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No mundo do entretenimento, produtos de sucesso frequentemente se tornam trilogias. Star Wars, Senhor dos Anéis, O Poderoso Chefão e De Volta Para o Futuro são exemplos de trilogias muito bem sucedidas no cinema. No mundo dos jogos, porém, há toda uma mística envolvendo o terceiro título de franquias de sucesso. Max Payne, Dark Souls e Bioshock são IPs que possuem três títulos, mas muitas outras IPs tão aclamadas quanto essas carecem de um terceiro jogo. Dentro desse contexto, é possível citar Half Life e Portal como os exemplos mais notórios, visto a grande quantidade de fãs que ambas as franquias possuem. Nos jogos de estratégia, porém, havia uma trilogia inacabada que a mera menção ao terceiro título era o suficiente para inflamar toda uma comunidade: Victoria.

Anunciado em 2021, Victoria 3 está finalmente chegando para suprir as demandas de fãs ansiosos para testemunhar a evolução de um dos jogos de estratégia mais complexos e cativantes do gênero. Na versão disponibilizada pela Paradox Interactive, pude testar todas as novidades em primeira mão, utilizando ferramentas novas e antigas para atingir algo que todos os brasileiros gostariam que acontecesse: transformar o Brasil em uma grande potência mundial.

Exército de vários homens não tão sós

Assim como no título anterior – e como em quase todos os jogos da Paradox –, Victoria 3 permite que o jogador escolha qualquer nação presente no mapa. A empresa sueca é conhecida pela atenção aos detalhes históricos, e o esforço para representar a disposição geopolítica do mundo tal qual em 1836 se traduz em um mapa que, de início, conta com referências que agradarão os interessados em história. 

O Brasil, por exemplo, é um dos lugares favoritos dos jogadores de Victoria 2, e no terceiro título não poderia ser diferente. A imensidão do território brasileiro e seu potencial econômico fazem do país um local propício para o aprendizado das mecânicas básicas do jogo. Novamente chamando a atenção para os detalhes históricos, em 1836 o Brasil era um lugar instável, visto que Dom Pedro II era apenas uma criança que, por não ter a idade necessária para assumir a responsabilidade de imperador, fora forçada a deixar os assuntos gerenciais nas mãos dos regentes. O chamado período regencial deu origem a diversas revoltas, incluindo a Cabanagem e a Revolução Farroupilha, onde ambas compõem o primeiro grande desafio do jogador que resolve tentar a sorte para levar a terra tupiniquim à glória.  

As mecânicas de guerra mudaram drasticamente em comparação ao Victoria 2 (Victoria 3 ainda está em desenvolvimento e o conteúdo da imagem poderá sofrer alterações na versão final)

De início, noto a primeira grande mudança em relação ao Victoria 2: as tropas não são mais comandadas diretamente. A fim de resolver conflitos utilizando a força militar, o jogador deverá distribuir as tropas em fronts. As duas revoltas que ocorrem no Brasil, por exemplo, dividem o país em dois fronts, e o jogador, através dos comandantes, deverá escolher onde irá enviar as tropas comandadas pelos mesmos, priorizando a defesa ou o ataque. Uma vez com as tropas separadas, as batalhas ocorrem de tempos em tempos, onde um valor localizado no front determina o grau de vantagem ou desvantagem do seu exército perante o inimigo. Fora isso, é apenas observar seus comandados em ação, onde, dependendo do resultado das batalhas, os linhas avançam, retrocedem ou criam novos fronts.

A campanha brasileira é um ótimo cartão de visitas para testar essa nova mecânica. Enfrentar dois fronts rebeldes em um país de dimensões continentais pode parecer uma tarefa quase impossível, mas com paciência, comandantes treinados e sorte escolhas táticas eu consegui finalmente unificar o país. Por experiência própria, acabei descobrindo que é possível enfrentar os rebeldes somente com o contingente regular de militares, mas, caso a batalha fique muito árdua, Victoria 3 mantém a mecânica referente ao recrutamento dos conscritos. 

Sem amigos na política

Após o desafio militar proporcionado pelas revoltas, é hora de entender o funcionamento do jogo político. Quem já jogou Victoria 2 sabe muito bem que, além de um excelente simulador econômico, o jogo possui elementos relativos à simulação política. Para passar leis e impor certas medidas, é de suma importância que o grupo político majoritário no governo esteja alinhado aos interesses do jogador, e Victoria 3 busca reviver tal experiência, adicionando alguns elementos extras às mecânicas de grupos de interesse.

