Foi uma surpresa quando a Quantic Dream anunciou que estaria produzindo jogos. Além de sair da tutela da Sony (antes de ser comprada pela NetEase), o estúdio passaria a dar uma força para desenvolvedoras menores. Nesse ponto, Under the Waves se torna seu primeiro projeto.
Há falhas gritantes de marketing na forma como a Quantic Dream conduziu essa empreitada. Inicialmente, a impressão passada pelo material de divulgação era de que o jogo teria uma atmosfera de survival horror, o que ele não é. Depois disso, a divulgação sumiu por completo e o título foi lançado de surpresa. Porém, no que a produtora falhou, a desenvolvedora Parallel Studio acertou muito bem: seu título de estreia é magistral, um mergulho emocional em águas profundas, que ainda reforça importantes mensagens ecológicas.
Firewatch submarino
A melhor forma de descrever o que Under the Waves é realmente seria uma comparação direta com Firewatch, o igualmente genial jogo de estreia da desenvolvedora Campo Santo. Em ambas as obras, temos um homem (barbudo) que busca se isolar de tudo e de todos para superar uma perda muito grande. Em ambas as obras, o único elo desse homem com o mundo exterior se dá através de vozes pelo rádio. Em ambas as obras, o protagonista se vê envolvido por um mistério na região e precisa investigá-lo em um ritmo compassado, mas cada vez mais envolvente. Em ambas as obras, uma magnífica trilha sonora puxada para o folk dá o tom da trama. Em ambas as obras, se optou por uma estética de cores pungentes e um traço mais próximo da animação do que do realismo.
Então, não há nada de original que destaque Under the Waves de Firewatch? Sim, há muitos elementos. A começar pela sua ambientação. Nosso protagonista aqui é o único habitante de uma estação submarina, dezenas de metros abaixo da superfície do oceano, encarregado de supervisionar as operações de uma empresa petrolífera. Apenas esse detalhe já adiciona um charme extra ao jogo e nos convida a visitar paisagens que ora deslumbram, ora espantam.
Se o guarda-florestal de Firewatch estava cercado pela natureza idílica de uma reserva, Stan, nosso protagonista barbudo da vezm está em um ambiente ao qual o homem definitivamente não pertence. O oxigênio é uma preocupação, o eixo vertical é importantíssimo para se orientar. A visibilidade é escassa, a luz do Sol não penetra. A fauna está muito mais presente, com cardumes de espécimes nadando de um lado para o outro em um espetáculo que deixaria Jacques Cousteau embevecido.
É nesse cenário que Stan irá esbarrar em fenômenos que permanecerão inexplicados até a conclusão do jogo. Sua sanidade está se esvaindo em virtude do que ele viveu três anos atrás? A dosagem de nitrogênio em seus tanques está induzindo ele a alucinações de narcose, como sugerem outros personagens? Ou há realmente algo ali embaixo que a Ciência não compreende? Under the Waves não oferece respostas simples ou claras, preservando seus mistérios e, consequentemente, seu encantamento.
A conclusão dessa subtrama sobrenatural é uma escolha, uma das escolhas mais doloridas que já tive que tomar em um jogo eletrônico. Estava esperando um título de horror nas profundezas, um novo Soma talvez, recebi uma decisão que me colocou no limiar das lágrimas.
Under the Waves vaza água em algumas partes
Mecanicamente, Under the Waves introduz diversos sistemas que definitivamente não estavam presentes em Firewatch. Stan pode navegar pelo seu mundo usando um mini-submarino batizado de Moon ou nadando com seu traje de mergulho. Para grandes distâncias, Moon é indispensável. Para espaços pequenos de exploração, não tem como entrar com o veículo. Em espaços inundados, como salas de controle e outras instalações, Stan ainda pode caminhar normalmente, como um jogo em terceira pessoa tradicional.
