Desde os primórdios da Literatura, a sátira tem sido uma ferramenta afiada para expor as mazelas de uma sociedade ou do coração dos indivíduos. É uma fina arte que encontra um lar acolhedor em terras britânicas, seja através do talento de Swift e suas “Viagens de Gulliver”, seja através do absurdo de um Monty Python ou mesmo da visão irônica sobre os clichês de fantasia de Terry Pratchett. Mas o Reino Unido e suas paisagens ora acinzentadas ora luminosas também são a pátria da distopia, com os textos eternos de Aldous Huxley, George Orwell e Anthony Burgess.
Pois é desse caleidoscópio de influências que a Compulsion Games compõe sua própria obra prima: We Happy Few, uma controversa e grotesca visão de um país devastado pela culpa, atormentado pelo seu passado e consumido por uma busca de redenção química, uma realidade alternativa que ora diverte e ora incomoda, com tintas fortes e personagens magníficos.
Confortavelmente entorpecido
A desenvolvedora que havia criado antes somente o título de plataforma e puzzle, Contrast, busca aqui seu trabalho mais ambicioso. Foram três anos de desenvolvimento com uma equipe três vezes maior que a original, idas e vindas em seu planejamento inicial, múltiplas mecânicas adicionadas por cima uma das outras, financiadores insatisfeitos no Kickstarter e prévias do jogo que não apenas não refletiam seu resultado final como também traziam problemas graves de performance e bugs catastróficos.
Entre mortos e feridos, é surpreendente que We Happy Few tenha emergido como um dos jogos mais ousados de sua geração, não desprovido de falhas, mas genial em seus melhores momentos.
No universo do jogo, a Grã-Bretanha perdeu a II Guerra Mundial para a Alemanha e nem russos nem norte-americanos vieram em seu socorro. Em decorrência dessa derrota, erros terríveis foram cometidos e a nação mergulhou na apatia.
We Happy Few nos mostra a cidade de Wellington Wells como um recorte desse nem tão admirável mundo novo em 1964, quase duas décadas após a terrível cicatriz imposta ao seu povo. Para suportar e esquecer uma dor inominável, a sociedade apela para Alegria, uma droga sintética que torna tudo mais agradável e apaga as memórias por um curto espaço.
We Happy Few acompanha em seus três capítulos, a jornada de três personagens diferentes e como elas lidam com seus traumas, suas lutas contra as amarras de um universo que insiste em lhes empurrar a felicidade pré-fabricada ou a morte e seus planos, plausíveis ou não, para um futuro melhor.
Ao longo de algumas dezenas de horas, iremos rir e sofrer, ter medo e raiva, em uma narrativa que pula entre cenas de extremo incômodo para uma leveza quase patética logo em seguida, sem pausa para respirar. Como uma sátira, We Happy Few provoca, agride, gera um sorriso amarelo e flerta com a loucura. Como uma distopia, o jogo causa angústia, sufoca e gera um gosto amargo na boca que lamentavelmente não é tão estranho quanto parece.
Arthur Hastings é o protagonista do maior dos capítulos, um funcionário do departamento da administração pública responsável pela censura de notícias que possam levantar questionamentos. Como um Winston Smith pós-moderno, ele se dá conta dos horrores que o cercam logo nos minutos iniciais do jogo.
Suas memórias completas irão retornar aos poucos, através de elementos espalhados pelo vasto mapa de We Happy Few, dando prosseguimento a uma fuga com um propósito maior. Mas Arthur não é perfeito, assim como ninguém em Wellington Wells, e de suas falhas psicológicas brota um dos personagens mais complexos da ficção, tão palpável em seus equívocos e motivações. A ele pertence o maior de todos os socos no estômago que o jogo nos proporciona, assim como cabe a ele o desfecho agridoce do título.
Sally Boyle, que funciona como uma enigmática mas importante NPC no capítulo de Arthur, desabrocha em seu próprio capítulo como uma radiante figura feminina muito além daquilo que apenas vislumbramos anteriormente. Aqui a Compulsion Games adiciona uma mecânica extra atada a um elemento surpresa em sua trama. Se em termos narrativos, essa mola motriz funciona a contento, em termos de jogabilidade, soa como um obstáculo, um entrave inicial ao desenvolvimento de Sally, felizmente solucionado de forma rápida.
