“Tendo o príncipe necessidade de saber usar bem a natureza do animal, deve escolher a raposa e o leão, pois o leão não sabe se defender das armadilhas e a raposa não sabe se defender da força bruta dos lobos. Portanto é preciso ser raposa, para conhecer as armadilhas e leão, para aterrorizar os lobos.”
Nicolau Maquiavel em O Príncipe.
A dinastia Paradox apresenta seu novo herdeiro do título de Grão-Duque da série de estratégia mais complexa de todo o mundo: Crusader Kings III. Sequência da franquia mais cultuada dos amantes de jogos intensos no que tange a sistemas de controle, gerência e manipulação de territórios, exércitos e pessoas. Em um mundo de jogos como Civilization e Total War, Crusader Kings III está numa faixa de classificação só sua.
L’état c’est moi
Controlar um reino não é nada fácil. Se deixarmos de lado todo o trabalho envolvido em gerenciar o tesouro, manter o controle político sobre cada pedacinho de território, fazer o meio do campo quando a cultura ou a religião da área é diferente das suas, manter o chefe da sua religião feliz com o seu comportamento, entre muitas outras coisas, ainda precisamos gerenciar os humores de nossos vassalos e conselheiros. Caso contrário, é bem capaz da guilhotina ser inventada uns 600 anos mais cedo.
Tanto para quem conhece quanto para os estrangeiros à essas terras, Crusader Kings III teve como propostas aumentar o grau de fidelidade das simulações e gerenciamentos, deixando todos os sistemas com mais complexidade e mais similares ao que temos como historicamente acurado, e facilitar a entrada de novos jogadores.
Um dos maiores problemas da série Crusader Kings era o nível estúpido de dificuldade para qualquer novo interessado ousasse que sequer se aproximar do botão de comprar. Pelo misto de ser um jogo de nicho, focado na simulação intensa de acontecimentos medievais reais, e também pelo orçamento limitado, os lançamentos de Crusader Kings I (2004) e II (2012) criavam barreiras intransponíveis para uma porcentagem consideravelmente altas, o que chegou a me afastar do segundo jogo da série após algumas horas de tentativas frustradas de aprender até as mecânicas básicas.
Fico extremamente satisfeito em dizer de boca cheia que este ponto foi alcançado com sucesso. Não vou dizer que o jogo ficou simples ou fácil de forma alguma, pois o outro objetivo da Paradox também foi dominado e Crusader Kings III tem ainda mais camadas de simulação e sistemas sobre sistemas a serem conquistados pelos jogadores. Independente disso, digo que, por mais que algumas horas precisem ser investidas, o terceiro jogo da série é passível de ser adentrado, coisa que as outras instâncias exigiam alguma entrada secreta digna de uma cena de Indiana Jones.
O grau de liberdade de seleção de personagens iniciais ainda é grande, mesmo restringindo, dividi-se em duas épocas: 867 e 1066 da Era Comum, cada uma com seu conjunto de governantes principais – com textos narrativos introdutórios e definições de dificuldade da situação atual, porém permitindo também selecionar livremente qualquer outro governante que não esteja comandando uma teocracia – o que admito que me decepcionou um pouco não poder jogar com o Papa, liderar um país continental refém de religiosos conservadores com a cabeça enfiada no ânus e empurrando a população rumo a um abismo cavado pela própria ignorância, nada parecido com o que temos por aqui…
Seguir o tutorial proposto por Crusader Kings III se faz obrigatório para entender os pormenores de como segurar as rédeas desta besta enjaulada que é a montanha de mecânicas deste jogo. Vivenciamos a história de um lorde no que hoje é a Irlanda em busca de aumentar a relevância de seu nome e, quiçá, conquistar toda a Grã-Bretanha.
Cada passo e cada comando introduz uma nova mecânica, tratando de uma narrativa milenar em busca de glória e poder. Relativamente rápido, o jogo nos solta para tomarmos as próprias decisões e podermos levar nosso território à ruína o mais rápido possível. Isso porque até entender os pormenores e detalhes das melhores maneiras de governar ainda vai tomar algumas, quando não dezenas de horas.
