Uma colônia humana em um planeta distante é atacada por forças demoníacas do espaço profundo. As forças de segurança são rapidamente convertidas em servos zumbificados dessa ameaça. Uma única pessoa, com armas pesadas, deve abrir caminho à bala em meio a um enxame de monstros. É DOOM? Está bem longe disso. É o Doom clássico? Está bem próximo disso. É Supplice, uma declaração de amor ao pai dos jogos de tiro em primeira pessoa.
O jogo da Mekworx se insere no movimento pejorativamente chamado “boomer shooter”, que traz características estéticas e mecânicas dos FPS dos anos 90. Entretanto, sua obra vai além da simples reprodução sem alma ou sem talento que alguns títulos dessa cena parecem seguir. Usando uma versão modificada do próprio motor gráfico do Doom original (de exatos trinta anos atrás), os desenvolvedores conseguem fazer um resgate histórico em velocidade, atmosfera, truculência, trilha sonora e tudo mais que constrói um intrincado bordado de nostalgia.
Não estamos mais em Marte
Se, em 1993, Marte parecia um sonho inatingível, agora em 2023 tem bilionário que jura que vai colonizar o planeta vermelho em breve. Portanto, Supplice transfere a ação para o mundo imaginário de Metusalah, anos-luz de distância. A tecnologia de portal de hiperespaço permite que uma poderosa corporação envie funcionários para terraformar planetas longínquos. Infelizmente, forças ocultas provocaram uma interferência no portal e a colônia foi tomada por invasores grotescos.
Zorah Null, nossa heroína, é uma mineradora, o que explica que sua arma primária seja uma broca gigante que causa estrago nos inimigos mais frágeis. “Estrago” é a palavra da vez para o jogo porque um dos elementos que ele acrescenta à formula do Doom original é uma vasta quantidade de sangue e pedaços de corpos, uma evolução que o gênero veria com Blood, a partir de 1997. Como convém à tradição dos heróis de jogos de tiro, não importa como você começa e sim como você termina: uma máquina de matar. Isso vale para mineradoras, para cientistas mudos, ou turistas radicais que precisam derrotar uma ilha inteira de guerrilheiros.
Metusalah é um labirinto. Cada mapa é monstruosamente grande, com camadas verticais e cruzamentos, compensando as limitações tecnológicas de trinta anos atrás. Se os FPS do passado tinham algumas dezenas de inimigos por cada mapa, Supplice tem literalmente centenas, ocasionalmente entregando em uma única batalha a quantidade de oponentes que Doom distribuiria por um mapa inteiro. Há semelhanças com Serious Sam em alguns raros e angustiantes momentos.
Para derrubar esse mar de criaturas, Zorah tem acesso a um arsenal relativamente limitado (se compararmos com as dez armas de praxe de jogos como Duke Nukem 3D ou Shadow Warrior, o clássico), porém poderoso. Não há uma única arma no jogo que não passe uma sensação devastadora, ainda que elas estejam bem espaçadas para serem encontradas.
Todas as armas tem um tiro alternativo que cumpre funções específicas no seu leque de táticas: o tiro alternativo da escopeta é uma descarga potente de três canos capaz de deitar a maioria dos inimigos, porém tem um tempo de recarga lento; o tiro alternativo da metralhadora oferece um zoom que possibilita acertar inimigos bem longe e por aí vai.
Supplice é para os fortes
Um dos grandes erros, na minha modesta opinião, dos “boomer shooters” é oferecer uma experiência retrô com o ritmo moderno. Isso costuma significar o avanço frenético de forças inimigas e a sensação de que o jogador jamais terá paz se ficar parado na mesma posição por mais de uma fração de segundo. Quando, na verdade, boa parte dos jogos de tiro dos anos 90 seguiam fórmulas que permitiam ao jogador antecipar seus inimigos e surpreendê-los, fosse com tiros de longa distância, granadas em esquinas ou armadilhas.