Primeiramente, o Brasil é um império, logo o imperador só sai do trono em caso de morte ou troca do sistema político – seja pela revolução ou através de trâmites legais. Todavia, o país é formado por grupos de interesses, e tais grupos podem formar partidos a fim de concorrerem a uma vaga no parlamento. As eleições ocorrem e, de acordo com o resultado, o jogador decide quais grupos formarão a bancada pró-governo, onde a decisão referente a quem entra e quem fica de fora define o nível de legitimidade do regime. Note que os partidos políticos são diferentes dos grupos de interesses, já que vários grupos com interesses parecidos podem se unir dentro de um partido.

Em Victoria III, os grupos políticos podem mudar de interesses e formar partidos juntamente com outros grupos (Victoria 3 ainda está em desenvolvimento e o conteúdo da imagem poderá sofrer alterações na versão final)

Uma das muitas estratégias para o Brasil é priorizar a abolição da escravidão. Quem prestou atenção nas aulas de história sabe muito bem que a escravidão foi abolida no Brasil apenas em 1888, através da Lei Áurea. Os que prestaram ainda mais atenção nas aulas devem saber que, antes da Lei Áurea, outras leis que visavam diminuir a escravidão no Brasil foram passadas, incluindo a Lei do Ventre Livre, a Lei dos Sexagenários e a Lei Eusébio de Queiroz. Em Victoria 3, a decisão de abolir ou não a escravidão tem impactos sociais, econômicos e políticos.

Voltando às leis abolicionistas, a Lei Eusébio de Queiroz, citada anteriormente, reprimiu o tráfico de escravos para o Brasil. Contudo, tal lei teve impactos dentro da política nacional, já que os donos de terra se mostraram insatisfeitos ao verem que não poderiam mais importar mão de obra escrava. Do mesmo modo, os grupos de interesse em Victoria 3 ficarão satisfeitos ou insatisfeitos com as políticas aprovadas, podendo oferecer bônus a nível nacional caso estejam satisfeitos ou rebeliões caso estejam descontentes.

No caso do Brasil da vida real, a lei que coibiu o tráfico de escravos foi um fator determinante para a criação da Lei de Terras de 1850, onde os donos de terra se saíram beneficiados pelo ato, já que o processo de posse das chamadas “terras devolutas” só era possível pela compra através do governo – o que é um processo bem diferente do que ocorreu nos Estados Unidos, com a chamada “Lei de Homestead”. Dentro do jogo, na impossibilidade de agradar os donos de terra de forma imediata, eu resolvi bancar a abolição integral da escravidão, passando a lei e, como consequência, enfrentando uma guerra civil decorrente da insatisfação dos mesmos. Após muito perrengue – como, por exemplo, o fato de um dos meus comandantes ter me traído para ir lutar ao lado dos revoltosos –, consegui suprimir os revoltosos e restabelecer, em partes, a ordem. A vitória foi suficiente para reduzir a influência do grupo dos donos de terra até o final da campanha.

Vickynomics: o retorno

Há muito tempo, enquanto lia alguns relatos de desenvolvedores da Paradox, descobri que o sistema econômico de Victoria 2 – que é considerado um dos mais complexos e únicos de todos os jogos – era motivo de mistério dentro da desenvolvedora. A falta de documentação dificultava bastante a compreensão do código fonte, o que dificultaria a criação de uma sequência. Mesmo na ausência da documentação necessária, os fãs não aceitariam um sistema econômico que fosse muito diferente do Victoria 2 – já que esse é, para muitos, o grande motivo pelo qual o jogo ainda possui usuários ativos hoje em dia. 

Primeiramente, a Lei da Oferta e Demanda impera em Victoria 3. Os produtos produzidos nas minas, fazendas e indústrias possuem um preço base, mas tal preço oscila de acordo com as necessidades internas e externas. A começar pelas necessidades internas, a sua população compõe uma parte importante da economia, já que as pessoas precisam, pelo menos, de itens básicos de sobrevivência, e tais itens devem ser ofertados pelo mercado. Cereais, roupas e móveis estão entre os primeiros itens necessários, e o preço dos mesmos é essencial para a determinação do padrão de vida da população.

