A este ponto, o mercado de games já está saturado de títulos com a temática de apocalipse zumbi, e tal premissa pode ser definida hoje como genérica com facilidade. Genérica, no caso, é a impressão inicial que Days Gone, jogo desenvolvido pela Bend Studio, transmitiu com seu material de divulgação, tanto as demonstrações apresentadas em eventos quanto os trailers focados em sua história, estrelada por um andarilho que mescla Mad Max e Daryl Dixon.
Após consecutivos adiamentos, ficou também a dúvida: será que o título chegaria tarde demais e possa parecer antiquado em meio a tantos exemplares inventivos de mundo aberto lançados pela Sony, como Horizon: Zero Dawn e God of War? Embora a fórmula base do gênero ainda tenha seu apelo, o novo game estaria disposto a ir além e acrescentar algo a ela, além de belos gráficos? Se sim, o quê? Nisso, os altos parâmetros estabelecidos por seus precursores parecem prejudicá-lo em comparação.
State of Deek-ay
De fato, nas primeiras horas com Days Gone, essa impressão de genericidade parece se confirmar como real, apesar de algumas peculiaridades mecânicas aqui e ali. Não só o ponto de partida da trama remete muito às ideias do prólogo de The Last of Us, jogo com o qual será inevitavelmente comparado em diversas frentes, mas os diálogos e as personagens não chamam tanta atenção neste início – exceto pelas interpretações em captura de movimento, que logo de cara mostram ao que vieram com uma expressividade impressionante.
O mundo aberto também aparenta truncado a princípio, e possui alguns poucos ícones não muito sedutores de atividades principais e paralelas. A vegetação densa da região de Cascades, no meio do estado do Oregon, com árvores altas e matas grossas muito bem renderizadas, paradoxalmente faz com que o espaço do game aparente claustrofóbico em um certo nível, e também possivelmente mais linear do que o esperado. É tudo uma beleza em um âmbito visual e sonoro, mas para que todo o fotorrealismo se tivermos pouco para ver?
No entanto, essas acima são, de fato, apenas impressões iniciais. Em um tempo no qual jogos, desde os single-player em mundo aberto aos de serviço em andamento, ainda têm a pressão de revelar seu melhor, sua “catch”, com certa pressa para que abocanhem o jogador, Days Gone me parece mais um exemplar que segue uma lógica similar à de Assassin’s Creed 3, cuja paciente introdução de mais de cinco horas era nada mais que um prelúdio à épica narrativa que se desenrolaria por outras dezenas de horas.
Aqui em Days Gone, vemos um ato inicial mais preocupado em desenvolver sua história com paciência, e como a trama se inicia “in media res”, já durante a ação, ainda não possuímos um conhecimento sólido de quem eram aquelas pessoas em um tempo prévio. Deacon St. John, ou Deek, o protagonista interpretado pelo ótimo Sam Witwer, é quase uma folha em branco quando o conhecemos, com apenas algumas marcas que indicam seu passado – as tatuagens, o colete e o anel – dois anos após a epidemia se alastrar pela região onde vive. Os dias passados do título são, inclusive, contados na tela de pausa, dando a dimensão a esse hiato entre passado e presente.
Assim como o game tem calma em apresentar suas personagens, tem também a mesma calma – muita calma – para revelar a verdadeira amplitude de seu mapa, além de todas as mecânicas e atividades dinâmicas que encontraremos nele. Um dos primeiros aspectos que os jogadores conhecerão são os acampamentos, bases onde é possível adquirir melhorias para sua moto, novas armas, munição e entregar recompensas. Para isso, deve completar missões para os respectivos líderes de cada acampamento.
Os acampamentos aparentam como típicas bases, mas há uma adição interessante à sua lógica. O jogador possui um número de créditos e status de confiança único para cada um deles, ou seja, se completar missões para um líder específico, como Ada Tucker, receberá créditos e confiança apenas no estabelecimento dela. Isso faz com que seja necessário trabalhar mais, mas também ajuda a manter um controle sobre esses recursos, já que o jogador não gastará os créditos de um acampamento em outro.
