Em um momento que os olhos do mundo se voltam para a descoberta do submarino argentino naufragado ARA San Juan, há algo de mórbido em visitar o interior de outra embarcação similar. São duas tragédias muito parecidas que permanecem inexplicadas em suas causas e cujo resultado não abria espaço para qualquer tipo de esperança.
É ainda mais lamentável quando se percebe que Kursk não consegue capturar as verdadeiras dimensões do horror que se abateu sobre os seus 118 tripulantes, não resgata suas histórias de vida e tampouco funciona como um jogo decente.
Baseado em fatos reais
Há uma antiga controvérsia sobre a necessidade dos jogos eletrônicos abordarem assuntos do mundo real, principalmente conflitos militares e acidentes com perdas humanas como é o caso do naufrágio do K-141 Kursk. Como se a mídia fosse inerentemente dedicada à diversão dos jogadores e não pudesse ser revestida de um mínimo de validade, como o cinema, a literatura ou a música. Hollywood vem adaptando tragédias há décadas com resultados positivos e quase nenhuma acusação de exploração comercial. Entretanto, basta um jogo se aventurar por esse terreno para ser visto com desconfiança.
Despido de qualquer preconceito e acreditando firmemente que essa mídia pode e deve ser utilizada como ferramenta para adaptar grandes questões de nossa História, submergi com o Kursk disposto a ver o que a Jujubee havia conseguido fazer com sua premissa.
É óbvio que a desenvolvedora não agiu de má-fé aqui ou correu para extrair alguns centavos da espetacular catástrofe que sacudiu o povo russo. Dezoito anos se passaram desde a explosão que fez o submarino nuclear afundar no Mar de Barents e a ferida ainda está aberta, mas os criadores do jogo não faltam com o respeito em momento algum. Há elementos ficcionais adicionados à obra que se propõe como “o primeiro jogo eletrônico e documentário inspirado em eventos reais”, mas sua sequência final é de arrepiar a medula, e o epílogo contextualiza muito bem os fatos.
Entretanto, entre seu ponto de partida e seu ponto de chegada, Kursk falha miseravelmente na execução. É igualmente óbvio que a Jujubee não sabia muito bem o que fazer com seu cenário ou com as cartas que tinha na manga e arrasta a aventura por missões principais insuportavelmente monótonas dentro de um espaço confinado sufocante.
O espião que caminhava
Os quinze minutos iniciais do jogo que você viu acima são uma amostra completamente equivocada do que você irá encontrar depois. Esqueça a subtrama de ser um espião internacional infiltrado à bordo do Kursk para furtar dados sobre um torpedo super-avançado. Ainda que essa seja a mola motriz de tudo que você faz no submarino, o que você faz no submarino é apenas ir do ponto A ao ponto B, sem um único momento de suspense ou medo de ser apanhado.
Esqueça também a eletrizante sequência onde você precisa solucionar um enigma rapidamente sob o risco de morrer: essa intensidade só será alcançada novamente no final de Kursk, após horas de insossas caminhadas. A criatividade vista na forma como os créditos são apresentados na estrada também é algo que não reaparecerá, em um jogo que não ousa mais em nenhuma outra parte.
Uma vez que você finalmente embarca no Kursk, seu destino está selado em mais de um sentido. Diga adeus à luz do Sol e abrace sua claustrofobia interior: por cerca de três horas, seu lar será uma série de corredores extremamente parecidos, separados por escotilhas a cada dez metros.
Essa arquitetura é responsável ao mesmo tempo por um dos maiores triunfos e um dos maiores obstáculos do jogo. O interior do Kursk está milimetricamente detalhado, com um nível de esmero que eu normalmente só encontrava em adventures de tela parada, mas não em um ambiente completamente 3D. Sem fotos reais do submarino original, não tenho como saber o grau de fidelidade alcançado, mas tudo transborda realismo no jogo: cada válvula, cada parafuso, cada quadro decorativo, cada cano de metal ajuda a nos transportar para dentro desse pesadelo potencial. É quase pornografia para engenheiros.
