Um mês e alguns dias quebrados. Esse é o tempo que fiquei sem alimentar meu bizarro Freakview. Afinal de contas, é preciso caçar inspiração para os textos e assuntos diferentes. Para aqueles que acompanham, podem ficar sossegados que há muito material para ser entregue nas próximas semanas, mas esta semana fui pego de surpresa com The Medium, jogo anunciado pela primeira vez durante a live de apresentação do Xbox Series X, e junto dele veio um nome: Akira Yamaoka.
O trailer me chamou a atenção logo de começo, algo ali me atraiu tal qual o canto das sereias enebriava os ouvidos dos marinheiros em alto mar. Após o trailer, a confirmação do envolvimento de Yamaoka completou o quebra-cabeça sonoro que complementava o atrativo visual de The Medium. O compositor é para alguns o verdadeiro espírito onírico da série de horror Silent Hill da Konami, e para outros apenas um charlatão metido a esperto que fez sua carreira através de samples. Desta vez, vamos explorar um pouco da carreira deste maestro do horror tão prolífico e caótico.
In your mind’s eye…
Akira Yamaoka nasceu em Niigata no Japão e mais tarde frequentou a escola de artes de Tokyo, onde veio a se formar em design de interiores. No entanto, seu sonho de designer acabou sendo deixado de lado, uma vez que em 1993 ele se uniu à Konami, assim tendo colocado a mão em várias obras clássicas que precedem e muito seu sucesso com a série Silent Hill. Yamaoka é responsável por trabalhos em obras como Contra: Hard Corps, Spakster e um favorito pessoal chamado Snatcher, zerado devidamente em um emulador de PC Engine.
Com influências diversas, os trabalhos de Akira bebem de diferentes vertentes musicais e artísticas. O mesmo diz que o tempo no qual estudou design de interiores foi imprescindível para sua carreira e trabalhos posteriores. A decisão de se tornar músico veio após o estudo na escola de artes de Tokyo, onde resolveu dar o salto de designer para músico. Após trabalhar anos com a Konami, viu sua grande chance surgir quando Silent Hill começou a buscar por compositores. Acreditando ser o único capaz da tarefa, Akira Yamaoka estreou no projeto inicialmente como compositor, e mais tarde tornou-se seu diretor sonoro.
Uma vez a bordo do Team Silent, Yamaoka começou a trabalhar arduamente naquela que seria sua marca registrada: os sons, ruídos e trilhas que acariciam e ao mesmo tempo agridem nossos tímpanos dentro da silenciosa e nebulosa cidade de Silent Hill. Mas a pergunta principal é: por que a trilha sonora de Silent Hill é tão marcante? Por que muitos consideram a mesma como o verdadeiro espírito por trás da franquia? E por que outros consideram Akira um preguiçoso que sequer sabe do que Silent Hill se trata?
Trip Hop e bruxas
Quando falamos sobre a estética de Silent Hill, muitos vão ter em mente primeiramente faixas como Wishful Thinking, Mary’s Invitation ou Alone in Town. Mas poucos se lembram de trilhas como Devil’s Lyrics, Ain’t Gonna Rain e, claro, a traumatizante My Heaven, com o torturante instrumento musical chamado “motorzinho de dentista 3000”. Isso porque muito do atrativo da cidade é sua atmosfera fria e solitária, atraindo muitos pelas ruas enevoadas em busca de conforto dentro do labirinto branco esfumaçado.
Yes, it is. A trilha sonora mais calma de Silent Hill bebe de uma vertente musical chamada Trip Hop. Trip Hop é um dos gêneros favoritos daquele que vos escreve, além de ser a inspiração de Akira. Basta escutarmos faixas como The Motel de David Bowie, Midnight in a Perfect World do DJ Shadow ou Sour Times de Portishead, esta última sendo a banda mais influente na produção da trilha sonora do primeiro jogo.
Contando com trilhas mais lentas e envolventes, o gênero costuma contar com arcos, melodias melancólicas e geralmente um vocal feminino, o que serviu de inspiração para que Akira Yamaoka começasse a criar em sua mente a forma na qual a trilha sonora da série iria se portar. Algo visível, por exemplo, no primeiro jogo, onde podemos encontrar pôsteres de Portishead pela cidade. evidenciando assim sua grande contribuição inspiradora para o jovem Akira.