A força da protagonista está em outro lugar, em um passado que nunca foi açucarado, mesmo antes da derrota britânica, em uma sociedade que nunca foi gentil com mulheres, em uma sociedade que sempre as limitou a determinados papéis e sempre as oprimiu. Como uma química que se rebelou contra a Alegria, mas trabalha em prol dela como forma de manter uma independência conquistada a duras penas, ela luta com a força de uma leoa e com as armas que possui contra um regime que insiste em puxá-la para baixo, em aprisioná-la.
Ollie Starkey, o incrivelmente boca-suja Ollie Starkey, fecha a narrativa com uma terceira forma de jogar We Happy Few e um terceiro ponto de vista sobre os motivos que levaram à deterioração desse universo. Novamente somos confrontados com um elemento de mecânica adicional que mais uma vez atrapalha e irrita no começo, para apenas ser dominado logo em seguida, e que tampouco é determinante para o personagem.
A força do ex-soldado escocês, assim como sua maior ternura, estão em outro lugar, também no passado e nas decisões que tomou antes mesmo da história começar. Confrontado com a verdade levantada por Arthur Hastings, Ollie sai em uma missão quixotesca para melhorar a sociedade e salvar Wellington Wells de seu destino. Irá encontrar verdades ainda mais duras no seu caminho e um final que consegue ser ao mesmo tempo melancólico e catártico, consolidando um jogo repleto de dicotomias, humor e tristeza.
Adeus céu azul
Uma narrativa complexa desse nível exige imersão do jogador e a Compulsion Games entrega uma atmosfera ímpar de mundo aberto. Não apenas com gráficos de cair o queixo (que talvez não tenham sido tão otimizados como deveriam, já que o jogo cobra uma placa de vídeo poderosa…), como também com uma direção de arte que cuida de cada detalhe dessa deslumbrante distopia.
De um lado, temos os escombros da outrora orgulhosa Grã-Bretanha, sua decadência visível em cada grafite, em cada ruína, roupa esfarrapada ou lixo espalhado da vila dos excluídos. De outro lado, a excessivamente colorida sociedade daqueles que consomem Alegria, beirando a opulência kitsch dos anos 60 de nossa própria realidade, para não dizer cafona. É um cuidado estético que transparece em cartazes, elementos decorativos, no vestuário e na moda, em programas de TV falsos criados exclusivamente para o jogo e outras aparentes tolices que ajudam a forjar um universo grotesco, mas plausível.
O inusitado dá a tônica em We Happy Few, combinando cenários e momentos, casando gráficos e narrativas em situações que permanecerão por um longo tempo em minha memória. Para um título que brinca com memória seletiva e traumas esquecidos, é irônico que traga tantas cenas marcantes. Quantas vezes em jogos eletrônicos você participou de um desfile de moda? Ou dirigiu o mais ridículo dos veículos com uma música agradável ao fundo, rindo na calada da noite enquanto o mundo ao seu redor desmorona para a tragédia? Ou invadiu a fortaleza secreta de um astro do rock em busca de um álbum perdido?
We Happy Few ri de si mesmo, o que pode, às vezes, passar a mensagem errada de que não é um jogo sério, para, na sessão seguinte, derrubar o mais forte dos jogadores com um nó na garganta. Essa percepção fica clara em um determinado momento em que um dos protagonistas reforça para si que não deve rir, mas não consegue e explode em risadas diante de uma cena dantesca: é a constatação que estamos todos no fundo do poço, mas sucumbir ao absurdo de tudo é inevitável, com ou sem Alegria.
Sua trilha sonora completa uma imersão que já seria perfeita, adicionando a cereja do bolo, transportando nossas mentes para uma década perdida de um universo imaginário. É impossível não reparar no contraste entre a canção London Bridge Is Falling Down murmurada em tons lúgubres pelos párias e as melodias sessentistas divertidas que permeiam o resto da aventura.
O que você quer de mim?
