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A diversidade cultural é uma das grandes maravilhas da espécie humana. Cada nação, cada região, desenvolveu aspectos próprios daqueles que ali viveram e ainda vivem, sejam mitos, sejam conceitos estéticos, sejam histórias. Ainda que existam aspectos universais, como a constante luta entre o Bem e o Mal, a forma como esses aspectos são abordados varia de lugar para lugar. Kunitsu-Gami: Path of the Goddess nos convida para um mergulho na cultura japonesa e encanta com uma magia que soa quase alienígena para nosso olhar ocidental.

A Capcom, ou melhor dizendo, a  Kabushiki-gaisha Kapukon (ou deveríamos dizer 株式会社カプコン?) honra suas origens com uma pequena pérola escondida. Não temos aqui uma mega-produção como Street Fighter ou Resident Evil ou Devil May Cry, com fortes influências do cinema americano, mas um título quase artesanal, folclórico, que remete a Onimusha, flerta com o Musou, mas entrega mesmo uma releitura dos Tower Defense.

Kunitsu-Gami: Path of the Goddess

A deusa da montanha

Em Kunitsu-Gami: Path of the Goddess, a montanha antes sagrada agora foi corrompida pela ganância dos homens. Em consequência disso, portais malignos chamados de Torii estão se abrindo por toda parte, deixando passar os Coléricos, criaturas monstruosas dos mundos profanos. Ao mesmo tempo, a corrupção se alastra por casas e seres vivos, tomando vilas inteiras, como uma infecção. Cabe ao jogador salvaguardar a vida da única pessoa capaz de de reverter esse processo: a donzela Yoshiro.

Se a trama em suas linhas básicas reflete mitos que poderiam pertencer a qualquer cultura, é nos muitos detalhes que o título da Capcom encanta. Os Torii mesclam arquitetura japonesa com uma estética orgânica grotesca, uma abertura escancarada na realidade, um Goatse (não pesquise) ancestral que exala podridão. Os Coléricos, por sua vez, não se parecem com nada que eu já tenha visto antes, aberrações de múltiplas formas, com múltiplos poderes, inspirados na vasta coleção de Yokais da cultura oriental. E Yoshiro, por sua vez, sintetiza a pureza diáfana e inatingível em suas infinitas camadas de seda colorida.

Kunitsu-Gami: Path of the Goddess

No centro de tudo isso, temos mais um aspecto cultural forte: a dança milenar. Nosso herói, Soh, não apenas luta, mas baila entre os inimigos com golpes magnificamente animados. A própria Yoshiro, peça fundamental da jogabilidade, sequer caminha, mas dança em direção ao objetivo, com movimentos calculados repletos de poesia. Tudo isso culmina no fechamento de um Torii, não concluído com golpes de espada ou efeitos de magia genérica, mas com uma coreografia sincronizada entre Yoshiro, Soh e seus soldados em uma cutscene que nunca cansa de impressionar.

Mais reflexos dessa cultura se manifestam nos artefatos encontrados que podem ser equipados para conseguir bônus durante as batalhas, na riquíssima indumentária trajada por Soh, Yoshiro e os aldeões recrutados, assim como em literais gravuras artísticas colecionáveis, que retratam momentos da campanha ou do dia a dia das vilas.

Kunitsu-Gami: Path of the Goddess

As muitas camadas de Kunitsu-Gami: Path of the Goddess

Entretanto, o jogo não se resume a uma aula de mitologia oriental, mas agrega um conjunto refinado de mecânicas que o tornam difícil de definir. De certa forma, Kunitsu-Gami: Path of the Goddess evoca lembranças de Sang-Froid: Tales of Werewolves, outro título fortemente baseado em uma cultura específica (no caso daquele, a canadense). Temos também aqui uma jogabilidade dividida entre dia e noite, entre preparo e combate.

Durante o dia, purificamos parte das vilas por onde passamos, libertamos aldeões, atribuímos funções militares a eles e os posicionamos diante do próximo Torii. Ao mesmo tempo, é essencial coletar “energia” que irá pavimentar o caminho por onde a donzela Yoshiro irá passar. Você realmente achou que uma entidade tão pura iria pisar em chão maculado? Yoshiro precisa percorrer todo o caminho desde o ponto de entrada até o Torii, em seu próprio ritmo, espalhando flores por onde passa.

