Skip to main content

“O homem, graças ao poder da sua memória, acumula o passado, possuindo-o e fazendo uso dele. O homem nunca é o primeiro homem, mas começa a sua vida carregando consigo uma quantidade do passado acumulado. Esse é o seu único tesouro, sua marca e o seu privilégio. A parte importante desse tesouro não é aquilo que sabemos que é correto e que devemos preservar, mas sim a memória dos nossos erros. O real tesouro do homem é o tesouro dos seus erros, acumulado gota a gota durante milhares de anos.”

José Ortega y Gasset, Toward a Philosophy of History.

Lembro-me muito bem do dia que meu pai comprou o nosso primeiro computador. De início, a ideia dele era utilizar o aparelho para ler e-mails nos fim de semana, quando a internet – que, na época, ainda era discada – ficava mais barata. Bem, o que de fato aconteceu foi que eu acabei descobrindo que, assim como os consoles, o nosso computador podia também rodar jogos, e que muitos deles eram bem superiores aos que eu, com apenas 7 anos de idade, tinha jogado até então. Então, mesmo sem saber do que se tratava na época, eu me aventurei no mundo dos emuladores de Mega Drive, e a franquia Civilization logo chamou a minha atenção.

A minha relação com os jogos de estratégia tem influência direta do console da Sega. Sem saber inglês e mal entendendo o que se passava na tela, parecia que tinha algo mágico em guiar a sua civilização rumo à glória. Claro que o primeiro Civilization era extremamente limitado, com as cidades sendo representadas por um quadrado cujo interior mostrava o número da população e as tropas como desenhos em um fundo colorido, mas a diversão proporcionada ao meu eu criança era inexplicável. De lá pra cá, a franquia se estabeleceu no mercado, sendo a maior referência no que diz respeito aos jogos 4X, e evoluiu, lançando seu sexto título em meados de 2016. Entretanto, a sensação era de que ainda havia algo a ser explorado no gênero, algo que poderia ser melhorado para a nova geração. É nesse contexto que Humankind – um jogo que, curiosamente, é distribuído pela Sega – tenta buscar seu espaço, preservando os acertos e aprendendo com os erros dos que já trilharam o caminho do gênero de estratégia.

O começo da jornada

É bem verdade que a franquia da Firaxis foi uma pioneira nos jogos de estratégia. Todavia, conforme o tempo passa, mais empresas tentam explorar as lacunas deixadas pelos títulos mais antigos. Humankind não esconde a sua influência, deixando bem claro que você deve passar por todos os estágios da evolução humana até chegar no seu objetivo.

A primeira grande mudança é a mecânica da primeira era. Assim como eu havia escrito no meu preview, em vez de controlar um explorador dos primórdios da humanidade e criar a sua cidade, você deverá explorar o mapa com a sua tribo em busca de recursos. Assim como os primeiros humanos eram nômades caçadores-coletores, sua civilização deverá passar por esse processo antes de firmar terra em algum canto. A adição dessa era torna o início muito mais dinâmico em comparação aos jogos similares, incentivando, de fato, a exploração a fim de aumentar a sua tribo e encontrar um bom lugar para se estabelecer.

O curioso é que, em Humankind, alguns jogadores podem ter o azar de perder o jogo nessa fase, já que uma tribo pequena é bem vulnerável a ataques. Do mesmo modo, um jogador mais sagaz pode aproveitar e eliminar a concorrência logo cedo. Não é possível criar cidades nessa fase, mas pode-se criar postos avançados que, no futuro, evoluem e tornam-se povoamentos.

Toda história pela frente

Um dos maiores dilemas dos outros jogos 4X é a escolha inicial. Afinal de contas, é melhor um início mais fácil ou apostar na sua superioridade nos estágios finais do jogo? Utilizando o jogo Stellaris como exemplo, o tipo de raça escolhida no início determina qual será o seu estilo de jogo até o final. Buscando mudar as coisas, Humankind propõe com sucesso mudanças a esse sistema, tentando tornar a jogabilidade mais dinâmica e adaptável.

O nascimento de uma civilização.

O grande fator responsável por essa mudança são as diversas culturas disponíveis em diferentes eras. Em vez de ficar preso a uma civilização, você poderá trocar várias vezes a sua cultura no decorrer do jogo. Em meu jogo, comecei escolhendo o império babilônico na idade antiga, e terminei o jogo controlando o nosso querido Brasil na era contemporânea.