Entretanto, We Happy Few não está livre de equívocos. Ao trafegar entre os limites do bizarro e da denúncia, ao escolher o campo da sátira, falha no equilíbrio dos elementos. Sátira não é algo que se pratica levianamente e todos, de Swift a humoristas modernos, derraparam em suas curvas perigosas ou foram criticados por não se fazerem entender. Da mesma forma, o trabalho da Compulsion Games não será compreendido por todos e avaliações como “desnecessário” ou “erraram a mão aqui” irão acompanhar sua trajetória em alguns de seus momentos.
Seu extenso período de desenvolvimento e sua clara falta de um direcionamento são ainda mais visíveis nas mecânicas de jogo. É como se o game tivesse sido projetado para ser algo, mudado para uma segunda jogabilidade no meio – sem abrir mão do que foi adicionado antes – e, logo depois, mudado de foco uma terceira vez, novamente sem remover os elementos anteriores.
O que temos aqui é um jogo de sobrevivência de mundo aberto com mecânicas de RPG e furtividade, fabricação de itens e missões secundárias que não se costuram muito bem uns aos outros e que acabam gerando impasses que podem ser um bug ou apenas conflitos internos de desenvolvimento.
Seu mundo aberto é mais extenso do que precisava ser, considerando o peso da narrativa e a carência de missões adicionais que justifiquem um terreno tão vasto. O resultado disso são longas andanças para resolver missões simples, prejudicadas por um sistema de viagem rápida que parece funcionar quando quer.
O processo de evolução dos personagens é desequilibrado. Enquanto Arthur adquire pontos para comprar habilidades a conta gotas, os demais protagonistas recebem pontos em profusão. Muitas das habilidades que podem ser aprendidas acabam por anular limitações anteriores, como andar nas ruas depois do toque de recolher ou não chamar atenção ao correr.
Ao final de cada um dos capítulos, nossos personagens são muito diferentes, vastamente superiores ao seu início, o que traduz uma evolução irreal que quebra a imersão.
A furtividade é simples, bem abaixo do que você encontra em qualquer jogo focado nessa mecânica. O que é uma pena, considerando-se que “passar despercebido” e misturar-se com as pessoas ditas normais é uma das premissas do título. Ainda assim, fugir e se esconder serão duas das ações mais executadas por todos os três protagonistas.
O processo de juntar itens encontrados no cenário e fabricar objetos também está abaixo do padrão da indústria. Terminei com um inventário lotado de tranqueiras que não usei e receitas de objetos que não produzi. As próprias mecânicas de sobrevivência, para as quais a fabricação seria importante, na maior parte do tempo tem pouco impacto na sua performance, afetando somente o seu nível de vigor.
Não que We Happy Few não funcione como um jogo, mas passa a impressão que seus desenvolvedores se esforçaram demais para acrescentar coisas e pecaram pelo excesso. Isso também é nítido na quantidade de missões que apenas prolongam a trama, como obter o artefato X para encontrar a pessoa Y para liberar o acesso ao lugar Z onde se encontra a chave A dividida em três partes que etc etc. Em algumas partes, o ritmo estagna e We Happy Few se torna cansativo.
Queria que você estivesse aqui
Perdido em suas múltiplas jogabilidades, o game assusta o jogador desavisado. A nota dez escapa por entre os dedos da Compulsion Games, por mais que todo o resto. Sua brilhante construção de universo, as angustiantes travessias pessoais de seus protagonistas, seus gráficos insanos e sua cuidadosa trilha sonora, nos transportem para um mundo mágico.
Entretanto, We Happy Few é um clássico instantâneo, um sopro de ousadia em uma indústria AAA de equipes multimilionárias e produtos polidos à exaustão mas carente de novas ideias. É um jogo para ser amado mesmo com seus poréns, um monumento aos grandes satiristas dos passados e aos pesadelos distópicos de outros autores, e também um manual de como não perder o foco e não acrescentar mecânicas. Um prazer culpado, uma janela de um trem que descarrilha e, inexplicavelmente, retorna a seus trilhos logo depois.
Um jogo que eu queria que você jogasse.