Tais locais também acrescentam à contextualização de uma narrativa maior envolvendo o mundo do jogo. Enquanto em um âmbito íntimo Deacon lamenta pela aparente morte de sua mulher Sarah, assim como tantos outros sobreviventes, todos atendem às mesmas regras quando estão fora no mundo, devendo trabalhar para sobreviver. Esses detalhes ganham peso quando Deacon resgata uma adolescente orfã e, após entregá-la para um acampamento, vê a profunda dificuldade da garota em se adaptar à dinâmica rigorosa do local.
Muita calma nessa horda
Não bastando a atenção dedicada pela Bend Studio ao funcionamento dessa sociedade pós-apocalíptica, entram então os zumbis, aqui conhecidos como Freakers / Frenéticos. Conforme a trama avança, Deacon descobre detalhes perturbadores sobre o comportamento dos transformados, e nota que há muito mais por trás disso, criando um suspense que deve satisfazer os afeitos a histórias mais investigativas dentro desse subgênero. Mas o melhor foi deixado para o gameplay, tanto nas ações das criaturas no mundo como sua variedade de tipos.
Dependendo do momento do dia, os Freakers serão avistados de diferentes maneiras. Durante o dia, quando está claro, podemos ver alguns zumbis espalhados pelos campos e florestas, mas nenhuma daquelas hordas avistadas nos trailers e demos. Pois bem, durante a noite, descobrimos que essas hordas saem de seus esconderijos, deixando o queixo do jogador caído com seu volume e sincronia de movimento. Revelam-se ainda diferentes tipos de zumbis: as atalaias, cujos gritos atordoam Deacon e atraem outros mortos, e os quebradores, zumbis maromba que fazem jus ao apelido.
Também devemos nos preocupar com os vivos, que saqueiam e matam os andarilhos – ou fazem até pior, como no caso dos cultistas Rippers. Eles podem ser encontrados tanto em emboscadas quanto acampamentos, os quais devemos limpar para desbloquear pontos de viagem rápida. Alguns deles serão mais ilustres, com recompensas em suas cabeças, e matando-os ganhamos nosso pão nos acampamentos amigos, na forma de “trabalhos”.
Para combater os mortos e os vivos, há uma variedade de estratégias disponíveis. A mais eficiente de todas é a furtividade, com uma boa dose de desativar armadilhas e agachar-se no meio de arbustos. A faca de caça será uma arma de confiança para essa tarefa, e também é possível instalar silenciadores improvisados em suas armas – mas atentem-se, pois eles se desgastam a cada tiro dado. Por fim, há as distrações, como pedras e aparelhos que emitem sons, para distrair – duh – os inimigos.
Fora da furtividade, há o combate direto com armas brancas e de fogo, mas esta é uma alternativa desfavorável no início do game. Deacon pode morrer muito rapidamente sob os ataques dos inimigos, e a precisão das armas é bastante rudimentar sem as melhorias necessárias. Mesmo com essas melhorias, os tiroteios exigem timing e habilidade se o jogador quiser continuar vivo. Ainda assim, a competência do combate cresce naturalmente com a prática e conhecimento dos arredores.
E aí entra a questão do som: como os Freakers são sensíveis ao som, abrir fogo em meio a um acampamento inimigo pode ser uma faca de dois gumes, já que serão inevitavelmente atraídos pelo ruído todo. De um lado, os mortos podem terminar o serviço de matar os bandidos em seu lugar; de outro, o mais provável, partirão pra cima de você do mesmo jeito que o farão com seus oponentes, resultando numa morte nada glamourosa. Soa frustrante, mas é completamente justo e muito divertido, mesmo quando tudo vai ao brejo.