Guarde essa tela, pois é onde você passará boa parte da sua campanha observando a oferta e a demanda (Victoria 3 ainda está em desenvolvimento e o conteúdo da imagem poderá sofrer alterações na versão final)

Pegando o exemplo do Brasil, é de se esperar que o país tenha uma grande produção de alimentos, mas, na realidade, não é bem assim. São poucas as fazendas de comida em território nacional, e a quantidade de alimentos produzidos pelas mesmas não supre a demanda interna. Obviamente, o Brasil possui outros produtos que atendem à demanda interna e, por causa disso, podem ter seu excedente exportado – como o açúcar, a madeira e o café, por exemplo. Ao me deparar com esse cenário e notar que a quantidade de mão de obra disponível estava escassa, uma pergunta me surgiu à cabeça: afinal de contas, o que um governante deveria fazer para que a população não passe fome?

Victoria 3 faz um excelente trabalho em simular as nuances do mercado. Quando a produção de um item necessário para um país não é suficiente – seja por falta de mão de obra ou por outras dificuldades que inviabilizam a atividade –, duas opções surgem:

  • Remanejar a atividade econômica a fim de priorizar a produção de alimentos;
  • Importar os produtos necessários.

Pensando no primeiro caso, a falta de alimentos causa um aumento no preço dos mesmos, logo a criação de fazendas dedicadas à plantação de cereais se tornaria uma atividade muito lucrativa. No Victoria 3, tal fato se converte dentro do jogo, onde a construção das fazendas acaba por atrair agricultores e trabalhadores de outros locais, já que os lucros são muito maiores do que os obtidos nas atividades anteriores cuja demanda já está bem atendida. Mas, mesmo assim, essa opção tem que ser pensada com cuidado, visto que a quantidade limitada de trabalhadores se torna um “cobertor curto”. Eu posso criar várias fazendas e esperar que toda a mão de obra escolha ir para as mesmas por causa dos lucros maiores e, consequentemente, dos salários melhores, mas os outros setores serão afetados – sem falar que é bem possível que, mesmo com várias fazendas, a produção ainda não seja suficiente para suprir o mercado interno.

A opção de importação pode ser a solução dos problemas. Em 1815, a Inglaterra estabeleceu as chamadas “Leis dos Cereais”, onde a entrada de cereais estrangeiros era desestimulada através de pesadas tarifas de importação. Tal medida visava proteger os agricultores ingleses, mas acabava, por tabela, encarecendo o preço dos alimentos para a população. O impacto dessa lei foi grande em Manchester, que era um grande centro da revolução industrial e, por isso, estava repleta de operários com pouco poder aquisitivo. O alto preço dos alimentos forçava o aumento do salário dos trabalhadores, onde o custo de tal aumento era transferido para os produtos que eram produzidos nas fábricas, diminuindo a competitividade da indústria inglesa. Esse foi o cenário da criação da chamada “Escola de Manchester”, composta por economistas que, em 1846, conseguiram pressionar o governo a fim de abolir tal medida e, consequentemente, abaixar o preço dos cereais com a entrada de produtos importados.

A história da “Lei dos Cereais” inspirou a solução que encontrei para solucionar a crise dos alimentos em Victoria 3. O estabelecimento de rotas comerciais responsáveis pela importação de cereais proporcionou uma enorme redução no preço dos mesmos, aumentando exponencialmente o padrão de vida da população. Mesmo com tarifas, a importação de cereais compensou muito mais do que a criação de enormes fazendas de alimentos. Era uma situação de ganho duplo: a população recebia alimentos mais baratos e eu lucrava com o dinheiro das tarifas. 

Com a tecnologia, também é possível alterar o modo de produção das construções, adquirindo maior produtividade e alterando a oferta de mão de obra (Victoria 3 ainda está em desenvolvimento e o conteúdo da imagem poderá sofrer alterações na versão final)

A exemplo dos cereais, outros produtos também seguem a mesma lógica. Você pode baratear ou encarecer produtos através da criação de rotas de importação e/ou exportação, como também através do estabelecimento de impostos sobre o consumo. A economia de Victoria 3, apesar de parecer mais simplificada em comparação ao Victoria 2, funciona de maneira intuitiva e natural. 

