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Imagine um governo autoritário, centrado na figura de um líder carismático e idolatrado por todos. Nas entranhas desse governo vicejam a burocracia extrema e a corrupção generalizada, palco para a perseguição política em nome de um futuro melhor que nunca chega. Essa é a ficção concebida pela Warm Lamp Games em Beholder 2, um retrato brutal dos bastidores do poder, do jogo de gato e rato pela luta por influência e dinheiro.

De volta ao admirável mundo novo

O primeiro Beholder, lançado no final de 2016, foi o primeiro jogo que analisei aqui para o Gamerview. Foi também uma experiência marcante em mais de um sentido, um mergulho em uma realidade sufocante. No jogo original, a desenvolvedora conseguiu captar como um regime ditatorial estende sua influência para todas as esferas da sociedade e até o mais comum dos cidadãos pode se converter facilmente em uma nova engrenagem do mesmo sistema que o oprime. Em uma selva repleta de leis, quem detém o mínimo de poder é simultaneamente carrasco e vítima.

Essa mensagem é mantida na continuação, que não é exatamente uma continuação. Ignorando os eventos do final do primeiro jogo, Beholder 2 nos traz uma nova situação em que uma pessoa normal, sem malícia ou ambição, precisa aprender como funciona esse mundo, dobrar sua ética ou se arriscar a perecer em um cenário impiedoso. Controlamos aqui Evan Redgrave, o filho de um poderoso integrante do Ministério, que é arrastado contra sua vontade para o turbilhão de um mistério: o aparente suicídio de seu pai na cena de abertura do jogo.

Beholder 2
O homem, o mito!

Por indicação do falecido, Evan consegue um cargo no cobiçado centro da burocracia do Estado, apenas para descobrir que em todas as esferas sempre haverá alguém acima tentando pisar em quem está embaixo e gente que está embaixo disposta a tudo para passar pra cima. O Ministério é um ninho de víboras e todos os métodos são válidos para apunhalar os colegas pelas costas: plantar evidências, conspirar, denunciar atividades classificadas como ilegais, mentir, manipular. Nas palavras de um dos personagens, trabalhar duro é a forma mais insana de se ganhar reputação.

“Você sabe com quem está falando?”

Beholder 2 nos traz verdades: regimes ditatoriais não são organizações malignas monolíticas azeitadas para um único propósito. São organizações malignas onde todos estão querendo um pedaço para si mesmos. Nesse ambiente, a burocracia é uma barreira para manter a população sob controle. Essa barreira pode ser burlada com suborno, aceito e até incentivado pelos gerentes, que chegam a estabelecer cotas para os funcionários do chamado baixo clero. Então, todos estão querendo se dar bem em um cenário que incentiva a carteirada e o “jeitinho”. Sim, ainda estamos falando do jogo.

Beholder 2
Nosso glorioso cafofo, cedido pelas mãos benevolentes do Estado!

Evan não é um paladino da Justiça, um quixotesco herói que busca vingança ou respostas para a morte do seu pai. Nosso protagonista não via ou falava com ele havia uma década. Sua presença aqui é involuntária e todos os olhares se voltam para ele. É apenas uma questão de dias para a armadilha se fechar: ou Evan se adapta ao jogo ou irá encontrar o mesmo destino do seu pai, de um jeito ou de outro.

Novamente, a Warm Lamp Games não coloca freios ou realiza juízo de valor sobre as decisões do jogador. Há diferentes formas de “se livrar” da concorrência e subir na hierarquia e cabe a cada um de nós traçar os limites de até onde se pode ir. Causou-me um grande desconforto não conseguir solucionar um dilema da forma mais pacífica possível e terminar armando um falso flagrante para um colega de trabalho do qual me compadeci. Ele foi espancado e executado na frente de todos, diante de aplausos, pelo crime de traição à Pátria. Nos corredores do Ministério impera a caça às bruxas. Entretanto, o desconforto é apenas pessoal e não traz consequências para o jogo, essas são suas regras.

Para disfarçar esse remédio amargo, Beholder 2 embrulha tudo com uma estética minimalista que desumaniza seus personagens. O visual aqui é um pouco mais cartunesco do que vimos no jogo anterior, mas não chega a comprometer. Ou talvez seja somente o nível de zoom mais próximo do que tínhamos antes que exija uma maior quantidade de detalhes, que acabam realçando o visual dos habitantes dessa distopia. As falas dos personagens também são desumanizadas, alguns soam perfeitos em seus tons, mas outros parecem monótonos.

Beholder 2
Cenários externos são resolvidos como num jogo de texto.

A trilha sonora fecha a atmosfera com o tipo de música que se espera de um jogo que gire em torno do totalitarismo. As faixas são grandiloquentes, mas também oferecem a medida certa de temor, principalmente nos momentos que antecedem execuções.

Nada como um dia após o outro

É uma pena que a Warm Lamp Games amarra esse universo e esse suspense com uma história arrastada e presa em uma mecânica propositalmente repetitiva. Em macro escala, Evan irá eliminar seus concorrentes no escritório, subir de nível na hierarquia (fisicamente subindo também os andares do prédio do Ministério), eliminar seus novos concorrentes, subir de novo na hierarquia. É a mesma mecânica, que já era cansativa no primeiro andar, repetida outras vezes.

Beholder 2
Trabalhar para pagar os boletos… atenção para a reclamação válida do cidadão!

Em micro escala, Beholder 2 se perde também na rotina de seus mini-jogos. Para ganhar dinheiro, Evan depende do seu trabalho no Ministério: analisar pedidos dos visitantes do serviço público e despachá-los para as salas corretas. Ele é basicamente um carimbador de formulários, um burocrata. Os pedidos mais estranhos chegam ao seu guichê e eles servem para que tenhamos uma visão mais ampla dos horrores dessa sociedade doutrinada, onde o Líder tudo pode e o povo luta por migalhas, por remédios, por trabalho, por roupas, por uma vida melhor, onde tudo é crime, mas nada ocorre, feijoada. Mas depois de dezenas de atendimentos (e você fará muito mais do que isso), a tarefa se torna tão enfadonha quanto deve ser no mundo real. Nesse momento, Beholder 2 se torna um simulador de repartição pública, daquelas de clichê, onde os movimentos são mecânicos e o cérebro desliga.

Então, Evan caminha pelos corredores, conversa, trama, trabalha, volta pra casa, paga contas, dorme, repete. É um mérito da desenvolvedora conseguir capturar com tanto sucesso o desesperador vazio do dia a dia e acredito que a proposta era exatamente essa, ainda assim sua jogabilidade irá assustar quem estiver interessado em desvendar esse mundo. Novas pistas sobre o que aconteceu no passado são distribuídas muito vagarosamente, após muitas idas e vindas, missões paralelas bastante parecidas, formulários carimbados, conversas de comadres.

Beholder 2
O programa de demissão voluntária pela glória de nossa grande Nação!

Quem perdurar na busca por respostas e sobreviver ao moedor de almas que é o Ministério será brindado com uma conclusão que foge e muito do clima realista do resto do jogo. Uma distopia, para funcionar, não pode se distanciar demais da realidade vivida pelo leitor/jogador/espectador.

Entretanto, Beholder 2 vai amplificando tudo pelo caminho em sua reta final, abandona qualquer traço de sutileza e ainda traz uma conclusão fantástica que abraça a ficção-científica com força e larga por completo a crítica social. O resultado final acaba sendo uma jornada exaustiva e uma chegada que surpreende, mas pelos motivos errados.