Infelizmente, isso tem um preço e Kursk consome uma quantidade absurda de recursos. É visível a queda de frames dentro do submarino, onde você passará mais de 90% de sua aventura. Além disso, cada escotilha responsável por separar as diferentes seções do submarino é também uma tela de carregamento invisível, então é impossível andar mais de dez metros seguidos sem esperar de cinco a dez segundos para o acesso ao próximo compartimento terminar de abrir. Se você precisa subir ou descer escadas, temos outra animação que tenta disfarçar o carregamento do outro andar. Se você abre uma porta, qualquer porta, é brindado com outra animação de alguns segundos. Explorar o interior do Kursk se torna um exercício de paciência.
Com essa limitação técnica em mãos, o que faz a Jujubee para sua jogabilidade? A pior decisão possível. Ela torna o jogo uma sucessão de missões de “vá até X”, “pegue Y”, “entregue em Z”, as infames “fetch quests” que já são uma praga em jogos de RPG. É difícil criar empatia com o destino do Kursk quando se gasta horas andando por corredores parecidos, atravessando sucessivas escotilhas e conversando com NPCs com uma animação facial perturbadora.
Para piorar uma situação que já era estressante, o personagem se move a passos de tartaruga e correr é incentivado o tempo todo com mensagens na tela lembrando qual é a tecla para ser apertada. É claro que correr não minimiza problema algum, em corredores estreitos, onde você precisa desviar da tripulação e fazer curvas até esbarrar na próxima escotilha, cinco segundos de corrida depois.
Quando a desenvolvedora foge da ideia de transformar seu espião em um garoto de recados, somos contemplados com jogabilidades ainda piores. Os mini-jogos de Arcade, por exemplo, podem ser uma tentativa de homenagear a década perdida na qual o título se passa, mas vincular o sucesso em um desses jogos ao avanço da história é um erro insuportável. Para continuar a missão principal e obter um item, o personagem principal é desafiado a superar o recorde de um dos tripulantes na máquina na sala de recreação. A brincadeira não faz sentido no contexto e ainda apresenta mecânicas que respondem ao controle de forma limitada.
Nesse sentido, a curta duração de Kursk é uma vantagem: após tantas missões sem vigor de um lado para o outro da embarcação, eu estava, contrariando todas as minhas expectativas, ansioso pelo momento em que tudo daria errado à bordo.
Todos morrem no final
Não é spoiler algum revelar que uma explosão sacode o submarino e ele naufraga. Se a Jujubee até esse momento parecia estar enrolando para aumentar o tempo de jogo, agora ela está livre para colocar obstáculos reais e momentos de vida ou morte na frente de nosso espião. Resolve fazer isso com quicktime events inesperados e fatais, que levam a checkpoints muito afastados e mais quebram do que aumentam a imersão e o sentimento de perigo.
A verdadeira tragédia do Kursk acaba ocupando menos espaço em tela do que eu esperava, ainda que seja bastante intensa. Ver os ambientes que eu literalmente cansei de atravessar, destruídos pela catástrofe, é um choque de realidade, um banho de água fria e uma lembrança de que isso é mais do que um jogo qualquer, mas uma recriação de um momento aterrador real. A trilha sonora, até então discreta ou marcante nos menus, alcança seu ápice, jorrando grandiosidade e desespero.
Aparentemente, há quatro finais diferentes no jogo, dependendo de algumas decisões nessa última fase. O final que ouso chamar de canônico é o mais fácil de se obter. Acredito que também seja o mais amargo, quando praticamente toda agência nos é tirada e pouco mais nos resta além de aguardar o inevitável. Um segundo final que descobri não era mais esperançoso ou menos angustiante.
Kursk não pretende oferecer respostas ou alimentar teorias de conspiração sobre o fim real do submarino (acredite, há muitas teorias, como sempre). Aqui e ali há sugestões de problemas de manutenção e você terá que pessoalmente consertar alguns circuitos ou equipamentos de pouca importância. A grande falha aqui talvez seja que a desenvolvedora na verdade tenha perdido a oportunidade de focar menos no submarino e mais em seus tripulantes, as verdadeiras vítimas de dezoito anos atrás, como um documentário faria.