Skip to main content

Algo que muitos jogos independentes (ou indie) tem feito diante de limitações técnicas é apostar na estética de desenho animado. Nem sempre se trata de uma técnica simples ou pouco exigente no processamento gráfico, mas é uma boa alternativa para deixar um pequeno jogo bem mais chamativo e charmoso do que poderia ser.

Cuphead é um dos casos mais ilustres e sempre será lembrado por sua arte, que emula os cartoons dos anos 20 a 30. Outros games recentes também apostaram com felicidade no traço bidimensional: Swords of Ditto, num estilo lúdico que remete a Hora de Aventura, e Sundered, com algumas animações reminiscentes do trabalho do animador Ralph Bakshi.

Com isso, devem se perguntar: por que diabos ainda não fizeram um game 2D que se inspire no Studio Ghibli tão precisamente? Bom, é um trabalho muito mais complexo do que aparenta. Mas, pelo visto, não foi complexo demais para a desenvolvedora dinamarquesa ThroughLine Games, que presenteia o mercado indie com Forgotton Anne. Sem algum resquício de dúvida, qualquer apreciador de animações estará cativado e até mesmo encantado com o polimento visual encontrado no jogo, e felizmente essa beleza não é apenas superficial.

Um mundo inesquecível

Imagem do jogo Forgotton Anne
Um rádio que apresenta um programa de rádio? Isso só se vê nas Terras Esquecidas.

Forgotton Anne tem um ponto de partida curioso. Descobrimos, de maneira criativa, a existência das Terras Esquecidas, um mundo paralelo ao nosso. O local é habitado por seres conhecidos como Forgotlings e aí que está a graça: esses são pura e simplesmente objetos esquecidos no mundo real, mas que ganham consciência assim que entram na nova dimensão. Com saudades de seus donos, a vivência entre os Forgotlings não chega a ser a mais pacífica, levando à ascensão de uma célula rebelde que vem instaurando o caos nas Terras Esquecidas.

Esse caos será erradicado por Anne, protegida e agente do cientista conhecido como Mestre Bonku, que trabalha no projeto de uma ponte interdimensional para que ele e a jovem, os únicos humanos nas Terras Esquecidas, voltem para seu mundo de origem. No entanto, será que isso é tudo? Ou talvez a situação seja mais complexa do que se acredita? Além do mais: quem é Anne e o que ela faz nesse mundo que não é seu? O mistério central e o desenrolar da narrativa são algumas das maiores qualidades de Forgotton Anne – isto é, depois do capricho de seu visual.

É inevitável destacar o quanto o game deve à sua direção de arte, acima de tudo. A atenção aos detalhes agrega tanto à narrativa quanto à exploração, dando uma maior profundidade ao mundo de Anne. Cada canto (animado discretamente em 3D) é tão memorável e charmoso quanto o último, mostrando uma variedade de ideias que é apenas vista em possíveis clássicos. Sim, é mesmo tudo isso. Não gostaria de entregar muitos dos prazeres visuais proporcionados pela jornada de Forgotton Anne, mas ao longo deste review já há prova suficiente de que a ThroughLine não está de brincadeira no que é apenas seu primeiro game.

Imagem do jogo Forgotton Anne
Poxa, pensei que era a sessão de Guerra Infinita…

Como ótima contrapartida à riqueza de detalhes, as animações são minuciosamente compostas, raramente evidenciando movimentos mais rígidos – alguns NPCs não impressionam, mas ainda possuem charme. O esmero visual é tanto que a sensação de novidade demora a passar, já aumentando por si só o valor de replay e aquela vontade de mostrar o novo game às visitas, apenas para impressioná-las. A trilha sonora original é outra joia à parte, acompanhando o ecletismo das imagens e tornando cada seção das Terras Esquecidas mais distinta e memorável, assim como as melodias. Já as vozes dos personagens são geralmente bem-selecionadas e encaixadas, em especial a da própria Anne. Isso amarra Forgotton Anne como um pacote visual e sonoro digno de aplausos, no entanto não devemos esquecer de que se trata, sobretudo, de um jogo.

De volta à realidade

E Forgotton Anne por acaso funciona como um jogo? Sim, razoavelmente bem! O game adota a estrutura de um adventure narrativo, porém com elementos de plataforma e quebra-cabeças que trazem variedade ao decorrer da aventura. Anne possui um aparato conhecido como Arca, que armazena uma energia conhecida como Anima, usada para ativar mecanismos diversos e que pode ser encontrada em frascos e nos próprios Forgotlings, que podem ser destilados com a Arca e consequentemente mortos. Com isso, o jogador terá de fazer algumas escolhas morais, seja para alcançar outra parte do cenário, seja para interrogar um rebelde ou mesmo para conhecer um outro lado da história. Essas escolhas também se refletem em diálogos que surgem ocasionalmente. Apesar de aparentar como uma simples dualidade no início, ao final da aventura há uma boa dimensão de como esse sistema de escolhas é mais flexível do que parece.

As seções de plataforma, por sua vez, são bem menos interessantes. Apesar de competentes, os controles nunca são tão fluidos ou engenhosos quanto poderiam ser, podendo resultar em algumas sequências frustrantes de tentativa e erro. No entanto, ainda há um certo prazer em usar as asas mecânicas de Anne para alcançar lugares mais altos, coletar itens secretos ou resolver quebra-cabeças. Falando neles, os puzzles, assim como os elementos de plataforma, deixam um pouco a desejar em sua simplicidade. Embora não sejam instantaneamente resolvidos, faltou criatividade, principalmente se considerarmos as influências steampunk no visual – o trecho em que Anne deve brecar um trem é o que mais se aproxima de um real desafio, surgindo já na primeira hora de jogatina. Outro trecho, em que a heroína deve distrair um NPC das ações de seus aliados, beira o rudimentar.

Imagem do jogo Forgotton Anne
Aqui de boa, esperando o anúncio de Forgotton Anne 2.

Apesar desses pormenores, Forgotton Anne está destinado aos holofotes pela criatividade de sua visão, enredo e personagens, além do imenso capricho estético que muito provavelmente será o principal atrativo aos novos jogadores. Pode-se dizer também que a ThroughLine adentra alguns temas inesperados e pertinentes, dando estofo à visão que querem transmitir e fazendo valer ainda mais a jogatina. Também enfatizando a profundidade da experiência, ao final da história é desbloqueada uma opção de replay de atos e capítulos específicos, assim como uma nova área na qual o jogador pode acompanhar todos os colecionáveis que encontrou em sua jornada e também uma jukebox com a trilha musical do game, sem contar pontos de interesse que expandem o conhecimento sobre a narrativa. Não são exatamente spoilers: há uma lógica cíclica aqui que me fez lembrar de NieR Automata, envolvendo finais diferentes e elevando a experiência ainda mais.

Mas mais do que tudo isso, Forgotton Anne chega pra mostrar que os indies são definitivamente capazes de encarar um mercado AAA e, mais importante ainda, apresentar novas ideias que ficam na memória e dificilmente saem dela.  É por esses jogos ‘menores’ que meu interesse em games nunca cessa, e a estreia da ThroughLine me faz esperar que 2018 seja um ano espetacular para os estúdios indie. Mérito também da Square Enix Collective, que após distribuir o excelente Octahedron apostou suas fichas em outro game audacioso.