Kunitsu-Gami: Path of the Goddess

É durante a noite que os Coléricos cruzam o portal e Kunitsu-Gami: Path of the Goddess deixa de ser uma aventura para virar um confronto selvagem. Os monstros vão tentar chegar até Yoshiro, que está se aproximando lentamente do portal. Ao mesmo tempo, nossos soldados estabelecem uma linha de proteção. Se Yoshiro morrer, é fim de jogo, a fase recomeça. É como um Tower Defense, com unidades com diferentes habilidades, inimigos com diferentes graus de ameaça e um objetivo a ser protegido. Porém, nesse Tower Defense, o objetivo também está em movimento e nosso papel não se resume a ser um mero controlador de tropas. Colocar a mão na massa, passar a espada nas legiões de inimigos é um trabalho que precisa ser realizado por Soh, o único personagem que temos controle direto.

Tudo isso leva a decisões táticas que precisam ser tomadas constantemente. Compensa avançar demais e expor Yoshiro ao inimigo antes do Sol se por ou seria melhor avançar apenas metade do caminho, até uma posição mais defensável, correndo o risco de precisar de dois dias para fazer a travessia? Evoluir essa classe de guerreiros ou aquela outra? Como equilibrar a equipe ideal?

Kunitsu-Gami: Path of the Goddess

Kunitsu-Gami: Path of the Goddess vai além e introduz também a reconstrução de bases nas vilas liberadas, para obter mais recursos. Entre cada vila liberada, ainda acontece uma batalha contra chefes Coléricos, cada um deles com uma habilidade nova e surpreendente.

Bonito… exceto quando não é

É na surpresa que o jogo da Capcom acaba frustrando um pouco. Novas e inesperadas capacidades vão sendo adicionadas a cada inimigo, nenhuma delas explicada na tela. Frequentemente, é necessário sofrer uma derrota devastadora para entender como vencer determinada fase. Mais de uma vez me vi apanhando de formas humilhantes apenas para mudar minha tática e ter uma vitória impecável logo em seguida.

Felizmente, Kunitsu-Gami: Path of the Goddess também permite que os jogadores disputem novamente o controle de vilas que já foram liberadas, seja para obter Conquistas que antes eram impossíveis, seja simplesmente para ganhar pontos de evolução. Em outras palavras, se determinada vila está muito difícil de avançar, basta repetir uma vila mais fácil para melhorar suas tropas e ficar mais forte. O famoso grind não é obrigatório, mas a possibilidade existe.

Kunitsu-Gami: Path of the Goddess

O grande defeito mesmo do jogo, o que o impede de ser chamado de perfeito, está no seu motor gráfico. Kunitsu-Gami: Path of the Goddess é exigente em termos de hardware, para entregar gráficos que talvez pudessem ser obtidos em um PlayStation 3. A Capcom caprichou no visual das cutscenes, nos menus, na própria interface, que está maravilhosa. Porém, quando realmente entramos nos cenários, não há nada que justifique o elevado consumo de GPU. Há inclusive relatos de jogadores de PC que sofreram crashes, com configurações superiores à minha.

Kunitsu-Gami: Path of the Goddess dificilmente será lembrado na hora de premiar os jogos do ano, mas é um título que não merece ser deixado de lado, seja pelo jogador que almeja se divertir com mecânicas redondas e desafiadoras, seja o jogador que tenha algum interesse em aprender mais sobre a instigante cultura japonesa.

90 %


Prós:

🔺 Combinação singular de mecânicas
🔺 Banho de cultura japonesa
🔺 Interface belíssima

Contras:

🔻 Motor gráfico mal otimizado
🔻 Pouco intuitivo

Ficha Técnica:

Lançamento: 19/07/24
Desenvolvedora: Capcom
Distribuidora: Capcom
Plataformas: PC, PS4, PS5, Xbox One, Xbox Series
Testado no: PC