Skip to main content

Como você explicaria o Holocausto para uma criança? Talvez essa tenha sido a questão fundamental para a criação de My Memory of Us. Ou quem sabe, a forma como uma criança, que viveu os horrores de uma guerra de perto, contaria uma história sobre o momento. Independente do ponto de vista, essa é uma história sobre força, coragem e principalmente amizade.

O poder da amizade

Para contar essa história, o jogo usa memórias de um velho senhor que recebe uma garotinha em sua livraria. Ela, ao encontrar um antigo livro de recortes e fotografias, o faz relembrar de tudo aquilo que há muito não pensava. Tudo começa quando um pobre garotinho órfão é encontrado por uma garotinha em uma lata de lixo, após despencar de um telhado quando tentava fugir dos guardas por ter roubado algo.

Tal garotinha sentindo pena dele decide fazer amizade e acolhê-lo na casa onde vivia com seu avô cadeirante. Quando as coisas aparentavam estar dando certo para eles e a vida parecia feliz, a guerra estourou e robôs malvados invadiram a cidade. A partir deste momento, muito mudaria na vida destas duas crianças.

Apesar de parecer uma história fictícia, não revelando nenhum detalhe ou fato relacionado a realidade, My Memory of Us se passa durante a Segunda Guerra Mundial, mais especificamente durante a invasão da Polônia pela Alemanha Nazista em 1939, que resultou na divisão do país polaco. Consequentemente, parte de sua população foi levada para campos de extermínio, o que também foi o início do Holocausto.

Imagem do jogo My Memory of Us
O grande opressor.

O jogo não apresenta qualquer menção ao Führer ou ao Nazismo. Tudo isso é representado por uma força liderada por um “Rei Robô” maligno que quer comandar e dividir a sociedade, para tal pintando alguns cidadãos de vermelho para sinalizar que eles “não são dignos” e não devem ficar junto com os cidadãos “não manchados”.

Todo o desenrolar desta história é extremamente emocionante e envolvente, te prendendo desde o início. Você fica curioso em querer saber como tudo aquilo terminará, pelo o que irão ter de passar e como as crianças sobrepujarão tudo aquilo. De modo geral o jogo lembra muito Valiant Hearts: The Great War, tanto pelo enredo, quanto pela estrutura de fases, porém se passando na Segunda Guerra e acompanhando a história de duas crianças sobreviventes do Holocausto.

Atenção aos detalhes

A arte é bem feita com um estilo bastante característico, trabalhando predominantemente com a cor cinza. Durante boa parte da trama, apenas a garotinha pode ser vista com a cor vermelha em sua vestimenta, lembrando muito o filme A Lista de Schindler, que trata justamente do mesmo período e momento histórico deste jogo. Além da vestimenta, alguns itens de interesse também ficam destacados pela cor vermelha para indicar ao jogador o que ele deve fazer ou o que é interativo no cenário.

As animações também merecem destaque, pois são fluidas e apresentam um bom nível de detalhe nas ações dos personagens e NPCs. Atribuído a isso, os ambientes durante boa parte do gameplay são bem vivos, com veículos e personagens se movimentando por todos eles. O que torna ainda mais real todo o drama vivido por aquelas pessoas. Pois, mesmo durante o conflito, elas não deixaram de viver, amar e tentar sobreviver. Podemos ver o sofrimento, a destruição e o caos pelas suas expressões. Estes são pequenos detalhes que nos revelam a dura realidade daquele momento na história.

Imagem do jogo My Memory of Us
Cenários cheios de vida e movimento.

Outro ponto que torna tudo isso ainda mais envolvente é a trilha sonora, que é bem composta e apresenta arranjos que contribuem para mexer com nossas emoções. Tendo toques mais animados durantes os momentos mais alegres e toques melancólicos em momentos de tensão. Tanto sonoramente quanto visualmente, tudo foi bem orquestrado para remeter a certos sentimentos como dor e angústia ou até mesmo alegria nas ocasiões de vitória.

Explorando as ruínas

Durante as fases, precisaremos explorar diversos cenários para encontrar itens que possam nos ajudar a avançar, como chaves, manivelas e engrenagens. Para tal, devemos usar as habilidades únicas de cada personagem. A garota consegue correr, saltar pequenos declives e atirar com estilingue, enquanto o garoto consegue se esconder nas sombras (e andar em stealth), roubar itens de interesse, manejar um espelho com o qual usando algum foco de iluminação cega outras pessoas (ou robôs), além de iluminar locais escuros com sua luminária. Ademais, quando estão com as mãos dadas, cada um compartilha a habilidade do outro, como correr ou se esconder.