Samples de amanhã
Hoje em dia muito se fala do quão errado é samplear, de como a originalidade da música morreu etc. Mas na realidade, a técnica já vem sendo utilizada há anos pela indústria dos games, e um grande exemplo disso é o tema de Jin Kazama em Tekken 3, que assim como a trilha Surf Punks de Conker’s Bad Fur Day, possui exatamente o mesmo riff de guitarra. No entanto, a maneira como as faixas foram construídas, além do ritmo e tempo, são completamente diferentes.
Não se trata do que é usado, e sim de como é usado. Todas as grandes empresas e compositores muitas vezes precisam utilizar sample packs a fim de se produzir rapidamente. Afinal, se imagine produzindo de 30 40 faixas para um jogo ou mais por ano. Agora tente criar algo novo todo dia do 0. É virtualmente improvável, e caso consiga, parabéns você é um virtuoso – ou provavelmente alguém que irá recriar o tema do porão de Resident Evil 1 em loop eterno para cada faixa. Conseguir retirar um segmento de poucos segundos de uma música e criar algo totalmente novo por cima é arte e nada menos.
Assim sendo, é errôneo assumir que sample packs sejam compostos apenas de loops retirados de outros lugares. Em sua grande parte, são compostos no entanto de notas soltas, instrumentos diversos e, claro, loops. O que torna o mesmo mais uma caixa de ferramentas, ao invés de um pacote de macarrão instantâneo musical. E tal qual ferramentas, é preciso alguém capaz de usá-las para fazer com que elas desempenhem de maneira ímpar sua função, e é o que Akira Yamaoka faz.
Trilhas como Heaven’s Night soam maravilhosamente, mas isso ocorre porque as notas, instrumentos, loops e melodias se encontram nos locais corretos. Caso estejam de maneira desordenada ou nas mãos de alguém sem a mesma capacidade criativa, soaria como um macaco bêbado chutando as teclas de um piano. Algo que pode ser visto refletindo seu gosto pessoal, já que muitas trilhas compostas por ele nos primeiros jogos da série trazem um ar muito semelhante às trilhas do filme Suspiria de 1977.
Música que enche os pulmões
Logo é possível ver que, mesmo com um foco em mente, as trilhas da série Silent Hill são diferentes entre si. Trilhas como Heaven’s Night e White Noiz são trilhas que geralmente vemos as pessoas indicando como o verdadeiro espírito da série. Algo que Yamaoka compôs para retratar a cidade de Silent Hill em si, e eu consigo concordar com isto em partes. São trilhas que parecem seguir o ritmo da respiração de James, enchendo nossos pulmões com a névoa em inúmeros momentos do jogo.
Mas isso ainda é separar o joio do trigo em termos de favoritismo e de “vibe”, por assim dizer. Um exemplo maior disso é a trilha Laura Plays the Piano, que é de longe a minha preferida de toda a série, mostrando que a cidade é algo que conhece os pecados de James e de qualquer outra pessoa que ali pise ou seja atraída. Com seus tons “subindo e descendo” constantemente, além de momentos em que se mantém em um tom elevado e ele subitamente cai, mostrando que melancolia é uma realidade aqui.
Mas em minha humilde opinião, as trilhas que mais se destacam em realmente demonstrar o que a cidade representa em si são o tema original do primeiro jogo e End of Small Sanctuary. O tema original de Silent Hill consegue transmitir a mensagem direta de que o que quer que exista naquela cidade é antigo. Como algo tribal, algo esquecido pelo tempo em uma cidade abandonada e em ruínas.
Já End of Small Sanctuary é uma música que parece pulsar, mantendo o reverb ao fim de cada riff para a música suspirar, enquanto o arrastar dos pratos parece fazê-la inspirar. O jogador está vivo, Cheryl está viva, a cidade está viva e os monstros e seus medos também estão vivos. Assim, Yamaoka cria uma obra intricada e peculiar, onde cada trilha executa um trabalho diferente e agrega de forma orgânica à música da série Silent Hill como um todo. Trazendo à tona tanto momentos de alegria após terminar um capítulo de cada saga, mas ao mesmo tempo subvertendo o mesmo sentimento com uma pesada melancolia.
Esta é a palavra chave que usaria para poder descrever as obras de Yamaoka em um quadro geral. Em um quadro branco, é possível se pintar a obra com cores de ferrugem e sangue, coisas predominantes na cidade. Jogos como Silent Hill 2 e 3 transbordam esse simbolismo com suas trilhas dominantemente melancólicas, trazendo até mesmo o vocal tortuoso ao melhor estilo Portishead para nos pegar pela garganta e nos jogar em um desfiladeiro sombrio dentro de nossa própria mente.
