Quem foi Jack Thompson? Quem chegou agora, pegou Grand Theft Auto V de graça na Epic Games Store ou está contando os dias para ver Kratos arrancando cabeças ou Master Chief chutando bundas alienígenas na TV, sequer imagina as forças obscurantistas que tentaram varrer os jogos eletrônicos para debaixo do tapete na virada do milênio. Ou talvez imagine, porque ainda ontem assistíamos incrédulos uma legião de religiosos chocada com a animação de Cuphead, pelo simples fato de mostrar o Diabo.
Na verdade, se você, nesse momento, tentar comprar o jogo Carmageddon, não irá conseguir. É claro que o título está obsoleto (e, possivelmente, você sequer o conheça). Embora suas continuações e remakes possam ser encontrados em qualquer loja digital, o jogo original, de mil novecentos e coquinho, foi proibido pelo Ministério da Justiça no Brasil e sua comercialização segue ilegal até os dias atuais.
Se você realmente não conhece Carmageddon, então talvez você conheça algum dessa lista: Everquest, Bully, Duke Nukem 3D, Postal. Não? Counter-Strike certamente é conhecido. O que todos esses jogos tem em comum é que eles foram declarados uma ameaça pública no Brasil em algum momento de suas trajetórias nas lojas. Duas décadas atrás, determinados jogos eletrônicos foram considerados ilegais devido ao chamado pânico moral. Algum legislador, movido por grupos de opinião pública, declarou que esses jogos eram nocivos para a sociedade, por incentivarem violência no mundo real ou vício.
E o que isso tem a ver com Jack Thompson? Ele foi um advogado norte-americano que se tornou a face de uma “cruzada” contra os jogos violentos. Nas palavras do próprio, eles seriam “simuladores de assassinato” e uma das principais causas dos tiroteios em massa nos Estados Unidos. O principal alvo de Jack Thompson era Grand Theft Auto, mas ele tinha munição para atirar para todos os lados.
Ainda de acordo com Thompson, a Sony seria uma péssima influência para a juventude americana e classificou a entrada da gigante japonesa no país com seus jogos como “Pearl Harbor 2”. No caso, ele estava se referindo ao ataque surpresa e devastador realizado pela aviação japonesa contra o porto de Pearl Harbor, durante a Segunda Guerra Mundial, não ao filme homônimo, que também é uma catástrofe.
Jack Thompson levou aos tribunais empresas de jogos eletrônicos em defesa de uma sociedade vitimizada que só existia em sua cabeça. Perdeu todas as disputas. Tanto fez que acabou perdendo também a licença para advogar, após comprovarem nada menos que 31 violações de conduta, incluindo alegações falsas e tratamento inadequado de litigantes. Estudos profundos realizados pelo FBI constataram que não há uma relação entre o consumo de jogos violentos e crimes reais.
Jack Thompson virou um fantasma, um resquício histórico de tempos mais sombrios e preconceituosos, uma aparição que ressurgia a cada novo tiroteio, com respostas fáceis para a aparentemente infindável questão do controle de armas automáticas nos Estados Unidos.
Desenterrando Jack Thompson
O The Verge localizou Jack Thompson em seu refúgio na Flórida, aos 70 anos de idade. Os anos não lhe trouxeram mais sabedoria e o ex-advogado segue entrincheirado em suas convicções, gritando para as nuvens ou para quem estiver disposto a ouvir. Seria folclórico se esse mesmo homem não tivesse pautado as discussões sobre jogos eletrônicos durante quase uma década, se não tivesse influenciado nomes do calibre de Hillary Clinton (que chegou a comparar jogos violentos com tabaco e álcool, como produtos cujo consumo deve ser submetido ao controle do Estado) ou se os ecos de seus delírios não estivessem ainda reverberando por aí. O sensacionalismo nunca envelhece.