Outra característica única é a estatura das crianças. A garota é mais alta e assim ela serve de apoio para levantar o garoto quando precisam acessar algum local elevado. Ou no caso do garoto, por ser menor consegue entrar por dutos e locais estreitos onde a garota não consegue passar. Durante o gameplay, você alterna entre os dois para avançar em determinadas sessões da fase, onde somente um deles consegue executar alguma ação que dependa de sua habilidade exclusiva.

Essas mecânicas de colaboração entre os dois fazem lembrar bastante o jogo Brothers: A Tale of Two Sons, no qual os dois irmãos precisam se ajudar utilizando cada um suas habilidades para superarem os obstáculos e avançarem.

Imagem do jogo My Memory of Us
Amor fraternal.

Em algumas situações, será necessário resolver alguns puzzles lógicos para liberar alguma passagem ou algo do gênero. Estes puzzles são bem variados e seu nível de dificuldade aumenta conforme avançamos pelo jogo. Mesmo assim, eles tendem a ser bastante intuitivos, caso o jogador preste atenção aos detalhes na resolução. É difícil eles se repetirem, mas mesmo quando isso acontece, eles reaparecem de maneira bem mais complexa que a anterior, o que não deixa o progresso repetitivo, sempre te desafiando a cada nova fase.

Alguns comandos são pouco intuitivos. Jogando pelo teclado, por exemplo, o Shift é a tecla para o comando de “voltar” e há combinações com teclas como Ctrl e X/C para usar as habilidades de cada personagem que são confusas de início. Já usando um controle as coisas são mais simples, mas o comando de usar a lanterna do garoto enquanto se movimenta é um tanto complicado de se executar, pois para mover o personagem usamos o analógico esquerdo e para usar a luminária à corda também usamos o botão de ombro da esquerda. É meio complicado se movimentar enquanto fica pressionando repetidas vezes este botão específico – para dar corda na luminária – usando a mesma mão. Infelizmente, isso não pode ser alterado.

Algo que senti falta, mas que seria bem vindo, é um comando para chamar o(a) companheiro(a), pois quando você executa uma ação e eles não estão de mãos dadas, você precisa ir até o outro ou selecionar o outro para encaminhá-los para perto. Isso é um pouco chato pois, às vezes, eles não estão tão distantes um do outro, mas você ainda precisa fazer isso manualmente.

Imagem do jogo My Memory of Us
A tirania.

Apesar de conter elementos narrativos primorosos e envolventes, ele não apresenta um fator replay apelativo, pois este é um jogo para se apreciar sua história e, uma vez terminada, não há nenhum outro fator que possa te fazer voltar a jogar além das conquistas, que também não irão apresentar nenhum grande desafio em concluí-las.

Lembranças

Durante as fases você encontra fotografias que irão liberar “Lembranças” que podem ser acessadas na seção homônima no menu principal. Essas lembranças contam histórias reais de pessoas que foram heróis e heroínas, salvando diversas vidas durante o período de guerra, onde os alemães Nazistas aprisionaram e torturaram milhões. Tais pessoas/histórias também inspiraram o desenvolvimento do jogo, como alguns dos eventos que os personagens vivem em sua aventura.

Da mesma maneira que acontece com Valiant Hearts, o acréscimo destes eventos ao jogo enriquece ainda mais o conjunto da obra. Muitos deles, apesar de importantes, poderiam estar perdidos na história, mas foram resgatados e devidamente apresentados a um público novo que talvez não os conhecesse, assim como o velho senhor da livraria conta para a garotinha suas aventuras da infância.

Eu pessoalmente recomendo fortemente a leitura destas breves mas relevantes histórias, que mostram o quão corajosas foram estas pessoas. Mesmo vivendo o que viveram, não fugiram e lutaram contra a opressão – sem falar que estão totalmente traduzidas para o português, assim como os menus e legendas do restante do jogo.

Imagem do jogo My Memory of Us
Lembranças boas de uma época ruim.

My Memory of Us é uma experiência verdadeiramente envolvente, que começa como algo inocente. Porém, logo percebemos o quão hostil pode ser aquela realidade. Crianças que apenas queriam brincar e ser crianças foram forçadas a trabalhar, isso na melhor das hipóteses. Tudo isso é apresentado de uma maneira sutil, mas que facilmente pode ser captada e entendida por aqueles que conhecem a história.

Realmente, esta é uma obra que vai além do que esperamos ver em jogos. Deve ser apreciada e refletida, pois na nossa realidade não foram apenas “robôs do mal” que oprimiram e dividiram a sociedade.

Review – Liberté

Rafael NeryRafael Nery09/12/2024