Para tentar salvar a vida da minha filha, eu estava vendendo as escovas de dentes da família e chantageando uma vizinha por chorar sozinha na escuridão do seu quarto. No glorioso Estado, chorar é crime, embora ninguém tenha motivos para sorrir. Ou minha vizinha pagava o que eu pedi ou a polícia iria arrastá-la à força para a prisão, para nunca mais voltar.
Esse é a realidade de Beholder, da pequena desenvolvedora siberiana Warm Lamp Games: uma realidade sórdida e opressora, onde você oprime e faz coisas ainda mais sórdidas não para obter vantagens, pontos ou triunfo, mas para manter vivo a si mesmo e aqueles que se ama. Onde você se torna mais uma engrenagem de um aparato burocrático de monitoramento de um Estado ditatorial e suas perspectivas de um futuro melhor são mínimas, quando não são nulas. No curto espaço de seis horas que você leva para chegar a um dos finais dessa aterradora jornada aos porões de uma distopia, você irá mentir, roubar, matar, extorquir e tomar decisões que não serão nada agradáveis.
Beholder consegue isso ao misturar estratégia com política: ao lado da sua família, você assume o papel de Carl, o síndico de um prédio designado pelo governo para administrar as necessidades de seus moradores. Você precisará cumprir missões para agradar os inquilinos, como encontrar objetos pelo cenário ou resolver dilemas, mas seu maior dever é para o Ministério. E seu maior dever é vigiar e delatar os mesmos vizinhos que você está ajudando, sem que eles saibam. Você instala câmeras de vigilância secretas, revista apartamentos e até espiona pelo buraco da fechadura, aguardando a oportunidade de flagrar um comportamento inaceitável em uma sociedade repleta de regras: ler é proibido, chorar é proibido, carregar maçãs é proibido, e novas proibições chegam a todo instante.
Não se iluda: Carl não é um herói ou um monstro. Mas um ser humano comum forçado a fazer escolhas de vida ou morte sem saber ao certo seus motivos ou suas consequências. Na narrativa reside um dos maiores trunfos de Beholder, ao desenhar um cenário que não é de todo implausível, mas é verdadeiramente assustador. E responde as velhas perguntas que são feitas ao final de todo regime de exceção: como tantos aceitaram aquele estado de coisas? Como tantos participaram de um sistema claramente tão perverso? Carl é a resposta. O homem comum em uma posição que oferece ao mesmo tempo poder e temor.
Na pele de Carl, atrocidades são cometidas. E a vida segue em Beholder.
A trilha sonora do jogo pontua aqui e ali o tom de melancolia certo, apenas para acentuar ainda mais a aparição da polícia com uma música que instiga o medo necessário imposto pela quebra da tranquilidade, pelo tapa na cara da revelação do que pode acontecer se algo sair da linha.
Visualmente, o jogo usa e abusa do contraste do preto e do branco. Dos personagens, não conhecemos mais do que os grandes olhos expressivos brancos. Do prédio, temos cores que também apertam o peito e um tempo que nunca faz Sol. Visto de longe, Beholder evoca This War of Mine e Limbo, mas é claro que um jogo com essa temática não poderia ter gráficos realistas. O tom cartunesco, na verdade, o aproxima da charge política.
Infelizmente, Beholder não é livre de defeitos. A jogabilidade carece de atalhos óbvios de teclado, essenciais para um título de gerenciamento. Ao invés disso, você usa o clique do mouse para tudo: para abrir o inventário, para ver fichas, para ler mensagens, para ver as missões em aberto, para andar, sendo que cada uma destas funções se beneficiaria imensamente de uma tecla associada. Para complicar a situação, na maioria das vezes será necessário distanciar o zoom para vigiar o prédio como um todo, mas isso torna o clique em um personagem ou objeto bastante difícil e muitas vezes me vi clicando no lugar errado. Não é nada que atrapalhe a experiência, mas é algo que poderia ter sido melhorado e, ao final de uma longa sessão de jogo, a mão doía de tanto clicar.
Em muitos momentos, se tem a nítida sensação de que o jogo quer que você falhe. Pouca coisa é explicada, muito precisa ser intuído e algumas tarefas ou metas parecem impossíveis. Ainda não decidi se isso é uma falha acidental ou uma decisão artística: na realidade que se tenta emular aqui, suas chances de sobrevivência seriam mesmo mínimas. E não foram poucas as vezes em que terminei em becos sem saídas e tive que voltar atrás no sistema bastante amigável de salvamento automático, tomar novas decisões e seguir em frente. Meus instintos diziam que a rota que Carl estava seguindo não poderia ter um final feliz, mas, quando o final veio, me pegou de surpresa, com uma conclusão um pouco abrupta.
Saí do jogo com a sensação de um soco no estômago. Beholder é um simulador de ditaduras, lançado em um momento em que as liberdades individuais parecem caminhar no fio de uma navalha e aqueles que desejam um Estado policial se fazem ouvir em brados cada vez mais altos. Para alguns, talvez seja um título obrigatório.