Thompson ainda se lembra do momento que descobriu Grand Theft Auto III: “Isso me fez mal ao meu estômago. Eu estava em minha casa, coloquei [Grand Theft Auto III] em um console de videogame e foi perturbador. Você não estava assistindo passivamente a algo; você estava participando disso”. Nascia ali uma longa aversão e uma luta perdida contra a Rockstar Games. Com 150 milhões de cópias vendidas, GTA V é o segundo jogo mais popular da história, perdendo somente para o nada violento Minecraft.
O tempo passou e Thompson foi atropelado pelo zeitgeist. Jogos eletrônicos viraram uma indústria multibilionária que começa uma expansão para outras mídias. Entretanto, ele se recusa a enxergar seus erros como erros. Thompson acredita que perdeu a licença de advogado como fruto de uma conspiração para torná-lo irrelevante, que pegaram pesado com ele porque ele pegou pesado com seus oponentes. Entre suas crenças também está a convicção de que um dia as pessoas irão reconhecer que ele estava certo sobre os jogos. “Não quero desculpas de ninguém, mas tenho essa esperança, essa ideia inabalável. Isso seria uma coisa legal”, afirma.
Jack Thompsons brasileiros
O mais próximo de um “Jack Thompson” que tivemos em terras brasileiras foi o ex-senador Valdir Raupp. Em 2006, ele apresentou o infame Projeto de Lei 170, que classificava como crime “o ato de fabricar, importar, distribuir, manter em depósito ou comercializar jogos de videogames ofensivos aos costumes, às tradições dos povos, aos seus cultos, credos, religiões e símbolos”.
Era o início de uma batalha de seis anos nos corredores do Congresso, em que a Comissão selecionada para avaliar a proposta chegou a afirmar que “as autoridades brasileiras têm entendido que esses jogos trazem a tônica da violência que seriam capazes de formar indivíduos agressivos, influindo sobre o psiquismo e reforçando atitudes agressivas em certos indivíduos e grupos sociais”.
Embora Raupp não tenha conquistado a mesma visibilidade que Thompson, no sentido de se tornar uma estrela da televisão e de entrevistas por causa de suas ideias em relação aos jogos eletrônicos, ele levantou essa bandeira por seis anos, até ele mesmo arquivar a PL 170, em 2012. Possivelmente por ter outras questões mais prementes em sua carreira política.
Se tal retrocesso parece esquecido a uma década de distância, é importante destacar que o PL 3746/2019, que ainda tramita nas casas legislativas federais, sustenta as mesmas argumentações. De autoria do deputado federal Olival Marques – DEM/PA, o projeto de lei afirma: “por trás dessa história de sucesso comercial dos jogos eletrônicos esconde-se sua face nefasta, composta por um estímulo desmesurado à violência, à pornografia e ao desrespeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família”. E adivinha qual franquia de jogos é mencionada como principal ofensa na PL 3746? É “um título no qual o objetivo do jogador é roubar carros, disputar rachas, integrar gangues e atropelar pedestres indefesos”.
Também em 2019, às vésperas da regulamentação do eSports no Brasil, o senador Eduardo Girão – Pode/CE adicionou uma emenda que determina que “não se considera esporte eletrônico a modalidade que se utilize de jogo com conteúdo violento”. Nas palavras do Senador, “o objetivo desta emenda é dizer o óbvio: um jogo eletrônico que faça apologia à violência não é e nunca será esporte, pois seus conceitos não se comunicam”, eliminando, por consequência, títulos como Rainbow Six Siege, CS-GO, Free Fire e todo gênero de jogos de luta. Felizmente, a emenda foi rejeitada pouco tempo depois.
Seria ingenuidade de nossa parte imaginar que os tempos sombrios de censura e criminalização ficaram lá atrás ou que a sanha autoritária, conservadora e, por que não dizer?, ignorante não encontraria terreno fértil em solo brasileiro. É preciso estar sempre atento aos Jack Thompson de plantão.