Supplice traz de volta a exata sensação de se jogar Doom, o dos anos 90, não sua recriação hiperativa, mas bem-sucedida, de agora. A sensação de se caminhar com cuidado, porque o inimigo pode e vai se esconder atrás de caixas e recantos da parede. A tática de pegá-los desprevenidos é a grande vantagem da inteligência do jogador contra a IA da máquina. É algo difícil de descrever com palavras, mas algo que eu senti aqui: os músculos cerebrais reativando. Os primeiros níveis de Supplice foram, com o perdão do trocadilho, um suplício. Os níveis seguintes foram como se uma força mecânica do passado tomasse conta dos meus braços, como se um Aquino vinte anos mais jovem pegasse no mouse e dissesse “deixa eu mostrar como a gente fazia, vovô”.
Eu começava a detectar quais paredes iriam se abrir para revelar um ataque-surpresa, eu identificava atrás de quais caixas um inimigo estaria espreitando, eu sabia para que arma trocar na hora certa.
Ainda assim, não é possível dizer que Supplice seja um jogo equilibrado. O primeiríssimo nível pode dar a impressão errada de que será um título fácil. O terceiro nível pode dar a impressão errada de que seja um título impossível. A batalha do portal vai te dar a impressão correta de que você não tem chances… Percebi que tinha mais triunfo em áreas abertas do que em corredores estreitos, mesmo com a escopeta preparada para queimar roupa. O tamanho colossal dos mapas também pode levar a voltas desnecessárias e a ocasional ignorância de não se saber para onde ir.
O som do chumbo grosso
Se for para apontar outro defeito do jogo, então eu diria que o design das criaturas não é dos melhores. É uma equipe de veteranos da cena mod, mas é uma equipe pequena. Reproduzir a inventividade da id Software original lá em 1993, com seus modelos de massinha escaneados, é uma tarefa inglória. Apesar de suas limitações, eu gostaria que a Mekworx desse um pouco mais de consistência para os invasores. Por outro lado, é possível que seja mais de uma força invasora, com origens diferentes, uma vez que algumas criaturas lutam entre si, se você não está no campo de visão delas.
Se o design pode ser melhorado, o mesmo não pode ser dito da trilha sonora. É maravilhosa. Mais uma vez, está aquém do que a id Software conseguiu com Doom, mas nem todo mundo tem a sorte de contar com a lenda viva Bobby Prince para fazer os MIDIs. Porém, a teia musical de Supplice ajuda demais a criar a atmosfera lúgubre futurista do jogo.
E, por incrível que possa parecer, Supplice suplanta sua matriz em um quesito: história. Reza a lenda que Tom Hall escreveu um calhamaço de páginas com todo o lore de Doom, mas John Carmack teria se recusado a usar, argumentando que história em um jogo de tiro tem a mesma função da história em um filme pornô. Magoado, Tom Hall sairia da id Software. Verdade ou não, a Mekworx prova que uma boa trama se encaixa muito bem mesmo em um FPS retrô.
Todo o enredo do jogo é contado em mensagens encontradas em terminais e é completamente opcional. Quem quiser só sair por aí matando, pode sair apertando o botão de pular página e ser feliz. Quem quiser ler cada log vai descobrir os personagens e os bastidores dessa invasão, com direito a luta de classes contra a corporação que está colonizando o planeta, fofocas de escritório, reclamações da galera de TI da colônia e muitos outros detalhes que dão vida a esse universo.
Por enquanto, Supplice tem um único episódio de seu arco (e um bônus). Parece pouco e talvez seja se você não morrer demais, não ler nada e simplesmente largar o dedo em tudo que se move com o peito aberto. Há vídeos de jogabilidade com três horas de duração. Aqui, bateu o triplo disso. Foram nove horas de nostalgia pulsante, em um dos melhores “boomer shooters” que já experimentei.