O gênero do adventure ‘point and click’ já abordou os mais diversos temas e panos de fundo: piratas, o apocalipse zumbi e até uma dupla de animais detetives. No entanto, não lembro de nenhum exemplar recente que tenha abordado temáticas tão maduras quanto as que são discutidas por The Lion’s Song, jogo episódico da Mi’pu’mi Games.
Vendido como um jogo que explora a cena artística de Viena entre os séculos XIX e XX, The Lion’s Song, ao longo de seus quatro capítulos, constrói um mundo complexo e interconectado que desafia descrições. Mais assombroso ainda é que, embora seus protagonistas sejam figuras fictícias, o contexto em que vivem é real e representa um período transformador para o continente europeu e o mundo.
Não é difícil adivinhar do que se trata essa transformação, mas ao colocar o jogador no cotidiano de seus personagens e seus espaços mais íntimos, The Lion’s Song traz uma visão marcante e única da imprevisibilidade da vida. Vamos ao elenco principal: Wilma é uma violinista que trabalha em uma nova composição; Franz é um jovem pintor em busca de experiência e aprovação da alta sociedade; Emma é uma matemática que deve lutar contra as barreiras de gênero para comprovar sua nova teoria; Albert, por fim, é um jornalista que parte em uma viagem possivelmente fatídica, tanto para ele quanto para o resto do mundo. Passando pela cidade de Viena, na Áustria, os quatro cruzam caminhos direta e indiretamente.
Corações de leão
O grande trunfo de The Lion’s Song está em como a narrativa interliga cada um dos personagens, inclusive tematicamente. O simples primeiro episódio consiste em Wilma procurando inspirações para compor sua nova melodia em uma remota cabana nos alpes, onde lida com sua insegurança e desejos secretos. Dependendo das escolhas do jogador e como ele explora as opções no cenário, a melodia de Wilma será ligeiramente diferente, refletindo sua autodescoberta, e surgirá da mesma maneira no episódio seguinte, que traz o também artista Franz em uma luta interna contra suas inseguranças e limitações – nomes comuns também são mencionados em ambos os episódios, criando quase que de imediato a sensação de estarmos interagindo com um mundo vivo.
A conexão mais surpreendente e satisfatória, no entanto, é feita entre o segundo e terceiro capítulos, que se desenrolam paralelamente (enquanto o primeiro e o último os precedem e antecedem, respectivamente) e permitem explorar o mapa de Viena. Trata-se de um simples detalhe que o jogador mais atento deve antecipar mas ainda assim apreciar, além de ser uma maneira de introduzir uma nova mecânica que enriquece as possibilidades de interação com a cidade. Sei que estou sendo bastante vago nas descrições, mas acredite: a graça está em se deixar surpreender pelas pequenas grandes coisas que The Lion’s Song oferece.
Condizente com a simplicidade das mecânicas de apontar e clicar, a estética pixelada é basicamente tingida de sépia e bordô. As poucas tonalidades podem não atrair a atenção dos jogadores que esperam por uma salada visual, mas aqui elas cumprem o propósito de comunicar um período distante e nebuloso sem perder o charme. Já os traços dos personagens são claros e suficientemente detalhados, especialmente nas expressões faciais, que comunicam bastante coisa apesar de não haver uma única voz dublada no jogo todo.
Sim, The Lion’s Song está repleto de diálogos, mas os únicos sons são os ambientes – que, diga-se de passagem, são bastante detalhados (usem fones!). Na ausência de vozes, a pixel art também é usada para evocar as entonações vocais de cada fala com precisão, através de animações e outros tamanhos de fonte. Também é de grande ajuda que as falas de cada personagem sejam apresentadas com cores diferentes, tornando a experiência muito adequada à telinha do Nintendo Switch. Por fim, a linda trilha musical torna o pacote ainda mais agradável.
Não se pode ter tudo
O único problema mais significativo de The Lion’s Song, assim como na maioria dos adventures de seu tipo, está na capacidade de alterar sua narrativa até certo ponto, hora ou outra pegando o jogador pela mão e conduzindo-o por um caminho fechado. Há ao final de cada capítulo um balanço das escolhas feitas, com porcentagens que comparam seu resultado ao de outros jogadores, mas muitas dessas escolhas são mais morais e estéticas do que realmente decisivas para o destino dos personagens. No entanto, a Mi’pu’mi ao menos consegue oferecer maior variedade e profundidade do que a Telltale atualmente entrega em suas séries. Há ainda uma galeria de Conexões que pode ser explorada a partir do menu principal e que fica cada vez mais completa a cada nova escolha feita na campanha (muito como o casebre no Éter após a conclusão de Forgotton Anne).
Para os desacostumados, The Lion’s Song pode ficar mais para um livro interativo do que um jogo, mas em uma época em que a indústria AAA parece rejeitar a linearidade e trocá-la por experiências multiplayer e open-world “mais abrangentes”, é refrescante notar como o adventure da Mi’pu’mi é capaz de construir um universo de sentimentos através das menores coisas. Não me recordo de um jogo que entenda tão bem a dificuldade em encontrar inspirações, criar algo especial a partir delas e o medo de, no fim de tudo, falhar consigo mesmo e com todos. Seja você uma música, um pintor ou uma matemática, as angústias podem ser as mesmas.
The Lion’s Song, contudo, não separa o micro do macro, o pessoal do político, e por isso também comunica uma verdade muito mais dura: a história pode não dar a mínima para aspirações e conquistas pessoais, tampouco reserva finais felizes para todos. Entretanto, é necessário pararmos com nossas vidas antes que o amargo fim chegue?