Heavy Rain é um soco no estômago da narrativa convencional. Um soco no estômago em que você precisa segurar os dois botões do mouse e empurrar para baixo enquanto aperta W ou S ou Left Shift, mas ainda assim um soco bem dado naquilo que entendemos como jogo ou história multimídia.
Acompanhando o ponto de vista de quatro personagens diferentes em capítulos que se entrelaçam, a Quantic Dream convida o jogador para um experimento que tinha tudo para revolucionar a forma como encaramos os jogos eletrônicos, mas é atrapalhado por escolhas estranhas de design e problemas de imersão.
“Jason! Jason?! Jason!!”
De imediato, controlamos um homem de cuecas em sua casa e nos próximos vinte minutos passaremos por situações que não costumam aparecer a toda hora no seu PC (ou PlayStation, na época do seu lançamento). Controlando Ethan Mars, iremos sacudir o mouse para beber leite direto na caixinha, tomar um banho gostoso, fazer xixi, arrumar os pratos na mesa ou até mesmo brincar com as crianças. Embora essa última ação seja um sopro de criatividade e leveza que poderia inspirar outros jogos, é questionável a obsessão da Quantic Dream com as outras interatividades.
A estranheza de Heavy Rain segue em um momento fundamental da narrativa. Não é spoiler algum a esta altura do campeonato, nove anos depois do jogo aportar no PlayStation 3, revelar que um dos filhos de Ethan irá desaparecer no inicio do jogo. Os gritos de “Jason? Jason!” viraram um meme e foram incorporados ao imaginário dos jogos eletrônicos, enquanto o pobre Ethan tenta não perder o garoto de vista em meio a um shopping center lotado. É um momento que angustia qualquer pai que já tenha passado por situação semelhante ou tido pesadelos com isso, ou qualquer um que tenha estado no lado oposto da moeda e se perdido de seus pais no supermercado. Entretanto, esse também é um momento que me angustiou no sentido que eu consegui literalmente posicionar meu Ethan do lado de Jason e, mesmo assim, o personagem insistia em clamar por um filho que o jogo destinava a se perder. Vai-se a imersão, fica a vergonha alheia, uma sensação que lamentavelmente irá ditar a tônica de várias partes do jogo.
Essa anedota ilustrativa é uma síntese da força e do ponto fraco de Heavy Rain. O título da Quantic Dream não tem medo de mexer com temáticas adultas e medos típicos da paternidade, enquanto constrói uma trama de suspense e tragédia que prende o jogador na cadeira. Por outro lado, falhas de design insistem em esvaziar o impacto de algumas cenas e lembram a todo momento que estamos diante de um jogo, que tenta a todo custo se distanciar da linguagem cinematográfica e se justificar como uma experiência interativa. A impressão que passa é de insegurança dos desenvolvedores.
Cada um dos quatro protagonistas de Heavy Rain, o desesperado Ethan Mars, o agente do FBI Norman Jayden, a jornalista Madison Paige e o detetive particular Scott Shelby, é magnificamente renderizado, com um close extramente detalhista de seus rostos funcionando como tela de carregamento. Essa obsessão por realismo não se traduz apenas nos gráficos e na captura de movimentos impressionante, mas está presente também na personalidade relativamente detalhada de seus personagens e suas motivações.
Ethan oscila entre a intensidade e a letargia, como um pai abalado pela tragédia que precisa agir para evitar algo pior. Norman Jayden tem uma autoridade e um conhecimento que ele não consegue fazer prevalecer diante de um sistema policial podre. Madison Paige demonstra coragem e fibra para ir até onde for preciso para ajudar, mesmo sendo arrastada para o mistério por força do acaso. Por sua vez, Scott Shelby também tem suas falhas e vai de um extremo ao outro, do bom samaritano a um truculento risco a quem se coloca no seu caminho.
Suas quatro histórias vão se cruzar e Heavy Rain está preparado para não colocar nenhum deles no centro da narrativa. Oficialmente, cada um deles é descartável e a história pode prosseguir mesmo que o jogador provoque a morte ou o encarceramento de um deles. Na verdade, é impossível concluir o jogo com os quatro vivos e o resultado será determinado pelas decisões de quem joga, para o bem ou para o mal. O jogador precisa decifrar o mistério do Origami Killer, um assassino serial que sequestra crianças e as afoga, e o tempo está se esgotando para Shaun Mars, o segundo filho de Ethan, em poder do psicopata.
