Desde que deu as caras no evento de revelação do PS5 no ano passado, Kena: Bridge of Spirits chamou a atenção de muitos com seus visuais caprichados, que mais pareciam pertencer a um filme de animação do que qualquer outra coisa. No entanto, ficava a dúvida: seria o jogo mais do que apenas isso? Como primeiro título do Ember Lab, estúdio que não surpreendentemente trabalhou com animações até então, Kena chega diante de parâmetros elevados, devido às expectativas por um alto padrão de qualidade estética. Contudo, o valor do pacote como um jogo também deve ser provado.
Como era de se esperar, o jogo tem um foco bem definido sobre sua história, muito similar ao que se vê com títulos da Sony, que praticamente apadrinhou a divulgação do projeto. Na trama, Kena é uma guia espiritual responsável por conduzir as almas dos mortos, presas no mundo dos vivos, a seus destinos. Enfrentando a Corrupção, força que impede tais almas de seguirem em frente, ela então deve libertar os espíritos perdidos com sua coragem e determinação. Em meio a essa busca, são apresentadas temáticas relacionáveis, como a aceitação da mortalidade e a saudade, com histórias que podem comover os jogadores.
Visual cheio de personalidade
Grande parte da personalidade de Kena: Bridge of Spirits vem de seu design visual. Para comprovar isso, surge o elemento que mais se distingue no jogo: o Rot. Composto por criaturinhas simpáticas que são responsáveis por decompor o que está morto e manter o equilíbrio da natureza, o Rot é simplesmente muito fofo, acompanhando Kena até onde quer que ela vá como um pequeno exército. Não bastando esses bichos de olhos grandes que desesperadamente precisam ganhar pelúcias, as personagens coadjuvantes do jogo também são chamativas, como os pequenos Beni e Saiya, que aparecem logo na primeira área.
O mundo apresentado no título também impressiona na riqueza de detalhes, assim como a maioria das animações dos seres, incluindo Kena. Permitindo a escolha entre dois modos gráficos, Fidelidade e Performance, o game possibilita tirar o melhor proveito de seus visuais de acordo com as preferências de cada jogador. Como alguém que prefere fluidez mecânica, escolhi o segundo modo, que torna os controles mais precisos e confiáveis tanto em exploração quanto em combate. O modo serve para mostrar o potencial técnico atingido pelo console PS5, que renderiza o jogo com muita suavidade, mas favorece a jogatina antes de tudo.
Falando na jogabilidade, vamos começar pela locomoção, o aspecto mais simples de Kena. Basicamente consistindo em andar, pular e rolar, o ato de atravessar os belíssimos cenários é agradável mas mediano na maioria das vezes, já que animação e função nem sempre conversem muito bem entre si. Digo isso porque as animações de pulo de Kena não são tão naturais, principalmente quando acionamos um salto duplo ou queremos agarrar uma beirada. São basicamente animações que se interrompem sem fluidez, à primeira vista deixando a desejar diante da graça de jogos de plataforma como Ratchet & Clank: Em Uma Outra Dimensão.
Em combate, no entanto, os resultados são muito melhores. Com a decisão acertada de se moldar a partir de um estilo influenciado por Souls, God of War e Horizon, entre outros, os ataques principais de Kena são mapeados para os botões R1 e R2, permitindo um controle melhor da câmera durante as lutas (com direito a opção de travamento de mira ao usar o R3). Esse mapeamento faz com que o uso de ataques alternados com habilidades de Rot e do arco mágico (para atingir pontos fracos) seja extremamente prático, tornando as lutas satisfatórias de um ponto de vista técnico.
Além de se inspirar nos títulos mencionados acima, Kena: Bridge of Spirits apresenta combates com dificuldade acima da média, que vez ou outra vão testar os jogadores que esperam por um simples jogo infanto-juvenil. Inimigos não raramente te cercam e desferem ataques rápidos, mini-chefes desafiadores se tornam oponentes comuns e os chefões demandam um bom uso da esquiva com seus ataques poderosos. Para aqueles que procuram desafios à medida para diferentes estilos de jogatina, há três dificuldades selecionáveis de início, com uma adicional sendo desbloqueada após terminar o jogo uma vez.
