Se ver perdido durante certos períodos da experiência humana pode ser uma experiência desesperadora para certas pessoas, que acabam se sentindo presas nestes momentos. Em Decarnation, o jogador acompanha a história de Glória, que se vê presa tanto psicológica e emocionalmente, quanto físicamente.
Uma dançarina talentosa se vê presa em um declínio constante físico e mental após ser capturada pela sua arte e aqueles que a admiram. Seguindo uma ideologia fora dos medos masculinos, Decarnation traz uma experiência que reflete muito do que já vimos em Silent Hill 3 e também do que ouvimos.
Dançando na luz fria fluorescente do cativeiro
Decarnation é um jogo pesado que traz a tona medos e pavores de mulheres que enfrentam o mundo do entretenimento, principalmente o noturno. Glória, protagonista da história é uma talentosa dançarina no clube Cisne Negro, atraindo e hipnotizando clientes com suas performances, mesmo que não pornográficas em natureza, não despertem o desejo nas massas que consomem seus shows.
Glória parece ter tudo no momento, uma namorada amável, um emprego estável e até mesmo uma estátua sua sendo feita em bronze. Tudo ia bem até o dia da estreia da estátua, após ver um homem se esfregando e beijando a estátua a vida de Glória entra em uma espiral caótica, onde verá tudo ruir, incluindo sua sanidade, que parece interferir com a realidade.
Uma raio de luz no entanto ilumina Glória no entanto, através do convite de um de seus maiores admiradores, o dono do Grupo Saint-Louis. Oferecendo a ela um cachê imenso e liberdade criativa total sobre espetáculos mundo afora caso Glória escolha se unir a eles, mal sabe ela que tudo não irá passar de espelhos e fumaça.
Acordando em um quarto mobiliado, sem janelas, apenas uma porta de aço e uma câmera sempre a observando, Glória vai viver um longo inferno psicológico e emocional nas mãos do seu sequestrador, conhecido apenas como “O Mestre” e seu talentoso serviçal Bob.
Explorando os cantos da mente
Presa em uma suíte de luxo de no máximo trinta e cinco metros quadrados e sendo tratada como uma divindade pelo misterioso mestre de Bob, Glória irá enfrentar demônios internos enquanto sobrevive isolada neste cômodo onde pode ter tudo que queria, contanto que não seja relacionado ao mundo externo.
Nestas viagens pelos seus traumas antigos e novos, o jogador irá explorar uma versão depredada de Paris, enquanto resolve quebra-cabeças no controle de Glória. Fugindo de criaturas que surgem das sombras e tentam devora-la, vendo versões sua de diferentes épocas que já passaram e estão por vir, além de versões deformadas e monstruosas.
Decarnation é como um antigo jogo de aponte e clique, com o jogador explorando o ambiente e realmente batalhando em uma parte do jogo contra um chefe específico. Todo o resto é feito através de solução de quebra cabeças e quick time events. Seja para atravessar obstáculos, dançar, se exercitar ou fugir.
A narrativa parece se passar em três momentos distintos, sendo um antes do aprisionamento de Glória, um durante seu confinamento e as seções onde vagamos pelo mundo criado pela sua mente. Podemos até mesmo interagir com criaturas feitas de pano colorido que parecem habitar o local e refletir as escolhas de Glória, além da jovem menina que aparece vez ou outra e a senhora chamada de Trança Grisalha.
Sobrevivendo ao Pequeno Santuário
Com sua mecânica e visuais simples, Decarnation é um jogo bem tranquilo, profundo e com uma atmosfera sufocante, não é a toa que logo ao abri-lo o jogador se depara com um enorme explicativo dos temas presentes no jogo e que podem ser gatilho para certas pessoas. Trazendo o desejo apenas de consumo da entidade feminina como algo que é ao mesmo tempo imaculado e sexual, como o que Heather vive em Silent Hill 3.
Como disse no começo do texto, aqui temos outro título que é bem mais voltado a medos e riscos do universo feminino; é impossível de algo assim acontecer com um homem então? Não, porém é bem menos provável, afinal não se ouve tanto sobre strreamers ou dançarinos sendo assediados, ameaçados ou até mesmo agrerdidos em shows ou canais de streaming como Twitch e YouTube.
Com um visual pixelado e trabalhando com cenários menores muitas vezes, Decarnation consegue criar composições em camadas que são impressionantes. Os visuais me lembraram muito de uma das minhas obras favoritas, Perfect Blue e também de sua cópia escancarada, O Cisne Negro. A dificuldade de saber o que é real, o que é interno e o que é ilusório ou passado na vida de Glória mexe com a cabeça do jogador
Para complementar este coquetel inspiracional em Silent Hill, Decarnation possúi dez faixas produzidas por Akira Yamaoka, o mestre das faixas de horror. O que é realmente interessante, já que Decarnation se passa na França e um dos últimos trabalhos coletivos marcantes de Akira é o álbum francês Là où les coeurs se pendent.
Simpatizando com os demônios
Mesmo com tantas inspirações na famosa série da Konami e filmes e obras de Satoshi Kon, Decarnation é uma obra própria, com ideias únicas a si e um desfecho muito bom. tanto que o fato de ser razoavelmente curto e seu maior problema. O jogo não é tão desafiador que chegue a te deixar preso em alguma parte e é bem fácil de se fechar.
Decarnation é uma obra que poderia ser bem mais expansiva, mais ousada em criar um verdadeiro mundo de horrores que encapsule e mostrasse outros personagens que ficamos aguardando conhecer, como os vizinhos de Glória por exemplo. Ainda assim, a maneira como o jogo aborda os conflitos é interessante.
Ao invés de agredir seus demônios, Glória busca entende-los e trabalhar neles de maneira diferente do que estamos acostumados em jogos de horror, como balas, armas e porretes. Uma experiência interessante, uma vez que vi minha própria mãe enfrentar tais batalhas mentais, já que a mesma cantou a vida toda, principalmente a noite.
Não espere um Silent Hill em Decarnation, mas sim uma excelente obra audiovisual que irá mostrar aos jogadores que nem mesmo seus demônios interiores, Bob ou seu mestre, podem impedir que Glória abra suas asas como um cisne e alce vôo para fora de sua cela.