A indústria de jogos eletrônicos não é composta somente por mega-produções de milhões de dólares de estúdios estrangeiros. Existe toda uma pirâmide sustentando esse ecossistema. Abaixo da base da pirâmide, existe uma leva de artistas de intensa paixão, que usam a mídia para expressar o que vai na profundeza de seus âmagos. Coralina: a Memory Tale é um retrato, ora confuso, ora cativante, do que existe dentro da mente do sergipano Gabriel Maki.
Analisar uma obra tão autoral, tão intimista, dentro da ótica fria das análises padronizadas desenvolvidas para jogos comerciais chega a ser uma crueldade. Entretanto, coube a mim essa tarefa, coube a mim o fardo de trazer o alerta: não é uma experiência recomendável para quase ninguém. Ele falha como jogo, ele falha como entretenimento, ele falha como produto, para triunfar tão somente como uma fresta para dentro de uma realidade inexplicável.
Onde estamos, para onde vamos e de onde viemos?
Parafraseando o doutor Heinz Doofenshmirtz, “se eu ganhasse um dólar para cada jogo brasileiro criado com RPG Maker e inspirado no alquimista Nicolas Flamel, eu teria dois dólares, o que não é muito, mas é estranho que tenha acontecido duas vezes”. Assim como em A Nova Califórnia, o lendário personagem ocupa uma posição de destaque em uma trama que mais confunde do que explica. Acabamos explorando um apanhado colossal de referências obscuras de cultura moderna (que, confesso, sou boomer demais para compreender), assim como referências obscuras de arte clássica, esoterismo e História antiga. Acompanhar o fluxo de pensamento de Gabriel Maki é como tentar explicar a mitologia de Twin Peaks ou os sonhos de Dreaming Sarah.
Para complicar a situação do jogador, Coralina: a Memory Tale é, na verdade, a continuação de Coralina, primeiro trabalho do desenvolvedor. Não há uma recapitulação dos eventos, o que torna tudo ainda mais complexo. De qualquer forma, acompanhamos e controlamos (na maior parte do tempo) a personagem que dá nome ao jogo, uma jovem aspirante de cinema que se viu arrastada para o Limbo muito tempo atrás. Em sua companhia, está Cometa, a poderosa alquimista filha da guardiã de Nicolas Flamel. Juntas, elas irão navegar pelas terras do esquecimento, cruzando Limbo e Purgatório em busca de algo que nem elas sabem exatamente o que é, enquanto são perseguidas por figuras exóticas e descobrem seus sentimentos uma pela outra.
Coralina tem o dom de navegar pela memória de outras pessoas, o que permite que a narrativa viaje por diferentes linhas do tempo, enrodilhando ainda mais esse novelo. Os poderes de Coralina estão sendo cobiçados por entidades com propósitos hostis, enquanto o próprio Flamel parece estar por trás de todos os acontecimentos.
Foi necessário sentar e escrever minhas impressões para extrair algum tipo de lógica do enredo. Acredite, faz muito mais sentido nos três parágrafos acima do que ao longo de suas quase três horas de jogabilidade. Há um excesso de personagens encontrados ao longo da aventura, cada um com sua estranheza individual, suas perguntas sem respostas, como coadjuvantes passando em uma Carreta Furacão do Caos.
Coralina: a Memory Tale encanta
Abstraindo-se de uma busca por sentido, é possível sentir melhor Coralina: a Memory Tale. Ele não foi desenvolvido para ser um jogo ou um conto com começo, meio e fim determinados. Ele foi desenvolvido para ser uma colagem de ideias, de delírios, de sonhos, de uma angústia interior que certamente borbulha no desenvolvedor sergipano. Maki é um poeta e isso fica bastante claro em suas escolhas estéticas.
Gabriel Maki assume a programação e o desenvolvimento técnico do jogo, assim como a criação dos personagens. Entretanto, ele buscou mesclar a arte de diferentes colaboradores, artistas amadores encontrados na internet. O resultado disso é uma colagem de estilos impressionante, a representação visual de uma narrativa igualmente confusa, misturando o traço de diferentes ilustradores, arte em pixel e até fotografia. Nesse ponto, Coralina: a Memory Tale se torna a versão eletrônica de um caderno adolescente, com adesivos, recortes e palavras formando quadros aparentemente desconectados, mas que, juntos, formam uma identidade exclusiva da obra.
Isso tem um preço: Coralina: a Memory Tale parece um trabalho amador, com baixo valor de produção. Algumas das artes são claramente desenhos feitos com caneta e digitalizados da melhor forma possível. O motor gráfico do RPG Maker também não ajuda. O jogo sequer roda em tela cheia, apenas em janela maximizada. Elementos do menu existem, mas não tem função alguma. O som é sujo. Em determinados momentos, há algo de apresentação Powerpoint na forma como os dados são apresentados.
É nesse ponto que é necessário perceber que não existe grau de comparação entre Coralina: a Memory Tale e, digamos, um Life is Strange. Mesmo uma obra igualmente independente, com orçamento baixo, como Coffee Talk, ainda está anos-luz do trabalho artesanal de Gabriel Maki. É crueza punk de garagem, com muita distorção e voracidade, mas pouca técnica ou “qualidade”.
A única exceção para esse espírito amador está na escolha das músicas. As faixas brilham demais. Gabriel Maki selecionou novamente artistas que encontrou na internet e acertou em cheio, com músicas que engrandecem a obra a níveis inacreditáveis.
Coralina: a Memory Tale desencanta
Infelizmente e instintivamente, continuei tratando o jogo como um… jogo. Não é. Na maior parte do tempo, apenas avançamos os diálogos. Em outras partes, vagamos pelos cenários em busca de novos fragmentos de mistério, pequenas histórias de grandes personagens. E, em uma minoria das partes, existe algo que tenta ser um jogo, seja na forma de enigmas para serem resolvidos, seja na forma de um sistema de batalha por cartas que não explica. A primeira batalha por cartas eu venci clicando aleatoriamente nas cartas. A segunda batalha resultou em derrota e tela de fim de jogo. Foi então que eu percebi que o sistema de salvamento também tem seus problemas.
São poucos os lugares em que é possível salvar o jogo. Na verborragia de seus diálogos, é impossível. No calor da luta, é impossível. Somente em momentos de caminhada é possível puxar o botão Esc e salvar manualmente seu progresso. Obviamente, essa mecânica também não é explicada em parte alguma e o jogador pode passar um bom tempo achando que só é possível salvar diante de “mementos”, objetos que simbolizam memórias. O jogador também pode passar um bom tempo achando que é impossível morrer…
Coralina: a Memory Tale poderia ser um livro. Continuaria sendo incompreensível, mas, pelo menos, não seria um jogo falho. Entretanto, Maki tem um livro publicado, chamado Gothopia, e o jogo tem diversas referências a essa obra também. O que ele buscou aqui foi algo mais sinestésico que a literatura: uma experiência audiovisual que busca passar sensações, não uma narrativa. Nesse ponto, e somente nesse ponto, Coralina: a Memory Tale encontra seu propósito.
Prós:
🔺 Mistura de estilos visuais que criam uma identidade única
🔺 Trilha sonora matadora
Contras:
🔻 Referências demais, história confusa
🔻 Jogabilidade rasa, exceto quando ela é incompreensível
🔻 Baixo valor de produção
Ficha Técnica:
Lançamento: 13/09/24
Desenvolvedora: Gabriel Maki
Distribuidora: ZNT Productions
Plataformas: PC