O que acontece quando você tenta misturar Wind Waker, Stardew Valley e férias de verão no mesmo jogo? O que deveria ser um Frankenstein ou o melhor jogo do mundo termina não chegando aos pés de nenhuma de suas influências.
Entretanto, Summer in Mara desponta como uma grata surpresa por seus próprios méritos e deméritos. Foi uma jornada que eu não queria largar, embora atormentada por terríveis problemas de ritmo, mecânicas equivocadas, bugs estranhos, decisões de design que nunca deveriam ter passado por uma aprovação. Ainda assim… é difícil escrever sobre esse jogo, enquanto sinto que a saudade vai bater.
Toda história tem um começo
Os primeiros dez, quinze minutos de Summer in Mara são extremamente mágicos. Você controla Koa, uma simpatia de menina humana, adotada por uma velha senhora de outra raça, Yaya Haku. As duas são as únicas moradoras de uma ilha em Mara, o vasto oceano de um planeta distante. Suas vidas são bucólicas e incluem atividades rotineiras, como cuidar da plantação, alimentar as galinhas, cuidar dos porcos e honrar as tradições.
Reza a lenda que Mara é viva, protegida por espíritos. Quando você tira da ilha, você deve devolver para a ilha e todos que vivem no oceano devem ajudar a protegê-lo. Koa e Haku são felizes em seu pequeno universo, mas fazem parte de algo muito maior.
Uma mudança repentina irá colocar Koa em uma aventura de descobertas e o prenúncio disso é uma das mais belas animações que já vi nos últimos anos. Essa é a cutscene perfeita que irá ditar a atmosfera de tudo que virá a seguir. É também o último momento de puro encantamento do jogo, que só volta a arrancar lágrimas com seu desfecho majestoso (com direito a uma segunda cutscene), três dezenas de horas depois, talvez tarde demais para muitos jogadores. Porém, eu chegarei lá.
Fazendinha feliz
Terminada a abertura, começam os trabalhos. Bem-vindo ao seu novo emprego. Summer in Mara esbanja carisma, mas irá consumir essas reservas exaustivamente ao empurrar sucessivas missões praticamente idênticas ao jogador. Pegue isso, leve ali. Plante isso, leve ali. Fabrique isso, leve ali. Ao longo de praticamente toda sua “aventura”, Koa é usada e abusada por todos as pessoas que encontra, transformada em uma mensageira para as tarefas mais triviais. O jogo nem mesmo esconde que alguns desses cidadãos de Mara estão claramente explorando a boa vontade da criança ou se aproveitando de sua ingenuidade para pregarem peças em outros.
Se você acha que irá passar a maior parte do seu tempo brincando de fazendinha, esse é o jogo errado. Primeiro, porque o sistema de plantio é falho: é possível dormir para avançar o dia e acelerar o crescimento das suas plantas, sem nenhuma punição ou desvantagem. Não há rigorosamente nada que te impeça, não há mudança de estações ou cronômetro correndo para completar missões. Apenas o desejo de imersão me impediu de usar esse truque.
Segundo, porque não há muito estímulo para se ter uma horta variada. Há vários vegetais sem função alguma na história ou que são requisitados pelos personagens muito esporadicamente. Por outro lado, fica a dica: plante algodão como se não houvesse amanhã e não venda, porque você irá precisar de bastante algodão para fabricar linhas, cordas e tecidos. Há um evidente desbalanceamento de recursos, que também aparece nas receitas que Koa desbloquea, em que a maioria delas será utilizada apenas uma vez para nunca mais ser necessária.
Terceiro, não se faz fortuna com a plantação. A verdadeira riqueza em Summer in Mara pode ser obtida com atividades de mineração. Em determinado momento do jogo, o jogador obcecado pode acumular tanto dinheiro que terá acesso a quase todos os materiais simplesmente pagando por eles.
Expandindo seus horizontes
Porém, a grande verdade é que Koa irá passar mais tempo indo e vindo entre as ilhas e conversando com pessoas do que em sua própria ilha, cuidando de suas coisas. Esse é um título para quem não tem medo de bater perna.
