Devo dizer logo de cara: como é bom testemunhar o crescimento de uma desenvolvedora de promessa como a Spiders! O estúdio francês fez a maior parte de seu percurso nos RPGs de ação, com resultados bastante variáveis, mas agora parece ter enfim decolado com seu mais novo título, Greedfall, ambientado durante uma era de colonialismo em um mundo repleto de elementos fantasiosos.
Construindo sobre o progresso feito em The Technomancer, o último game de sua série cult Mars, em Greedfall os devs entregam sua experiência mais rica até então ao apostar em um contexto curioso – e não tão explorado em games -, o colonialismo, e polir suas mecânicas ao ponto de torná-las realmente sólidas, seja o desenrolar de quests, o combate equilibrado ou a exploração.
Outro conto da praga
Talvez pela ambientação similar ou por escolhas de design, Greedfall remete inicialmente a certos games do fim da sétima geração de consoles, em especial Assassin’s Creed III e IV. No bom e no mau sentido, já que o ato introdutório do game da Spiders se mostra como seu mais fraco e arrastado, passando uma má primeira impressão ao testar as mecânicas do game em um mapa limitado por algumas horas.
No entanto, esta impressão fica como tal assim que o game se abre, chegando à imensa ilha de Tir Fradi, onde o senso de aventura cresce e o jogador deverá se ver diante de diversas possibilidades, tanto de exploração quanto customização. Além disso, a trama básica logo se desenvolve através de temas e reviravoltas cativantes, que por vezes surgem de maneira repentina e chocante.
O(a) protagonista customizável, referido (a) no game apenas como De Sardet, ocupa a função de emissário da congregação que chega à ilha para governá-la. Seu principal governante, Constantin D’Orsay, é primo de nosso(a) personagem e depende dele para alcançar a paz entre os diferentes que habitam Tir Fradi e também a descoberta da cura para uma praga que assola sua terra natal.
Como uma espécie de Shepard, De Sardet pode ser confundido como um faz tudo, mas que possui um arco pessoal mais interessante do que inicialmente o game leva a crer. Sua conexão com a ilha, a relação com o primo e a culpa que sente de deixar a mãe doente em casa correm em paralelo com seu papel na política de Tir Fradi, e por mais que não alcance o brilhantismo de um Mass Effect 2, há peso considerável para diversos acontecimentos por ele encadeados.
Na jornada, serão encontrados novos parceiros de exploração, provindos desses diferentes povos e facções. Embora seja possível levar no máximo dois companheiros a cada aventura, todos são bem customizáveis e, mais do que isso, oferecem missões de lealdade individuais a fim de melhorar sua relação com o jogador e desbloquear bônus de atributos. Ou seja, são muito mais do que bonecos para se vestir com novas armaduras.
Além de atributos, é importantíssimo selecionar seus companheiros de forma criteriosa antes das missões. Se a atual operação exige entrar em contato com um líder nativo da ilha, a presença da também nativa Síora em seu grupo permitirá que se convença o líder com mais facilidade, ou ao menos fazê-lo compartilhar uma informação adicional. Em outro caso, se o jogador ofender o nativo, ela também irá se ofender e perderá parte da confiança em De Sardet.
Capital social e político
Mas como cada um dos companheiros atende a um diferente atributo, como por exemplo o religioso Petrus, que garante um bônus de carisma, e o ex-militar Kurt, que permite aumentar em 1 sua habilidade de criação de itens, nem sempre o sucesso será garantido ao delegar sua equipe conforme suas facções / etnias. Há também, como em Fallout, estimativas de chance de sucesso, então não fique convencido – consequências também podem surgir a longo prazo.
Esta intersecção entre as narrativas principais e secundárias com as mecânicas, portanto, se mostra satisfatória já por esse aspecto, exigindo que De Sardet pense em cada uma de suas ações e seja realmente dedicado na solução dos problemas de seus novos amigos – e possíveis inimigos – para garantir que sua missão na ilha não seja um fracasso retumbante. E falhar, certas vezes, é inevitável.
Como há cerca de oitenta quests no game, sem muita firula, e algumas determinadas podem até mesmo se cancelar de acordo com a direção da trama, tem-se a boa impressão de que o conteúdo desenvolvido pela Spiders foi feito estrategicamente para que o jogador tire o máximo que pode da experiência sem enrolações, ainda assim passando facilmente de trinta horas de jogo.
Para o sucesso da narrativa de Greedfall, dois fatores são integrais: roteiro e dublagem. Se em The Technomancer a Spiders havia mostrado certo talento em desenvolver mundos complexos mas não necessariamente interessantes, aqui a dev aposta em elementos familiares agrupados em um pacote que, pelas poucas ocasiões em que vemos tais elementos misturados, se torna peculiar.
Certas quests e questlines até demonstram uma progressão a par dos melhores action RPGs, como uma certa linha de missões focada na investigação da morte de um recruta militar, acontecimento que revela outros problemas muito maiores, como abuso de autoridade dentro de uma instituição. Talvez o nome do recruta, Reiner, se deva a alguma inspiração no filme Questão de Honra, dirigido por Rob Reiner?
