Um futuro distante onde a alta-tecnologia foi se tornando amplamente acessível em meio a uma sociedade decadente onde governos possuem cada vez menos controle sobre o que acontece e as mega-corporações dominam cada pedaço de terra – água ou espaço – disponível. Não se engane, estamos falando de 2077, não 2020.
Depois de 3 adiamentos, a CD Projekt lançou ao mundo Cyberpunk 2077, o RPG de ação em primeira pessoa também conhecido como a maior promessa do mundo eletrônico dos últimos anos. Venha seguir essa trilha de tijolinhos amarelos e vamos entender o que aconteceu com esse acidente automobilístico em forma de produto eletrônico.
Hype: a centelha e morte de Cyberpunk 2077
Seguindo os passos do que pode ser considerado o melhor RPG de ação de todos tempos, The Witcher 3, o anúncio de Cyberpunk 2077 foi universalmente bem recebido quando feito pela CD Projekt em maio de 2012. Com isso, o trem do hype tinha iniciado sua jornada saindo da estação inicial e rumo ao infinito – e eventual queda meteórica.
Voltando e dando um breve panorama sobre a CD Projekt, sua história e por que tamanha decepção com o resultado de Cyberpunk 2077, precisamos dar um pulinho em 1994. A Polônia não era exatamente um mercado atrativo para grandes empresas de jogos, ainda mais pela economia frágil pós-queda do muro de Berlim e da União Soviética.
Marcin Iwiński e Michał Kiciński – cujos nomes eu nunca tentarei pronunciar – decidiram iniciaram os trabalhos da CD Projekt importando jogos dos Estados Unidos da América e, com uma maneira mais eficiente de combater a pirataria, trabalharam nas localizações dos jogos, incluindo vozes conhecidas localmente e conteúdos adicionais.
Aumentando sua relevância no cenário local, cresceram a empresa trabalhando também com portes de jogos para diversas plataformas e decidiram apostar no desenvolvimento de um produto próprio, criando a divisão CD Projekt Red. Utilizando-se de um personagem folclórico polonês bem conhecido, licenciaram o que chamaram de The Witcher.
Com um desenvolvimento conturbado e enfrentando constantemente a falta de experiência, a CD Projekt quase abriu falência, porém somando o sucesso cult que The Witcher fez com o lançamento da Good Old Games, plataforma para comercialização de jogos antigos sem-DRM, a empresa conseguiu redirecionar seus esforços para The Witcher 2, que obteve mais sucesso e aliviou as contas.
Aparentando se importar com os interesses dos jogadores desde o início, tanto com o suporte dado à comunidade quanto aos investimentos contínuos na GOG, a CD Projekt chamou a atenção amplamente para uma maneira diferente de se fazer dinheiro com jogos. Com isso em mãos, o interesse por The Witcher 3 já se iniciou bem alto e foi devidamente suprido, e suas expansões só afagaram ainda mais os coraçõezinhos dos jogadores.
E aí temos Cyberpunk 2077. Como dito anteriormente, o anúncio foi feito em maio de 2012 – antes do lançamento de The Witcher 3 – e as expectativas foram colocadas no topo. A cada trailer e a cada novo anúncio, os ânimos se alteravam ainda mais. O que foi The Witcher 3 só deixou tudo mais inflamado ainda.
Porém, parece que as coisas mudaram um pouco de figura de lá para cá, ou só ficamos mais atentos com abusos durante o processo de desenvolvimento de grandes jogos. Conforme a data prevista de lançamento foi se aproximando, os anúncios foram ficando menos compreensíveis, menos relevantes, denúncias de abusos contra funcionários surgiram vez após vez e a imagem da CD Projekt foi se sujando exponencialmente.
Como era de se esperar, os três adiamentos em menos de 1 ano geraram grandes suspeitas. Claro que em alguns casos o objetivo é que o resultado final seja positivo e o ambiente de trabalho dos desenvolvedores seja ainda saudável. Porém, notícias de que horas-extras eram mandatórias há mais de ano antes do primeiro adiamento e relatos do andamento geral do projeto mostraram que estes adiamentos estavam mais para uma emergência a fim de ser terminado do que polimentos em si.
E chegamos então ao lançamento de Cyberpunk 2077. Bom, ao momento que a CD Projekt Red liberou aos seus clientes jogarem esta obra, mas chamar aquilo de lançamento é ser muito, mas muito generoso. De 6 plataformas previstas para receberem o jogo, se muito, 3 conseguiam rodar minimamente. Algo tão desastroso que a Sony removeu Cyberpunk 2077 de sua loja online e ofereceu reembolso completo. Um desastre de proporções homéricas.
Não me avisaram que era Early Access
Recebendo uma enxurrada de decepções prévias, bugs, crashes e tudo mais o que um jogo (que aparenta estar em early access) pode oferecer, fui para Cyberpunk 2077 com medo, mas ainda torcendo para que fosse um exagero de produtores de conteúdo mais exigentes ou com menos sorte. Antes fosse.
De acordo com os requisitos de Cyberpunk 2077, meu i7-7700K e a GTX 2070 Super conseguiriam muito bem dar conta do recado acima do que foi dado como recomendado. Muito diferente do que pude experienciar. Seguindo as recomendações dadas pelo jogo – as mesmas da GeForce Experience – mal passei dos 30 FPS mesmo em ambientes fechados. Em áreas abertas, estava basicamente assistindo um slide show.