No seu lançamento, Summer in Mara não tinha sequer o recurso de viagem rápida entre as ilhas. Depois, isso foi implementado. Depois, essa mordomia passou a custar dinheiro. Porém, como eu disse, depois de um certo tempo, dinheiro não é mais problema: é a solução. Ainda assim, determinados eventos só podem ser ativados no mar usando a viagem tradicional e o título falha em informar essa peculiaridade.
Explorar é prazeroso e o sistema de navegação é bastante simples. No mar, é possível encontrar barris flutuantes com recursos. Restos de naufrágio ou é verdade que Mara provê a quem cuida de Mara? Jamais saberei, mas é possível viver daquilo que o oceano oferece.
O jogo vai liberando de forma gradativa novas regiões, a partir de evoluções no seu barco. Embora haja missões que te enviam para ilhas distantes, a visitação não é obrigatória em todas. Koa irá gastar boa parte de seu fôlego indo e vindo entre Qualis, a principal ilha habitada, e sua própria ilha. Há muitas maravilhas e mistérios a serem descobertos em alguns lugares, mas grande parte do arquipélago é repetitivo. Curiosamente, há locações incríveis em que nada acontece e fica a dúvida se a desenvolvedora Chibig se esqueceu delas ou se está guardando para um futuro DLC.
Conhecendo pessoas e fazendo amigos
A geografia, no entanto, também é o que menos importa em Summer in Mara. A coleção de indivíduos que você encontra guarda a verdadeira alma do jogo. Para cada aproveitador desprezível que quer apenas uma entregadora gratuita, existem cinco personagens cativantes com seus problemas e personalidades que precisam realmente da ajuda de Koa.
Próximo do final, estava tão cansado de repetir as mesmas trajetórias que pensei em me focar somente na missão principal (uma cruzada ecológica contra invasores que querem extrair recursos de Mara). Porém, tive a epifania: as linhas narrativas da maioria dos NPCs são mais divertidas. Jogar Summer in Mara é se envolver com seus dramas, suas bobagens, suas necessidades. Não há nada trivial demais que não possa ser atendido. Um pirata malandro em busca de fama e fortuna, um outro pirata que sofre bullying das irmãs, um aprendiz de cozinheiro que quer ser reconhecido pelo tio, um casal de mercadores que só quer levar a vida numa boa, um homem gato que quer registrar tudo em seu diário, uma idosa com uma terrível dor em seu passado.
E Koa, obviamente. Sempre com uma visão positiva da vida, a jovem protagonista é o maior espírito de Mara, livre, impertinente, mas sempre disposta a ajudar. Nos diálogos, ela é muito expressiva, o que aumenta o tom fofo da história. Lentamente, resolvendo os dilemas dos outros, vamos fazendo amigos e ganhando estruturas e ferramentas que forjam nossa ilha e permitem que ela ganhe um ar pessoal. Ao completar o jogo, percebi que tinha erguido um refúgio aconchegante e ensolarado, o lugar perfeito em tempos tão duros.
Summer in Mara tem vilões caricatos, mas até para isso o jogador precisará de paciência. A grande ameaça do título só começa a se insinuar depois de várias horas de aventura e só toma ares realmente preocupantes em sua reta final. Felizmente, com aliados conquistados na brisa do oceano, Koa consegue mostrar que é a verdadeira guardiã de Mara e suas belezas.
Furos no barco
Apesar de todas suas qualidades, Summer in Mara sofre de falhas gritantes, de técnica e de design. Ao iniciar uma sessão, por exemplo, e tentar acessar o inventário, o jogo trava por vários segundos, como se tivesse puxando tudo das profundezas do oceano. Uma textura de uma mensagem de um dos personagens não carregou, deixando um grande quadrado em branco no lugar. Não passei por nenhum fechamento abrupto, felizmente.
Summer in Mara possui uma trilha sonora majestosa. É incrivelmente linda e casa como uma luva com a narrativa. O uso de uma variação da canção-tema na cena final contém um impacto emocional que beira o indescritível. E, ainda assim, não é um aspecto à prova de falhas no jogo. Excetuando alguns instantes pré-programados, a trilha é randômica, então é possível que sua faixa favorita fique horas sem tocar, enquanto uma outra faixa repita cinco vezes em uma hora.