Aqui se estabelece um problema: temos três sistemas de navegação que não são consistentes. Nadar permite utilizar o mouse para se direcionar, por exemplo, o que não acontece com o mini-submarino. Os botões de andar pra frente também são diferentes em cada modo. É necessário reconfigurar o cérebro a cada troca e muitas vezes bati com Moon por acelerar demais ou errar uma direção. Felizmente, o jogo é bem generoso com kits de reparo e oxigênio. Em dez horas de jogo, não vi a tela de morte.
Under the Waves oferece também a possibilidade de fabricar itens que melhoram ainda mais sua experiência. Não é nada comparável com o que seria encontrado em um survivalcraft real e, na verdade, é possível ignorar esse sistema: o jogo oferece no ambiente todos os itens indispensáveis para superar esse ou aquele desafio.
Escondidos em algumas partes, é possível encontrar ainda um mini-jogo de boxe(?) e um mini-jogo de música. Imagino que nem todos os jogadores irão desfrutar desses entretenimentos e desconfio que possa haver outros mini-jogos que eu não encontrei.
Para os colecionadores de plantão, há muitos troféus para serem obtidos no fundo do mar, itens descobertos em pontos remotos que podem enfeitar o habitat de Stan, assim como diagramas de itens para serem fabricados.
Em seu lançamento, o jogo tinha vários bugs. Nada catastrófico, que impedisse a conclusão do título ou provocasse crashes. Felizmente, a maioria deles já foi corrigida com o primeiro patch. Ainda assim, não está na lista de correções uma falha que repete a mesma fala de um NPC três vezes, enquanto você explora um determinado ambiente.
Entretanto, o defeito mais irritante de Under the Waves é a total falta de sincronia labial. Stan move os lábios em descompasso com suas falas. O resultado oscila entre o hilário e o grotesco. Se você não vai conseguir entregar sincronia (que é realmente desafiadora), seria muito melhor se Stan sequer movesse os lábios durante as falas. Felizmente, em sua maior parte, Stan está sozinho com seus pensamentos.
Imersão literal
Os defeitos acabam se mostrando pequenos diante das ambições atingidas pelo jogo. Under the Waves foi desenvolvido em parceria com a ONG Surfrider Foundation, fundada por surfistas em 1990 para combater a poluição dos oceanos. Essa aliança se reflete não apenas em alguns textos explicativos dentro do jogo, como também em algumas mecânicas. Stan literalmente fabrica itens reciclando lixo que ele mesmo coleta do fundo do mar, como garrafas plásticas, pedaços de metal e componentes eletrônicos.
A preocupação ecológica se reflete também na trama principal. A Unitrench, a empresa para qual Stan trabalha, está com as mãos sujas de óleo. Um desastre ambiental acontece durante a narrativa e a multinacional tenta acobertar os fatos. Há momentos de tensão e temos uma visão in loco do impacto da poluição e do destino do lixo que as pessoas jogam no mar.
Tudo isso é realizado sem didatismo ou mão pesada e flui de forma orgânica com o jogo. Compreendemos como Stan se viu nessa situação, como ele tenta não ser uma engrenagem nessa máquina de exploração extrativista e como ele acaba participando de qualquer forma.
Ainda assim, o foco da história é a saúde mental de Stan, seu mergulho no abismo e sua eventual recuperação. É uma lente intimista, embora eventos muito maiores do que ele estejam em andamento.
A Quantic Dream pode ter deixado Under the Waves na mão, mas foi sábia ao selecionar esse jogo como o ponto de partida para sua investida como produtora. Que outros Under the Waves venham por aí, pérolas escondidas de um mar sem fim.
Prós:
🔺 Narrativa intimista e emocional
🔺 Direção de arte primorosa
🔺 Atmosfera enigmática bem construída
🔺Trilha sonora melancólica que se encaixa perfeitamente
Contras:
🔻Alguns bugs
🔻 Inconsistências mecânicas
🔻 Total falta de sincronia labial
Ficha Técnica:
Lançamento: 29/08/23
Desenvolvedora: Parallel Studio
Distribuidora: Quantic Dream
Plataformas: PC, PS4, PS5, Xbox One, Xbox Series
Testado no: PC