Em cada dificuldade, a grande diferença surge relacionada às habilidades de Rot, que se recarregam em combate com coragem, elemento coletado ao golpear inimigos, e que na dificuldade normal (Guia Espiritual) só se recarregam passivamente ao receber dano (no Modo História as habilidades recarregam passivamente, enquanto na dificuldade Guia Espiritual Especialista elas apenas recarregam ao causar dano). Além de servirem como fortes ataques secundários, as ações de Rot também são as únicas que permitem recarregar a vida a partir das limitadas flores azuis que são encontradas durante as lutas mais intensas. Ou seja, se estiver com pouquíssima vida restando e tiver esgotado suas ações precipitadamente, não terá como recuperar sua saúde até recarregar o Rot e comandá-lo até uma das flores. Isso tudo torna o combate mais metódico e tenso do que a média.
Um mundo a ser descoberto
Para aliviar um pouco a tensão entre as muitas lutas, surge a exploração, que faz com que o jogador fique atento ao mundo e aproveite parte do tempo para cheirar as flores, tornando o jogo mais agradável e convidativo. Vez ou outra ela vem acompanhada de quebra-cabeças simples mas suficientemente divertidos, demandando foco nos arredores. É recomendado olhar cada canto do mapa se quiser se dar bem, já que o Karma, elemento que permite desbloquear novas habilidades, está espalhado através de baús, arbustos e estátuas derrubadas, e só podemos aumentar a vida total de Kena a partir dos pontos de meditação escondidos pelos cenários.
De maneira similar a jogos como os das franquias The Legend of Zelda e Darksiders, áreas são destravadas em uma sequência determinada e com o uso de certas habilidades, como o gancho espiritual do arco, que após ser disparado puxa Kena em direção ao ponto atingido, e as bombas espirituais que removem obstáculos do caminho por tempo limitado. O rot também serve para solucionar certas situações, podendo limpar a corrupção que bloqueia alguns caminhos e carregar coisas pesadas como plataformas. O interessante mundo, que se abre a partir de um vilarejo central, ainda apresenta variação o suficiente para tornar sua descoberta consistentemente interessante, apresentando locais como uma antiga floresta, campos abandonados e uma grande montanha.
O que faz com que o jogo seja tão sedutor e facilmente recomendável são seus ecos de “collect-a-thon”, remetendo a clássicos como o primeiro Jak and Daxter e diversos jogos da geração PS2. É possível coletar, ao todo, 100 rots, subindo o nível de Kena em intervalos determinados e permitindo desbloquear novas habilidades. Não tão diferentes das Korok Seeds de The Legend of Zelda: Breath of the Wild, os rots estão escondidos de diversas formas pelo mundo, aguardando sua descoberta. Para render mais diversão adicional, há os correios espirituais, que são missões secundárias ativadas com correspondências entregues no vilarejo, e os chapéus, itens puramente cosméticos que podem ser comprados e desbloqueados para customizar cada um dos rots que acompanham Kena.
Apesar dos belíssimos visuais, sem falar também numa trilha encantadora, Kena: Bridge of Spirits não se contenta com seu rostinho bonito, trazendo uma jogabilidade completa e muito bem ajustada pela desenvolvedora Ember Lab, que faz uma sólida estreia. O resultado pode não ser particularmente revolucionário, apresentando uma fórmula familiar e até um pouco segura, mas a exploração convidativa e o combate satisfatório, somados à estética cheia de personalidade do jogo, produzem um título de respeito que deixa o desejo de uma futura sequência que aprofunde ainda mais os conceitos vistos, tanto em sua história quanto em suas mecânicas.