Ficar olhando para o tempo passar e ponderar sobre a iminente entropia que consome o cosmo e nossas vidas diariamente não irá nos levar a lugar algum. Pensando nisso, Flat Eye, um simulador de gerenciamento de loja, te fará trabalhar enquanto estes e outros assuntos batem à sua porta através de uma seleta clientela.
Se passando em um local da Islândia, nossa pequena lojinha deve ir evoluindo até se tornar o ápice do sonho de consumo moderno, trazendo inovações tecnológicas, uma linha de produtos da marca Flat Eye e a necessidade diária de que nossos clientes se mantenham fiéis à marca. Tudo isso enquanto alimentam uma inteligência artificial.
São $7,00 e um pedaço da sua alma
O mundo corporativo se assemelha a um moedor de carne: você entra como um filé de alcatra saudável e vermelho, cheio de sangue e vida, mas lá dentro é triturado e misturado com outros e, quando sai, o que sobra é aquela carne escurecida, sem originalidade e com alguns dígitos a mais na conta bancária.
Flat Eye traz uma interessante e imersiva narrativa que atinge o jogador com diferentes abordagens, sejam elas em prol da empresa ou a favor de seu encerramento. Essas infinitas tangentes colocam assuntos como liberdade profissional, objetivos de vida, arte, morte e até mesmo o inevitável fim da humanidade em cheque.
Uma interessante narrativa iluminada por diferentes holofotes e com gameplays distintos, uma vez que – tal como a IA da Flat Eye – o jogador irá aprender mais (ou menos) de acordo com suas escolhas. Uma determinada escolha pode fazer o cliente VIP se abrir de uma maneira inesperada. Já outra escolha pode fazer com que ele volte e fale menos do que antes.
Dificilmente os clientes quebrarão o ciclo de frequentar o local, sejam eles do tempo atual ou vindos do futuro distante em busca de impedir a Flat Eye. Resta ao jogador decidir qual caminho irá seguir: se obedecerá os frios comandos da máquina, simplesmente negando toda e qualquer interação humana, ou se irá ensinar compaixão ao cérebro artificial.
Vida de operário
O seu atendente é um apêndice da vontade do jogador, sendo ele a única maneira física de interagir com o ambiente da loja da Flat Eye. Dessa maneira, fica sob a sua supervisão atender e conversar com clientes VIPs, seja para o bem ou para o mal.
Alguns são simples transeuntes, outros são membros da corporação hacker Novos Dezembristas, e há também aqueles que trabalham para a rival da Flat Eye, uma empresa chamada Hibiscus. Conversar com eles, no entanto, é apenas uma das tarefas realizadas por nosso atendente.
As prateleiras da loja não irão se preencher sozinhas e, no começo, é necessário alguém que passe a compra dos clientes manualmente. Função que mais para frente pode ser automatizado com o uso de self check-outs instalados no local. Construção e reparo de módulos também fazem parte da rotina do atendente.
É importante ficar de olho na barra de proveito e felicidade de seu atendente e na de reparo das máquinas. Afinal, um atendente insatisfeito irá atrapalhar seus lucros e será menos prestativo. E as máquinas muito danificadas aumentam o risco de morte por acidente de trabalho, o que fará com que você tenha que treinar e pagar um novo funcionário. Mesmo que ninguém note que ele morreu, além dos CEOs, é claro.
O zen empresarial deve fluir
Os clientes dificilmente notam a mudança do atendente. Pessoalmente, achei que isso quebra um pouco a dinâmica da crítica que o game faz. Usando a criatividade aqui, é como se os atendentes vivessem em uma espécie de consciência coletiva, onde se lembram de conversas e escolhas tomadas por atendentes que estiveram lá antes deles.
A chance de morte por reparos está sempre relacionada à má revisão dos equipamentos. Para garantir que eles funcionem perfeitamente, o jogador deve sempre se assegurar que as barras estejam altas, o que permite aos atendentes intervalos para repor as energias e clientes satisfeitos. Usando os pontos ganhos ao subir de nível, novas tecnologias, módulos e formas de gerar recursos são desbloqueadas.
Os recuros são energia, bio-matéria, DNA e dados. Energia pode ser adquiria através da queima de lixo nas fornalhas instaladas no local ou através de máquinas que absorvem o calor e vapor de gêisers na região. Biomatéria é adquirida também através das fornalhas, mas também vem dos dejetos coletados pelos banheiros smart do local.
Dados servem como internet e DNA alimentam as máquinas destinadas à área medicinal. O ideal é começar com um pouco de cada na grade de ligações e depois aproveitar o máximo possível, além de criar uma sala para cada tipo de produto quando puder expandir ainda mais o local onde fica sua Flat Eye.