O trabalho de voz, por sua vez, se mostra impecável, em cutscenes e durante o gameplay. A atenção dedicada aos diferentes sotaques e dialetos da ilha, assim como a competência do elenco, garantem por si só algum envolvimento com as diversas quests, que raramente são espetaculares como as de Dragon Age ou The Witcher mas sempre cumprem o básico necessário para se distinguirem entre si, além de se aprofundarem.
Desbravando Tir Fradi
Deve-se ressaltar também que a sonoridade de Greedfall é deslumbrante. A trilha sonora original de Olivier Deriviere, que está numa sucessão quente de acertos que não parece se encerrar em breve, carrega nas faixas orquestrais e exibe boa variedade de temas entre cidades e campos, sempre com uma atmosfera de descoberta – não à toa, remete John Williams e Jerry Goldsmith.
A apresentação do game não é a única parte caprichada. Sem querer dar a impressão de ter subestimado o estúdio de Jehanne Rousseau, mas as muitas – muitas! – mecânicas de RPG estão muito além do que haviam exibido em 2016 com The Technomancer. Aqui, comandos são responsivos, a customização é profunda, a interface de usuário é eficaz e clara, e as animações são elegantes.
Na parte da exploração, Greedfall melhora conforme avança. Com o desbloqueio de novas áreas externas e internas, o jogador se verá diante de caminhos distintos para um mesmo objetivo, como uma parede que pode ser escalada com determinado nível de vigor e outra que pode ser derrubada com uma bombinha, que depende de conhecimento em ciência para ser fabricada.
Enquanto isso, o combate, que aparenta, de início, um tanto genérico, se mostra igualmente mais metódico e mais fluido do que é esperado de um game deste porte. Desde o tutorial, há uma boa noção de como comandos são mapeados e do timing necessário para se ter sucesso, ou seja, não coloca o jogador de cara para uma parede e nem sacrifica demais o desafio, evitando a frustração de títulos como Elex e Fade to Silence.
Árvores de habilidade, melhorias em itens individuais como armas e armaduras e a disposicão dos companheiros ainda garantem uma economia equilibrada de risco e recompensa. Aquele que preferir atacar à distância pode investir em anéis mágicos, mas não podem esquivar de forma tão eficiente quanto os fãs de curta distância, que terão mais agilidade ao mesmo tempo que se tornam vulneráveis a ataques mais devastadores de inimigos e chefes.
Mas como não há um sistema de classes imposto ao jogador – há três presets iniciais de atributos e habilidades – e as árvores de habilidades são livres, há a possibilidade de tornar o combate um pouco mais fácil do que o recomendado. Quando se tem a armadura certa, as habilidades certas e os companheiros certos, o desafio muitas vezes se dilui, e mesmo que o game continue divertido, perde aquele mesmo sentimento de satisfação. Apenas certos inimigos que surgem rumo ao fim da trama representam maiores ameaças.
Já a Pausa Tática, que congela a ação para coordenar melhor os comandos, quase fica em desuso. A única coisa que impede Greedfall de tornar-se tão fácil, então, é o ritmo com que se progridem as levels, já que pontos de atributos e de talento são desbloqueados a cada três ou quatro níveis. Porém persiste uma impressão de que o combate poderia se renovar com mais frequência para compelir o jogador a fazer decisões diferentes a cada novo encontro com inimigos.
A soma exata de suas partes
Ao menos, nunca torna-se um button mashing descerebrado. Tendo jogado cerca de vinte e sete horas e chegado, por coincidência, ao nível 27 de personagem, Greedfall até o momento não se assentou como uma experiência cansativa ou redundante. Ok, talvez algumas missões secundárias dependam demais da fórmula “vá ao ponto A, depois ao B, de volta ao A e por fim C”, mas até The Witcher 3 não está livre deste fardo.
Por falar nisso, vale ressaltar que, em comparação com o game da CD Projekt RED ou mesmo os títulos da Bioware, Greedfall se beneficia de uma objetividade maior. Oitenta quests realmente não parecem tanto, mas também são mais do que se imagina quando o game em questão é prazeroso de jogar. Por outro lado, isso também permite que se retorne à experiência sem boiar demais no restante da história.
Claro que, em quesitos gráficos, Greedfall não alcança o patamar de certos títulos AAA, mas a performance técnica do game agrada. Além da implementação de 4K e HDR, a taxa de quadros é das mais sólidas e os carregamentos estão sempre na medida, nunca se excedendo. Já na qualidade visual, pode-se dizer que parece uma amálgama entre a sétima e a oitava gerações, porém com uma direção de arte de primeira e iluminação chamativa.
Já do lado dos bugs e glitches, avistei pouquíssimos. Uma única vez, um chefe ficou imóvel em sua posição, praticamente entregando a vitória, e em outra, no que mais parece uma decisão deliberada de design, o ícone de objetivo indicava o local errado para a missão – embora, novamente, deva ser proposital a fim de fazer o jogador ler um certo documento coletado com atenção.
Em suma, Greedfall é tão eficiente no que faz que chega a desafiar o uso do termo “eurojank”, usado para se referir a games europeus com animações caracteristicamente mais rígidas. Para os órfãos de Dragon Age, será um deleite. É um dos raros casos atuais do game que é exatamente a soma de suas partes, nem mais nem menos. Se essas muitas partes lhe apetecem, então o único grande pecado de Greedfall será o excesso, o que já é bem melhor do que a escassez.