O caso dos cereais tem a ver com um bem de consumo imediato, mas outros bens mais complexos são influenciados pela mesma mecânica. Como um exemplo rápido, para se produzir ligas de aço, o jogador precisa de ferro e carvão. Contudo, se o preço de alguma dessas duas matérias primas estiver alto, a produção de ligas de aço poderá se tornar inviável. Esse processo acontece com outras produções ainda mais complexas – como no caso da indústria de automóveis, por exemplo. Meu objetivo era elevar o Brasil ao patamar de potência através da economia, então passei muitas horas destrinchando as maneiras mais eficientes de produção.

Um passo para trás, dois para frente

Os jogos da Paradox são conhecidos por concederem uma grande liberdade ao jogador, permitindo a viabilidade de diversos estilos de jogo. Em Victoria 3, o jogador pode adotar uma postura mais focada na economia, investindo em setores-chave e, assim, ganhando pontos de prestígio baseados no aumento do PIB e da qualidade de vida da população. Outros, porém, podem preferir uma abordagem mais invasiva, apelando para a força militar a fim de conseguir pontos de prestígio, acesso a diferentes mercados e matérias-primas. Seja qual for a sua abordagem, o jogo lhe oferece ferramentas para tal.

Dom Pedro II: o homem que, entre uma guerra de expansão e outra, gostava de viver perigosamente (Victoria 3 ainda está em desenvolvimento e o conteúdo da imagem poderá sofrer alterações na versão final)

Seguindo no meu jogo, após estabilizar o país e resolver o problema da importação de produtos essenciais, o crescimento da qualidade de vida do Brasil começou a atrair imigrantes de diversas partes do mundo. Os imigrantes ilustram bem a complexidade de Victoria 3, pois eles funcionam como mão de obra extra, mas podem ter problemas devido à aceitação cultural por parte dos nativos. Nesse sentido, as leis funcionam como modo de conter a discriminação, mas algumas podem acabar indo contra os interesses de alguns grupos poderosos. O jogo político, mais uma vez, se mostra importante.

Resolver os problemas relativos aos interesses políticos pode demandar um certo tempo e, em alguns momentos, você precisará da aprovação de um determinado grupo cuja força política está enfraquecida. Saber quem agradar para atingir os seus objetivos é uma parte essencial de Victoria 3; é algo que eu, nesse texto, não conseguiria explicar de forma integral, pois tais objetivos estão alinhados com o perfil do jogador, e caberá ao mesmo decidir o que fazer e quais ferramentas utilizar para atingir um determinado fim.

O que eu posso dizer é que, no meu caso, a industrialização foi o meio utilizado para atingir o patamar de grande potência, logo o grupo político referente aos industrialistas se tornou o foco dos meus esforços de fortalecimento. Através de investimentos na indústria e na produção de matérias-primas, pude chegar nos estágios finais com mais prestígio que muitos países da Europa, brigando com a França e a Alemanha pelo top 1 mundial. Não faltou esforço para tentar acabar o jogo em primeiro, porém a França havia, de algum jeito, dominado toda a Inglaterra, ganhando uma vantagem competitiva absurda em relação a qualquer país do mundo. Lutei bravamente, mas tive que me contentar com um segundo lugar.

Victoria 3
Não foi dessa vez que o Brasil se tornou a maior potência mundial (Victoria 3 ainda está em desenvolvimento e o conteúdo da imagem poderá sofrer alterações na versão final)

E essa foi a história de um país que, apesar de ter começado no meio de duas revoluções rebeldes, conseguiu se estabilizar para, no fim, figurar entre os poderosos. Nessa realidade, “Ordem e Progresso” não foi um mero slogan positivista utilizado pelos republicanos em nossa bandeira, mas sim uma frase que traduz os 100 anos de campanha de um Brasil Imperial, moldado através da industrialização, dos produtores de alimentos, das guerras que destruíram a Bolívia e o Chile em busca de enxofre para abastecer a indústria, da liberdade e dos pactos diplomáticos. Sabemos que na vida real a história não foi tão bonita assim, mas essa é a graça de jogos como Victoria 3: aqui, o futuro de uma nação está em suas mãos.