Para trocar de cultura é muito simples: basta avançar de era. Por não estar acostumado com essa possibilidade, demorei um certo tempo para compreender o seu funcionamento e qual a melhor maneira de utilizá-lo. Resumindo o esquema, cada era de Humankind dispõe de um sistema de conquistas, onde a realização das mesmas garante estrelas. Ao se obter 7 estrelas você pode avançar de era, garantindo a possibilidade de trocar de cultura e conseguir novos bônus, construções e unidades especiais. Aumento populacional, acúmulo de dinheiro e o número de tecnologias desbloqueadas são alguns dos fatores que liberam as conquistas.

Citando um exemplo da dinâmica do jogo, os babilônios possuem um bônus em pesquisas científicas, então eles foram o meu plano principal para conseguir uma vantagem no início do jogo, liberando tecnologias importantes para o meu desenvolvimento. No decorrer do jogo, outras culturas tentaram exercer influência em minhas cidades, tornando a minha vida bem mais complicada. Para combater essa tática, decidi mudar a minha cultura para a gótica, que, além do bônus de influência por unidade, me permitiu criar uma unidade especial de cavalaria mais forte que a padrão. Dentro de Humankind, as possibilidades de variação são gigantescas.

Entre a cruz e a espada

Você prefere a guerra ou a paz? Dentro da comunidade dos jogos 4X, existem diversos estilos diferentes de abordagem. Alguns jogadores preferem criar quantidades enormes de unidades e sair conquistando o mundo. Outros, mais conservadores, preferem ficar no seu canto e investir em construções. O fato é que, com a evolução do gênero, os jogos mais recentes abriram mais possibilidades para diferentes estilos – fato esse que, como dito na parte anterior, pode ser comprovado pelas diferentes características das culturas em Humankind.

Nunca subestime o poder da diplomacia.

Começando pelo estilo mais agressivo, alguns jogadores gostam de expandir e anexar territórios na base da força. Confesso que eu, desde a época do Mega Drive, nunca consegui ser um jogador muito eficiente na arte da guerra, mas compreendo que poucas coisas são tão divertidas quanto eliminar todo exército inimigo em apenas um turno. Em Humankind, as culturas voltadas à arte militar ajudam bastante nesse aspecto, mas com algumas restrições.

Do mesmo modo que os jogos da Paradox Interactive possuem métodos para frear a expansão do jogador, Humankind possui também um limitador em seu sistema. Primeiramente, é necessário ter uma desculpa plausível para guerrear de forma legítima. O sistema de justificativa não chega a ser, como no caso das franquias Crusader Kings ou Victoria, um Casus Belli, mas sim um sistema baseado em apoio para a guerra. Você poderá ir para as vias de fato quando a sua população realmente ansiar pelo conflito.

Foi um pouco complicado entender o que faria meu povo sentir tamanha raiva a ponto de querer se digladiar com seus vizinhos. O maior fator, na minha opinião, são as crises diplomáticas – em especial as que envolvem um território cuja maioria da população se identifica com uma cultura diferente da que, de fato, possui o domínio local. 

É melhor ir pelo caminho da liberdade ou do autoritarismo?

Assim como na vida real, quando o estado dominante força políticas que vão contra a cultura vigente na área, a população da mesma cultura adquire um sentimento de raiva, pressionando por mudanças que, muitas vezes, envolvem o uso da força – basta ver a questão palestina ou o conflito de Nagorno-Karabakh. Porém, se você não ligar para as consequências negativas de não ter uma justificativa para a violência, atacar de surpresa também é uma estratégia viável.

A construção de um império

Às vezes batalhas não são a melhor maneira de se impor como força dominante. Você pode até ter sucesso dominando boa parte do mapa, mas se manter no topo é muito mais complicado. Em Humankind, a estabilidade é um dos indicadores mais importantes, pois mostra o quanto você pode expandir a sua produção sem que rebeliões aconteçam.

Se você quer criar mais distritos, saiba que cada um deles reduz a estabilidade da cidade. Pela mecânica do jogo, isso ocorre pois os cidadãos, ao receberem mais trabalho, demandam mais serviços de bem-estar. Se o número ficar muito baixo, além da possibilidade de revoltas, eventos negativos podem surgir, criando uma dor de cabeça desnecessária.