Interatividade a qualquer custo
David Cage, o todo-poderoso da Quantic Dream, é um visionário. Desde Omikron – Nomad Soul, o primeiro título da desenvolvedora, ele busca romper as barreiras entre vida real, jogo e cinema. Por um lado, temos ângulos e atmosferas que buscam um paralelo com os filmes. Temos aqui visões que zombam da câmera convencional dos jogos, telas divididas para eventos paralelos, a chuva atuando como um elemento onipresente que evoca a obra de Ridley Scott nos anos 80/90 (e serviu como propaganda do poder gráfico do PlayStation 3). Do outro lado, temos a “gamificação” de gestos e ações típicos do cotidiano, em uma tentativa ora genial, ora patética, de reinventar os eventos “quicktime” e redefinir o que se espera de um adventure.
Em seus grandes momentos, Heavy Rain vai obrigar o jogador a salvar uma mulher do suicídio, cuidar de ferimentos diversos, cortar um dedo fora, brincar de gangorra, dirigir na contramão e travar combates corporais extremamente fluidos com movimentos do mouse ou teclas pressionadas no momento certo. Em outras ocasiões, o jogador irá se perguntar qual é a função de trocar uma fralda de bebê, esquentar uma comida no micro-ondas ou subir um barranco enlameado no grande esquema das coisas. Determinadas interações parecem estar ali apenas para alongar a duração do jogo ou para testar até onde era possível ir nessa busca pela interatividade.
Não há como não esboçar um sorriso ao ver a felicidade nos olhos de uma criança digitalmente impecável quando você a faz “voar” nos seus ombros. Não é todo jogo que proporciona algo nesse nível de intimidade casual. Por outro lado, me vi me perguntando porque meu personagem precisa apertar dois botões no mouse para tomar um café e como é possível errar em algo tão rotineiro.
Não tive a experiência de jogar Heavy Rain em consoles, mas posso atestar que os comandos no PC são alienígenas. Em momentos cruciais, quando a vida de um personagem estava em jogo, me vi segurando o mousepad com uma mão para ele não sair do lugar, enquanto usava a outra mão para sacudir o mouse na velocidade ou no ritmo exigidos pela situação. Em outras partes, me vi frustrado por não conseguir executar coisas tão simples como abrir uma porta.
Vale da estranheza
Voltando aos gráficos do jogo, eles trazem uma verossimilhança que flerta com o incômodo. É difícil de acreditar que Heavy Rain tenha quase uma década nas costas. Porém, essa proximidade com o real tem um preço: o olhar se distrai com os movimentos imprecisos das bocas e os ouvidos sofrem com a interpretação inconsistente dos atores. Ainda estou indeciso se parte da fraqueza de personalidade de Norman Jayden influenciou o ator ou se o trabalho morno do ator influenciou minha percepção do personagem.
Esses choques entre o real e o irreal quebram o contrato de imersão. Apesar da captura de movimentos dedicada realizada pela Quantic Dream, que permite combates impressionantes por scripts interativos, não é possível prever todas as variáveis e muitas vezes os personagens parecem “Robocops” em cena, com o corpo indo em uma direção enquanto a cabeça vai para outra, ou posam parados em posturas desconfortáveis aguardando uma intervenção do jogador. Para um adventure (?) que se pretende tão revolucionário, em muitas cenas os protagonistas se comportam como Guybrush Threepwood, olhando estaticamente para o infinito.
Apesar de tantas falhas em seus aspectos de jogabilidade, frutos com certeza de uma meta ousada demais da desenvolvedora, Heavy Rain é uma experiência inesquecível, um título obrigatório para quem deseja sair do arroz com feijão dos outros jogos eletrônicos. Essa sensação é amplificada pela trilha sonora magistral que envolve o jogador do começo ao fim, sem interferir diretamente na narrativa, mas atuando com precisão como um moderador de sentimentos.
Independente do final que você obtenha, Heavy Rain será mesmo um soco no estômago. Perguntas ficarão sem respostas, como os lapsos de memória de Ethan ou a habilidade de Madison de estar sempre no lugar certo na hora certa, e o epílogo abre brechas para uma continuação que nunca irá existir. Ainda assim, nessa cidade assolada pelo crime e pela chuva incessante, você irá contemplar a ambição de David Cage e ansiar por suas próximas investidas, Beyond: Two Souls e Detroit: Become Human.