O dia a dia para uma mente robótica
Flat Eye tem uma soturna abertura, com um curto tutorial de como gerir a loja. Você é o gerente virtual que assiste a sua unidade da Flat Eye através das câmeras, ainda que o jogo te permita ter uma visão livre pelo cenário. Mas, no fim das contas, o que realmente conta é a imersão.
Controlando seu atendente de maneira semelhante a um jogo de The Sims, porém com menos opções de ação, você deve fazer com que a unidade esteja sempre em seu ápice, mantendo os clientes normais e VIPs contentes e satisfeitos. Com isso você expandirá constantemente a linha de produtos e equipamentos da Flat Eye disponíveis para uso.
Ao fim do dia, infelizmente, este primeiro atendente não chega a fechar a loja. Ele acaba sendo morto por um dos clientes VIP, vindo diretamente do futuro em busca de evitar um apocalipse causado pela IA da Flat Eye que nos ajuda e guia durante o jogo.
Com essa informação de fim eminente, cabe ao jogador guiar as interações com os clientes VIP em busca de alterar o algoritmo da Flat Eye a ter empatia ou sentimentos de compaixão para com o futuro do planeta e raça humana. Algo bem difícil, uma vez que várias cidades e países já foram abandonados pela sua população por conta de mudanças climáticas.
Uma luta de megacorporações
O destino está nas mãos do jogador, que como gerente deve escolher o que servir e como servir aos seus clientes, também escolhendo as respostas de seu atendente e ao interagir com outros membros da Flat Eye, como coordenadores, outros gerentes e até CEOs via redes sociais. Interações estas que podem auxiliar ou atrapalhar sua evolução.
Os serviços e produtos da Flat Eye se espalham por diversas áreas, que vão desde produtos do dia a dia até espelhos que analisam sua fisionomia e organismos afim de indicar os melhores produtos. Isso inclui impressoras 3D, comidas e bebidas instantâneas criadas a partir de dejetos humanos, e produtos reciclados nas fornalhas internas de queima de lixo orgânico ou não.
Afinal de contas, não é por que estamos no “futuro” que a necessidade por matéria-prima acabou. Na realidade ficou até mais escassa, tornando a reciclagem essencial. O consumismo se torna uma Ouroboros em Flat Eye, ao consumir os próprios dejetos dos produtos, alimentos e bebidas que cria, com a finalidade de continuar criando ainda mais.
Sempre que um dia começa, o jogador (gerente) deve checar suas mensagens e documentos que a inteligência artificial libera sobre a empresa. Muitas vezes são conversas e informações sensíveis aos jogadores e público deste mundo, que poderiam arruinar muitas vidas.
Nada vi, nada ouvi, mas falei
Com acesso a estas informações, parte do jogador como vai inferir com a clientela em busca de moldar a forma que a Flat Eye age e vê o futuro da humanidade e do planeta Terra. Para isso, é preciso se tornar o melhor gerente possível. Sendo assim, é necessário que o jogador se torne o mais experiente gerente que já existiu e para isso temos o aplicativo Flat Luck.
Sempre que o jogador inicia o sistema para o próximo dia, é necessário que – antes que a loja se abra – ele puxe cartas no Flat Luck. O app funciona como um tarot corporativo, dando ao jogador tarefas para aquele dia, como instalar novos módulos, novos itens, terminar com x dinheiro no caixa, ou que determinado produto ou módulo seja usado X vezes, entre outros.
Realizando essas tarefas você ganha metade de uma estrela, sendo necessárias cinco para passar de nível. O número de cartas é determinado pelo nível do jogador, mas você pode sempre pegar uma a mais, duplicando para uma estrela cada tarefa completada, mas retirando meia estrela para cada uma não cumprida.
No caso de algum evento ou assunto abordado em Flat Eye ser nocivo ou acabar deixando algum jogador desconfortável, há uma longa lista de temas que podem ser evitados na trama. Esta filtragem ajuda a entregar uma experiência apropriada e, de certa forma, acolhedora.
Quatro horas de uma quarta-feira, semana encerrada
Flat Eye é uma experiência de simulação agradável, convidativa e que faz o jogador questionar certos aspectos da vida moderna, como o hyper consumismo e a alta dependência de produtos de marca que monopolizam o mercado, bem como alimentos processados industrialmente tomando cada vez mais espaço nas prateleiras.
Trazendo fatores do mundo real, como prova sua extensa bibliografia, Flat Eye desenvolve uma narrativa que leva o jogador a ponderar sobre o quão importante (e o quão assustador) é o poder de um algoritmo. Uma tecnologia capaz de colocar o destino da raça humana na balança ao examinar e absorver dados sobre cultura, estilo de vida e outros pontos que podem parecer tão triviais, mas moldam a nossa existência.