito bem os acontecimentos do jogo, mas em que momento algum atrapalha por conta da cadência mais densa e um jogo muito menos frenético do que um Need for Speed, em que você corre velozmente enquanto precisa prestar atenção no percurso e ler as legendas por falta de dublagem.