É inquestionável que Fumito Ueda deixou sua marca indelével na indústria dos jogos. Ainda que ICO tenha preconizado sua genialidade, foi em Shadow of the Colossus, sua segunda obra, que apresentou ao mundo um clássico em todos os sentidos, jamais superado, nem mesmo por The Last Guardian. Muitos tentaram, muitos fracassaram aos seus pés.
Não seria exagero afirmar que The Pathless sobe nos ombros desse gigante e contempla o horizonte. Ainda que não se eleve acima ou mesmo se iguale a Ueda, a Giant Squid, também em sua segunda obra (depois do jogo de estreia ABZÛ), vai longe em um título que bebe da mesma fonte mas também brilha por seus próprios méritos. A magia está presente nessa jornada sem traçado, assim como a liberdade.
Eu vou aonde o vento me levar
Em The Pathless, da mesma forma vista em Shadow of the Colossus, controlamos alguém em uma missão para purificar criaturas gigantes que foram consumidas pela escuridão e esses serão nossos únicos inimigos em mapas imensos. Esse universo faz parte de uma civilização ancestral, com suas próprias lendas e folclores, dos quais temos acesso apenas a lembranças e ruínas. Temos um aliado animal que será fundamental para a trama e um arco como arma principal.
Entretanto, as semelhanças entre as duas obras vão bem além dessas influências. A atmosfera de encantamento e poesia de Ueda é capturada aqui com cores vibrantes e um estilo singular e também com uma trilha sonora de world music de tirar o chapéu. Esses dois elementos sozinhos já tornam The Pathless não um clone de laboratório, mas uma declaração de amor, uma reverência de aprendiz para seu mestre, quase uma linha sucessória, sem querer entrar no campo da heresia.
Sem muitas explicações, somos convidados para uma terra fantástica castigada por uma maldição. Um ente maligno conhecido como Deicida está determinado a forçar a esse mundo a sua visão da verdade, o seu caminho, corrompendo seus deuses antigos para seus próprios fins. A sombra de sua ilha flutuante paira sobre o continente. Diversos caçadores foram enviados para deter sua sede de conquista. Todos falharam. Agora é a vez do jogador, no controle de uma jovem caçadora, subir os platôs que fazem parte dessas terras e traçar seu próprio caminho.
O resultado é um jogo em que o seu conceito é aplicado sobre as mecânicas. Pela primeira vez em minha jornada como jogador, vi a ideia de “mundo aberto” sendo integrada na história. Não é por acaso, não é por modismo, que somos convidados a explorar cada canto dessa paisagem. O mundo de The Pathless não é (apenas) um quintal de brincadeiras ou um mapa com colecionáveis. É um espaço vivo e descobri-lo faz parte do entendimento das interações entre o Deicida e a heroína.
A Giant Squid faz o jogador passar por tudo que ele passa para receber a epifania no final magistral: sua jornada não foi desprovida de sentido e tudo funcionou como deveria ser.
Caçadora de emoções
A caçadora é um prodígio de agilidade, o que lhe permitirá atravessar o mapa com destreza, sem que a tarefa fique cansativa. É um grande ponto para a Giant Squid, que nos apresenta paisagens monumentais mas faz de tudo para que esse deslumbre não se transforme em um esforço hercúleo para desbravá-lo, como acontece em outros títulos de mundo aberto. A cada avanço na trama recebemos novos e melhores talentos que apenas aumentam a vontade de explorar.
Logo após o início, a caçadora ganha a companhia de uma jovem águia, que irá exercer aqui uma função muito maior do que a de Agro, o corcel de Shadow of the Colossus. Caçadora e águia estabelecerão uma relação de respeito e carinho, que está mais próxima daquilo visto com Trico, de The Last Guardian, mas sem os problemas de Inteligência Artificial deste. Na vastidão de The Pathless, a parceria é mais do que bem-vinda e estabelece o elo emocional que a trama precisa.
Juntas, essa dupla irá enfrentar os deuses antigos, entidades bestiais que foram corrompidas pelo poder do Deicida. Antes animais magníficos de paz e harmonia, agora são monstros que precisam ser purificados de toda dor. Para isso, o jogo exige que o jogador consiga itens que irão desbloquear torres que irão lançar a luz sobre as feras ancestrais. É a justificativa mecânica para tanta exploração. Entretanto, novamente, não há um interesse da Giant Squid de que o jogador veja tudo isso como um obstáculo, o que se reflete em puzzles simples e intuitivos.
Quem espera desafios em The Pathless pode se frustrar. Os enigmas para se obter os itens cobiçados não exigem demais, apenas o suficiente para manter o engajamento com essa terra mística e para espalhar fragmentos de seu contexto para serem descobertos. As lutas contra os chefes tampouco são impossíveis de se vencer ou pedem reflexos de ninja. O objetivo da desenvolvedora é mais do que claro: trazer o jogador para uma aventura extasiante, não testar seus limites.
O único “oponente” mais grave do jogo talvez seja a câmera maleável que, ocasionalmente, não se posiciona onde você esperava. Não é nada que irrite ou atrapalhe e eu me confundi com ela apenas em dois momentos cruciais.
The Pathless é Arte em estado puro
Evocar o espírito de Fumito Ueda talvez seja uma forma injusta de avaliar The Pathless. A sombra da grandiosidade paira aqui como a montanha inexorável do Deicida, injetando uma metáfora dentro da metáfora. Talvez seja inconsciente, talvez seja proposital.
Porém, é importante frisar que, independente da comparação, The Pathless arremete aos céus por seus próprios esforços. É notável que a Giant Squid tenha se dado ao trabalho, por exemplo, de criar uma linguagem própria para os diálogos presentes no jogo. Nitidamente também há toda uma construção de mundo que nos é apresentado de forma menos hermética do que Ueda costuma fazer. O funcionamento dessa realidade nos é explicado, não com diálogos expositivos, mas com pedaços de histórias e entendemos o que está em jogo aqui.
O encantamento brota então da sinergia entre o visual deslumbrante (herdado de ABZÛ, mas sem imitá-lo), a trilha de impacto que mistura instrumentos exóticos para nossos ouvidos ocidentais e um contexto de mitos mesclados de diferentes culturas.
Ao final de minha caminhada por essa terra sem caminhos, a verdade de The Pathless permanece na mente como uma pequena grande obra que deixaria um sorriso no rosto de Ueda e na alma de qualquer fã de seu trabalho.