Falando em frustração, o fracasso nas missões abertas pode ser aliviado pela presença de um salvamento rápido, disponível perto de camas e, o mais importante, da motocicleta de Deacon. O veículo, que é um dos principais chamarizes de Days Gone desde que foi anunciado, serve como uma espécie de base móvel customizável, sendo possível, além de salvar o jogo, armazenar munição para conflitos futuros em um alforje e trocar detalhes cosméticos – sem microtransações, claro.
A ella gusta
Com essa motocicleta então, locomover-se pelo mundo deve ser uma moleza, certo? Não. Há um grande porém, que inclusive acrescenta ao fator de imersão proposto por Days Gone: gasolina. O jogador deve ter esse recurso em mente com bastante frequência, já que ela é necessária para manter a moto funcionando, mesmo no caso da viagem rápida, que calcula quantos galões serão usados para ir de um ponto a outro. O mesmo vale para a sucata, necessária para reparar a moto e suas armas.
Encontrar gasolina pode às vezes ser algo simples, vasculhando certas casas e acampamentos, e os galões encontrados geralmente reaparecem nos locais de sempre, portanto memorize-os. Há também postos de gasolina, nos quais é possível abastecer nos tanques, mas são locais prováveis para emboscadas de saqueadores e infestações zumbi. Porém, quando o jogador não encontra o desejado recurso, deve empurrar sua moto em ponto morto até consegui-lo, o que acrescenta boa tensão à exploração – uma vez, o combustível zerou logo que um urso faminto me avistou.
Acrescentando à funcionalidade do veículo, o ponto morto da moto também ajuda a manter silêncio e evitar inimigos, além permitir economizar combustível enquanto desce ladeiras ou caminhos íngremes. O jogador inclusive pode melhorar aspectos como pneus (aderência ao solo), escapamentos (som), tamanho do tanque de gasolina (duração do combustível) e quadros / suspensão (resistência das peças), ganhando confiança nos acampamentos e desbloqueando novas peças no mecânico local.
Para melhorar os atributos físicos de Deacon, além das habilidades adquirida com pontos de experiência, existem os pontos de controle e locais de pesquisa da NERO, uma agência governamental que investiga a epidemia zumbi. Encontrando-os, o jogador pode fazer uso de um injetor que permite escolher entre melhorias de saúde (vida, é claro), energia (stamina para corrida e golpes corporais) e foco (câmera lenta para o tiro), dependendo de seu estilo de jogatina preferido. Mas como tudo no jogo, colocar suas mãos nesses injetores não será tão simples.
Nos pontos de controle, deve-se restaurar a energia para acessar a caixa com o injetor, mas isso também ligará novamente os alto-falantes do local, o que por sua vez atrairá levas de zumbis. Portanto, é ideal que antes se desative cada um dos megafones nas proximidades, e às vezes isso exige um olho atento já que alguns podem estar suspensos em postes. Já nos locais de pesquisa, pode ser exigido o uso da moto para pular e alcançar lugares altos ou até mesmo invadir uma caverna de horda para coletar o injetor. No último dos casos, deve-se esperar até a calada noite, quando não há horda no local – mas saia antes que ela volte!
Admirável mundo morto
Voltando, enfim, à história. Todos os recursos mencionados acima, apesar de reconhecíveis de tantos outros games em mundo aberto, ao menos visam por uma coerência na hora de construir o mundo do jogo. Alguns são mais interessantes do que outros de uma perspectiva de gameplay, mas todos agregam à noção que passamos a ter da narrativa maior. Diálogos no rádio, gravações coletáveis ou mesmo os cenários são usados para contar a história além das ótimas cutscenes.
Sem entrar em spoilers, até mesmo a relação de Deacon com sua esposa está conectada a tudo que vemos, e ganha dimensões intrigantes – e emocionantes – conforme o jogador alcança o que é definido pelos desenvolvedores como o Ato III do jogo. Não direi nada a respeito dele para preservar o elemento surpresa de Days Gone para aqueles que pretendem pagar a viagem de ida a seu mundo, mas afirmo apenas que aquilo que parecia grande, é na realidade muito, muito maior.