Frutas, cavalos e máquinas
Como é de se esperar, começamos pela parte boa, pois quis deixar a parte “quebrada” ou “ruim” para o final, que é onde Akira Yamaoka simplesmente deixa o parquinho criativo pegar fogo. Uma que posso referenciar nesse estilo é Reverse Will, onde a melodia em si parece perfurar seu tímpano enquanto ouvimos uma criança rezar de trás para frente. Também há Lives Wasted Away, de Silent Hill: Shattered Memories, uma releitura do primeiro jogo.
Como no segmento anterior, estas músicas mais esquecidas da série também podem ser divididas em um, dois ou até mais sentimentos diferentes. Lives Wasted Away, com sua melodia descompassada, é um ótimo exemplo, criando um caótico emaranhado de acordes que se prolongam em um espaço sonoro vazio. Fazendo com que o jogador se sinta cada vez mais fraco e desanimado perante os desafios e arrastando ambos para um abismo escuro e frio da depressão. Isso é algo que pode ser visto também em Never Forgive Me Never Forget, Dance With Night Wind, Fermata in Mistic Air.
Mas em minha opinião, a verdadeira qualidade como artista sonoro de Akira Yamaoka surge nesta seção que chamo de “furacões dentro de serralherias com maquinários ligados”. Afinal em nenhum sample pack, pelo menos que eu conheça, você irá encontrar sons concretos como porcos grunhindo, frutas podres sendo amassadas, animais em geral e pessoas gritando, fazendo com que todo o trabalho sonoro fale por si só durante a execução da obra.
Um grande exemplo da boa utilização de sons concretos surge na sala do puzzle ao centro em Silent Hill 2. Uma área enorme e desolada, sem inimigos, com apenas um grande bloco ao centro dela onde devemos resolver o puzzle dos pecados. No momento em que interagimos com ele, podemos ouvir o som de cavalos galopando a toda velocidade, cada vez mais altos. Mas se pararmos para olhar, a sala continuará vazia, deixando o jogador cada vez mais ansioso para terminar o puzzle e abandonar o local. Mas no exato momento em que se termina, um terrível grito pode ser ouvido, mais uma vez vindo de lugar algum. Independente da origem do som estar presente ou não, qualquer um sairá correndo como um morcego fugindo do inferno.
Jamming with the Grasshopper
Akira Yamaoka já falou abertamente que Suda 51 é seu desenvolvedor favorito, e não é de se espantar que ambos trabalhem juntos. Akira, ainda que seja um gênio musical, é humano e tem seus gostos, por isso o mesmo ingressou na Grasshopper Manufacture na época em que No More Heroes 2: Desperate Struggle, sequência de seu jogo favorito, estava em produção. Destoando totalmente do que se espera em relação aos seus antigos trabalhos, agora Akira Yamaoka estava com ainda mais liberdade criativa.
Suponhamos que Konami, Bandai e Capcom fossem representados por animes como Dragon Ball, Naruto e Bleach por exemplo. Assim, nesta comparação, a Grasshopper Manufacture seria mais uma vez superior em enredos bizarros e estilos. Afinal, a única obra que poderia ser atribuída à empresa seria o mangá de Hirohiki Araki, JoJo Bizarre’s Adventure. Ambos cheio de estilo próprio, histórias sem pé nem cabeça, mas com uma qualidade e ousadia ímpar que deixam os demais para trás.
Dentro da Grasshopper Manufacture, as trilhas de Akira Yamaoka alcançaram um novo patamar, tanto artisticamente como pela bizarrice. Saindo totalmente da pegada Industrial / Trip-Hop, Akira embarcou na jornada violenta de No More Heroes 2: Desperate Struggle, misturando trilhas agitadas de rock com uma pegada de Japanese Jazz Funk ao melhor estilo Cassiopéia e Katsumi Horri Project. Violento, animado e contagiante, igualmente ao protagonista Travis Touchdown.
Não que Akira sofresse com algum tipo de amarra criativa, isto é, até o cancelamento do Team Silent original. Após Silent Hill 4: The Room, a equipe foi desmantelada, afinal a Konami acreditou que o jogo foi experimental demais, deixando os próximos títulos bem menos criativos e lineares, assim como suas trilhas. Foi um caminho totalmente contrário ao da Grasshopper, onde originalidade, estilo e arte andam de mãos dadas e, quando misturados de maneira correta, vão pro quarto e fazem um lindo jogo na cama.