Além dos pontos de influência, a religião é outra mecânica que impacta todo o jogo. Em um certo ponto da sua campanha, você será perguntado para qual rumo deseja levar a sua religião: politeísmo ou shamanismo. Pelos meus cálculos, o shamanismo seria a pior opção para um início de jogo, já que a fé gerada é baseada no número da sua população. O politeísmo, por sua vez, aumenta a sua fé baseado no número de territórios anexados. Quanto mais seguidores a sua religião conseguir – se espalhando pelo mundo com base nos pontos de fé –, maiores serão os bônus disponibilizados.

Sim, eu falhei brutalmente em expandir a minha religião.

Entretanto, existem poucas opções dentro desse esquema. A escolha é apenas limitada apenas a politeísmo e shamanismo, não sendo possível evoluir ou trocar no decorrer do jogo. Além disso, os bônus desbloqueáveis são úteis, mas bastante limitados. É de se esperar que conteúdos adicionais sejam lançados no futuro a fim de expandir o sistema religioso.

Uma nova visão tática

Voltando um pouco para o ponto das batalhas, há uma diferença entre Humankind e outros títulos similares. Enquanto que em jogos como Civilization 6 o jogador depende bastante do fator sorte quando batalha com tropas rivais, Humankind permite que as unidades da batalha sejam controladas de uma maneira mais próxima.

Na prática, isso significa que uma tropa pode ter várias unidades diferentes que podem ser gerenciadas manualmente a nível individual em um combate. A possibilidade de um exército menor e mais fraco triunfar em uma guerra aumenta, já que existem diversas variáveis que influenciam durante a briga. 

Colocar seus arqueiros na linha de trás, por exemplo, é uma estratégia eficiente, já que eles possuem uma fraqueza no combate corpo a corpo, mas podem atacar à distância. Contudo, o tipo de terreno também influencia na batalha, e atacar de cima, por exemplo, pode ser melhor do que mover uma unidade para defender a outra. Além disso, alguns terrenos não podem ser atravessados diretamente, e será necessário utilizar um caminho maior para dar a volta e conseguir a vantagem.

A disposição das tropas lembra Advance Wars.

O controle a nível individual aparece também nos cercos. Além das tropas estacionadas, você poderá utilizar as muralhas e a sua própria população para se defender, caso esteja defendendo. No ataque, você poderá construir ferramentas de cerco para, assim, destruir as fortificações inimigas e adquirir vantagem. Em meu jogo, porém, a inteligência artificial não soube lidar com as tentativas de cerco de ataque, ficando estacionadas em um local e perdendo a batalha por simplesmente não se mover.

Veredito e perspectivas para o futuro

Não é fácil se inserir em um mercado já estabelecido. A missão de Humankind é, realmente, difícil, mas o que os desenvolvedores apresentaram por aqui mostra que, ao contrário do que parece, há sim o que ser explorado e expandido no gênero. 

Permitir a mudança de estilo de jogo é, sem dúvidas, o grande diferencial do título. Os jogos similares são bem limitados quanto a adaptação do jogador às circunstâncias que o jogo lhe impõe. Humankind faz um belo trabalho em mostrar que é possível sim dar opções que favoreçam mudanças – ou até mesmo combinações – de estilo no decorrer da partida.

BRAZIL MENTIONED!

Mudanças pontuais, como o sistema de combate e as interações diplomáticas, também são bem-vindas. Entretanto, por ser um lançamento, ainda existem áreas que podem receber uma atenção extra no futuro – como, por exemplo, a religião. Além disso, pequenos bugs da inteligência artificial, como no caso dos cercos, ainda aparecem, mas devem ser corrigidos em breve.

Para os fãs do gênero de estratégia, Humankind é um jogo obrigatório na biblioteca de jogos. Os jogadores mais experientes não precisarão de muito tempo para se adaptar às novas mecânicas, sendo necessário apenas compreender pequenas nuances técnicas que diferenciam esse título dos demais. Mesmo que jogos de estratégia – sobretudo os 4X – não sejam a sua praia, Humankind oferece um bom tutorial, mostrando tudo o que você precisa saber para conquistar o mundo. De fato, o que se tem em mãos são as fundações de um jogo excelente que, se tudo ocorrer bem, deve ficar ainda melhor com atualizações e conteúdos adicionais.