Os gráficos, então, só elevam a experiência mais próximo ao nível de prestígio almejado tão constantemente pela Sony em seus exclusivos. Não é redondo como outros títulos recentes – falo mais disso no próximo parágrafo -, mas aqui a Unreal Engine 4 é testada ao limite do fotorrealismo, com texturas tão detalhadas que eu poderia muito bem dizer que as texturas tem texturas! Detalhes como areia, lama, neve e água são simplesmente graciosos, e são todos animados em tempo real.
Já os modelos de personagem e inimigos, inclusive, são tão caprichados que é fácil passar horas acumuladas no excelente modo de fotografia, que apresenta as opções de sempre mais diversas configurações avançadas. O modo traz atenção a um cuidado visual pouco visto, o que ajuda o jogador a valorizar a experiência ainda mais. Bons gráficos não fazem um bom jogo, mas são com certeza muito bem-vindos, especialmente quando reforçam as qualidades dramáticas e imersivas de sua história.
Esse poder imersivo de Days Gone apenas é limitado, realmente, por uma série problemas técnicos, mesmo com o grande patch 1.03 instalado. Tive problemas – bem pontuais, mas que surgem o bastante para incomodar – com itens de missão sumindo do mapa, texturas específicas que não carregavam e personagens que surgiam incompletos, como um busto flutuante. De outro lado, durante diálogos de contexto, o tempo das legendas equivoca-se com frequência, tornando a compreensão de certas falas difícil para quem não domina o inglês – ao menos, há uma dublagem competente em português.
Quanto à performance, ela é geralmente competente, mas algumas áreas, como a última quase inteira, parecem exigir demais do console da Sony, resultando em engasgadas principalmente quando se pilota a moto – algo que se faz com frequência. Na mesma área, em uma única ocasião depois de mais de 30 horas de jogo, a engasgada da performance foi tão grande que levou a um travamento do game – ainda bem que os salvamentos são constantes. É possível que a Bend lance outro grande patch antes do lançamento, mas é bem provável que alguns problemas de performance continuem.
Errando o pouso
Dito isso, a parte final do terceiro ato acumula uma série de clichês, tanto narrativos quanto de design, tornando-se o ponto mais irritante de um game que até ali mantinha uma qualidade consistente. Não só os vilões se mostram completamente caricatos e há inconveniências forçadas que alongam a parte final do jogo desnecessariamente, como tudo acaba culminando a forma de um cover shooter genérico, sem fazer grande uso dos zumbis em uma batalha final ou coisa do tipo – e sim um quicktime event, numa das boss fights mais fracas vistas recentemente em um game.
As horas finais da história principal, inclusive, são as que mais apresentam bugs, glitches e problemas gráficos. Tudo isso deixa um derradeiro gosto amargo na boca, mesmo considerando que grande parte das trinta a quarenta horas de história jogadas foram bem decentes e envolventes. Me parece comum a muitos jogos de mundo aberto com tramas longas, principalmente aqueles lançados há alguns anos atrás, tropeçar feio ao tentar amarrar uma narrativa tão, tão grande. A sensação é de que a Bend Studio conseguiu decolar, mas não soube acertar o pouso.
Mas pelo menos decolaram, e não é sempre que se pode dizer isso de um game tão ambicioso. Apesar de não apresentar o mesmo nível de polimento visual e narrativo encontrado nos últimos títulos first-party da Sony, fator que deve pesar sobre sua recepção inicial, Days Gone parte de um começo morno para executar uma ótima proposta de mundo aberto, com particularidades o suficiente para garantir um público entusiasmado. Com um volume de conteúdo respeitável e DLC já confirmado, o game da Bend Studio deve ser capaz de segurar o jogador por um bom tempo dentro do mundo apocalíptico de Deacon St. John, já fazendo valer o pacote.