Até mesmo os jogos menos celebrados da empresa, como Shadows of the Damned e Lollipop Chainsaw que saíram pela EA, se mostram assim, com trilhas incríveis como Take me to Hell e Rainbow Zombie Fever respectivamente. A trilha sonora de Shadows of the Damned ainda possui algumas faixas que se assemelham ao seu período com a Konami e a série Silent Hill. Mas pessoalmente, vejo um crescimento maior com a atual Grasshopper Manufacture, fora seus projetos solos como músico. Já diziam os ingleses: iFUTURELIST just slaps FAM.
Esse constante fluxo alternado entre estilos de jogos e sons prova a capacidade criativa e artística de Yamaoka, mostrando que mesmo utilizando sample packs, a criatividade do compositor consegue ultrapassar barreiras, seja em seus tons soturnos em Silent Hill, riffs agitados e animados em No More Heroes ou seu jazz descompassado ao melhor estilo lounge/bar em The Silver Case e Killer is Dead.
Seria The Medium um sucessor espiritual ?
The Medium foi recentemente anunciado na live da Xbox, com um trailer enigmático trazendo muito da atmosfera de Silent Hill. No entanto, ainda é um tanto cedo para poder dizer exatamente o que espero do jogo como um todo. No curto trailer, podemos ver a protagonista dentro de uma igreja, enquanto cortam para cenas da mesma em um exame de ultrassom. Assim que a cena retorna, vemos ela saindo às pressas da igreja, onde há um investigador por perto e de repente tudo começa a mudar.
Suas mãos emsopadas de sangue seguram uma faca, o investigador corre em sua direção deixando seu cigarro cair. Enquanto cai ajoelhada e sofre com estas terríveis visões, o mundo deixa de existir à sua volta e Marianne se vê no centro disso tudo, passando do nosso mundo para uma dimensão praticamente alienígena, sem saber para onde ir em busca de respostas. Ela então encontra um hotel abandonado na Cracóvia, o palco de um terrível assassinato.
O jogo terá o foco na transição entre estes dois mundos, nos quais a protagonista irá interagir e progredir. A maior semelhança entre os jogos é sem dúvida a trilha do trailer, uma mistura elegante de White Noiz e End of Small Sanctuary, provando que Yamaoka já sabe o caminho para o qual quer que a direção de som siga. No entanto, eu odeio ser o cara que joga cerveja na fogueira, e por mais que me doa o coração dizer isto, até o momento The Medium não parece ser um sucessor espiritual da franquia Silent Hill.
Estou animado? Com certeza, a ponto de comprar um Series X apenas para poder jogar The Medium no lançamento. Mas esperar um jogo a la Silent Hill com o que foi visto até agora é pedir para quebrar a cara. Silent Hill é muito mais do que dois mundos, e sim uma mistura de elementos que elevam sua graça a um patamar “invejado” por outros títulos. Os temas, inspirações e feeling geral de cada jogo já foram explorados nos primeiros textos da série. Silent Hill é mais do que sua névoa, é algo que era aterrorizante, pois cada interação tomava uma forma diferente e tocava o jogador de uma maneira diferente até o quarto jogo. Após isso, virou “Piramid Head and Friends”.
Já sigo os trabalhos da Bloober Team há anos, com Layers of Fear e Observer tidos como clássicos instantâneos, e igual à série da Konami, postos de lado até atingirem um status de cult. Então ficar na espera de um possível Silent Hill com The Medium é algo um tanto quanto desrespeitoso com a equipe. Outro grande fator que não deu as caras no curto trailer é uma mecânica de combate. Toda criatura em Silent Hill tem uma psicologia por trás dela, suas formas aterradoras e chocantes eram algo que sempre pegavam o jogador de surpresa.
Ou seja, por hora é muito cedo para dizer com certeza se The Medium será o descendente da aposentada franquia da Konami, que em minha humilde opinião continuará assim. Afinal, se for para termos outro Origins ou Homecoming, melhor ficar embaixo da terra por mais alguns anos. Ainda assim, espero um grande jogo vindo de The Medium e uma trilha sonora que embale mais uma vez meus passos perdidos nas névoas montanhosas da minha cidade aos ventos.