Somente após um auxílio do chefe e alterações meticulosas na área de configurações que consegui chegar em algo minimamente jogável com uma fidelidade gráfica longe – e muito longe – do prometido durante 8 anos. E ainda sim, nunca acima dos 60 FPS, sempre ficando entre 45 e 55 FPS em ambientes fechados e caindo entre 30 e 45 FPS em áreas abertas ou quando o bicho pega.
Em menos de 2 semanas e 5 pacotes de correção de erros depois, jogar Cyberpunk 2077 ainda é um desafio. Não pelas diversas opções de jogabilidade ou design questionáveis, mas sim pela completa falta de otimização, ou sequer cuidado com a qualidade do produto entregue.
Se tratando de um jogo com o nível de investimento deste e sendo fruto de um estúdio que já entregou The Witcher 3, fica mais do que claro que isso não é problema dos desenvolvedores – que diga-se de passagem são vítimas de abuso constante por parte da gerência da CD Projekt há anos – e sim um erro absurdo, somado à ganância da diretoria da empresa que não soube respeitar o devido processo artístico e técnico necessário para construir um produto deste tamanho.
Sobre os bugs, foram tantos e durante tanto tempo que eu não tenho nem mais forças para descrever o quanto me atrapalharam, me frustraram e me tiraram da experiência de viver na segunda metade do século XXI. Além disso, a essa altura, os problemas de Cyberpunk 2077 já estão vazando pelo ladrão da internet mundial. Caso queiram se banhar no mar de chorume destes problemas, é só procurar em qualquer lugar por Cyberpunk 2077.
Por ser um RPG de ação em primeira pessoa, fiquei consideravelmente confuso se teria sido uma experiência pensada para se jogar em um controle ou mouse e teclado. Não se enganem com a falácia de que algo foi pensado igualmente em ambos, uma experiência deste tamanho definitivamente foi construída otimizando para A ou B.
Jogando no controle a dirigibilidade é agradável, a movimentação do personagem é quase fluida, a mecânica de hackear é mais natural e o combate corpo-a-corpo é menos pior. Porém, comandar os menus é contra-intuitivo e o combate com armas de fogo é muito ruim. Tenho por mim que, se o jogo pede tiro em primeira pessoa com controle, precisa ao menos existir uma possibilidade de travar a mira, facilitando para jogadores que não queiram ser detalhistas a tal ponto, contudo, mesmo com a assistência no máximo, atirar em Cyberpunk 2077 com um controle é horrível.
Passando à combinação de mouse e teclado, soa quase como uma versão complementar do controle. Tudo o que era agradável no controle fica intragável por aqui. Em compensação, os menus ficam mais fáceis – não bons – e quando chega a hora de atirar, aí sim a coisa melhora. Tanto mirar quando a sensação de cada arma diferente se modifica completamente e acabo sentindo até falta de atirar mais – mesmo com inimigos sendo esponjas-de-balas.
Seria tudo uma grande bait?
O que é o grande prêmio de Cyberpunk 2077 é – ironicamente – o que não depende de tanto tempo na parte final de desenvolvimento: a narrativa. Não tanto para as missões secundárias, que acabam sendo – em grande parte – genéricas e somam muito pouco para a construção do mundo, porém a narrativa principal é muito boa, bem escrita e cativante.
Claro que a crítica sobre o jogo tratar de tópicos rasos no contexto da cultura cyberpunk é válida, principalmente porque foi claramente construída para ser acessível a todos os públicos, em especial aqueles que não tiveram contatos prévios com Neuromancer, Akira, Ghost in the Shell ou outras obras clássicas que basearam o sistema de RPG Cyberpunk 2020 – obra base do universo do jogo.
Além disso, fica a crítica sobre a questão “adulta” do jogo. Cyberpunk 2077 trata de ser adulto simplesmente esfregando sexo em todo e qualquer momento na cara do jogador, sem tocar muito em pontos mais complexos e intrincados sobre o que é viver em um mundo decadente e sem possibilidades de mobilidade social.
Dito isso, vale ressaltar um questionamento que me foi levantado pela narrativa de Cyberpunk 2077. O nosso contato com Johnny Silverhand – personagem interpretado pelo messias Keanu Reeves – me trouxe uma reflexão em relação a quanto a falta de conexão do jogador com a realidade do personagem pode levar a uma interpretação vazia e com relações destrutivas com os outros personagens. Mas vou deixar essa reflexão aí para vocês.
A localização também merece um ponto positivo. A dublagem é muito bem feita, com interpretações bem trabalhadas inclusive nas misturas de mais de uma língua nas mesmas frases, visto que o mundo de Cyberpunk 2077 é completamente globalizado e as fronteiras são ainda menos relevantes para determinar que língua é dominante.
O que não é muito agradável no texto é que a adaptação, em diversos momentos, soa como uma coletânea de memes dos últimos 10 anos da internet brasileira, afastando um pouco do contexto quiçá retro-futurista de Cyberpunk 2077. Contudo, deixo aqui a menção honrosa para a personagem que após presenciar um tiroteio no meio da rua, enquanto corria pela sua vida, gritou “Sangue de Jesus tem poder!”
No fim das contas, é até complicado dar uma nota para um jogo que mostra claramente não estar finalizado. Cyberpunk 2077 ainda precisa de muito polimento, de muito tratamento de qualidade, de semanas e semanas de testes. A história é extremamente cativante, os personagens são carismáticos e o escopo do jogo é enorme. Acredito que, uma vez terminado, será um ótimo jogo. Mas por favor, nem de perto se compara a Red Dead Redemption 2.