Tirando a música, Summer in Mara é castigada pelo silêncio. Como um título onde o oceano é fundamental para a atmosfera não possui o barulho das ondas? Das gaivotas que habitam a região? Tampouco se pode ouvir o som de passos, o som de multidão nas partes urbanas ou quase qualquer efeito que se possa imaginar. Não se trata nem mesmo de um problema técnico, já que Summer in Mara oferece sons em vários outros pontos (como galinhas cacarejando, por exemplo, ou o barulho da picareta). Para agravar a situação, uma ilha, marcada por conter uma caverna gigante, apresenta o eco do lugar e o som de gotas caindo do teto… mesmo que você nem entre na caverna e apenas fique rodeando-a de barco.
O botão para vender itens no comércio é tão inusitado que eu precisei consultar um guia na internet para entender como funciona. Você pode gastar dinheiro em viagens rápidas, mas o jogo não informa o quanto você ainda tem, então você não sabe dizer se é uma boa ideia gastar ou se seria melhor economizar. Em algumas missões, não há uma indicação clara se você completou o requisito necessário. Em outras missões, você pode comprar o que se pede, sem precisar correr atrás, em outras você precisa ir atrás porque o jogo exige que você pegue exatamente aquele item específico e não há como distinguir uma situação da outra. Itens desaparecem do inventário. Um porco passou a morar no meu barco e, ao contrário dos outros, nunca desembarcou na minha ilha. Ao esbarrar em qualquer degrau ou elevação no cenário, Koa tem uma tendência a ficar travada… a lista é exaustiva.
A tradução para o Português também deixa muito a desejar. Há erros gritantes de grafia e concordância, assim como traduções aberrantes. Um dos personagens afirma: “eu não possuo os prejuízos da minha corrida”. O cérebro buga, mas destrava ao fazer a tradução correta. Muito provavelmente, a frase original era “I don’t have the prejudices of my race”, que deveria ser traduzida como “eu não possuo os preconceitos da minha raça”.
Também passei por um espanto ao descobrir que dois personagens tinham uma relação homoafetiva, não pelo incomum da situação, mas porque a tradução não é confiável e até o final de suas missões, muitas horas depois de conhecê-los, isso não estava claro. Fiquei feliz ao fazê-los felizes, mas ainda tenho dúvidas se entendi direito o que aconteceu.
O fim é um começo
Minha percepção de Summer in Mara passou por várias etapas: deslumbre, tédio, encanto, espanto, mais tédio, ansiedade por chegar ao final, relaxamento para só curtir o que estava rolando. Atrasei a análise para me entregar ao jogo e, diversas vezes, foi meu cantinho suave antes de dormir, o jogo certo para desestressar e descansar a mente. A impressão ia e vinha de que estava diante de uma obra prima ou de um desastre falho. Summer in Mara certamente é longo demais para seu próprio bem.
Nos últimos dias, tive a convicção de que, se havia chegado até ali, é porque Summer in Mara valia ser jogado. Na conclusão da aventura de Koa, aquele deslumbramento lá do começo refloresceu: era o desfecho perfeito para tudo que a menininha tinha conquistado e todo o tedioso processo que eu tinha atravessado. É uma pérola escondida em águas turvas.
Ironicamente, depois que a trama termina, você está livre para continuar em Mara e completar as missões paralelas que ficaram em aberto. Por falhas de ritmo, há muitas linhas que dependem de outras linhas que dependem de outras… e ora Summer in Mara parece cheio de atividades, ora parece que você empacou.
Cometi o equívoco de buscar zerar todas as missões. Afinal, não são os personagens secundários os grandes astros dessa jornada? Apenas uma das missões vale como um epílogo satisfatório. Em outra, sou cobrado em dez mil moedas pelo banqueiro local, um banho de água fria na pessoa que salvou esse oceano inteiro de um destino terrível.
Em meus últimos minutos, vi um NPC desaparecer do nada e resolvi a missão que faltava, selando uma velha rixa com uma dentadura. Por quê? O jogo não explica. É a tentativa final do jogo de fazer com que eu não goste dele. Porém, não importa mais. Não me esquecerei daquele verão que passei em Mara.