O direito divino
Um dos pontos mais interessantes de Crusader Kings III trata da unicidade de cada personagem. Desde criança temos a oportunidade de sermos educados em 1 dentre 5 filosofias: diplomacia, marcial, gerenciamento, intriga e aprendizado. Quando adultos, podemos decidir qual dessas linhas de pensamento iremos nos dedicar, tendo um benefício de experiência quando escolhemos a que corresponde à nossa educação quando crianças.
Dentro de cada uma dessas linhas, precisamos escolher um foco e, conforme ganhamos pontos de experiência, podemos dividi-los entre 3 árvores de habilidades com vantagens muito diferentes entre si. Ao completar uma árvore, ganhamos uma característica que aprimora o personagem permanentemente.
Por falar em características, cada personagem pode possuir inúmeras, tanto positivas quanto negativas e, na maioria dos casos, ambas. Durante o crescimento da pessoa, alguns traços de personalidade básicos podem ser definidos e permanecem por toda a vida, influenciando as respostas de cada decisão a ser tomada. Outras podem ser adquiridas permanentemente por atitudes ou acontecimentos – como ser um brilhante estrategista ou eunuco, outras são temporárias – como estupor por haxixe ou profundamente doente.
Estas características pessoais são um dos pilares que vai definir qual é a estratégia recomendada a se escolher para governar seu território, assim como que tipo de interações os outros personagens irão buscar com você. Caso seja um especialista em diplomacia, será muito mais fácil lidar com alianças e vassalos. Se for um expert militar, expansão e conquista pode ser mais sua praia. Vanguardista em intrigas, pode contar com muita manipulação, mentiras, pressão psicológica e até assassinatos.
Saber navegar por entre diferentes estilos de governo e interação com seu conselho, seus vassalos e governantes vizinhos na morte de um personagem é o que vai definir o sucesso de seu sucessor. A variação que pode ocorrer entre um rei e seu sucessor é tamanha que pode derrubar um império em pouco tempo. São os maiores momentos de crise governamental – que não envolva as Crusadas.
Outro dos pilares envolve o conceito de Crusadas: religião e cultura. O simples fato de ser de outra cultura – por exemplo eslavos e germânicos – ou de um ramo religioso diferente – sejam nórdicos e cristãos, ou até ramos internos como católicos e ortodoxos – pode ser um fator determinante para a destruição de relações internacionais que antes eram profundas e intrincadas, agora descambam em guerras homéricas.
Agora, tendo dito tudo isso sobre as diferentes estatísticas que cada personagem possui – visto que não é só os seus personagens que tem essas características, todos os outros também as exibem – como fica a visualização disso tudo? A resposta não é tão direta quanto a pergunta – e a pergunta já não foi muito direta.
A visualização do mapa é de um charme sem tamanho! Com a câmera afastada ao máximo, o tabuleiro se mostra como um mapa desenhado em um papiro sobre uma mesa no que deve ser a sala onde as coisas acontecem. Aproximando, podemos chegar bem próximo às estruturas que simbolizam as construções de cada pedacinho do mapa, cada condado, igreja, cidade e castelo.
Os elementos referentes à personagens ocupam o terço esquerdo da tela, enquanto os referentes ao gerenciamento ocupam o terço à direita, ambos fixos e podendo abrir e fechar conforme a necessidade. Reservando o terço central, as decisões imediatas aparecem e desaparecem conforme a ocorrência, trazendo o senso de urgência devido.
Essa divisão conceitual facilita inconscientemente entender onde cada coisa fica, ou ao menos onde deveria ficar quando não sabemos onde está logo de cara, criando um padrão de aprendizado nas mentes dos jogadores enquanto a partida corre. Além destes três modelos de exibição, ainda temos 3 dos 4 cantos da tela recheados de ícones e indicadores, todos com funções diferentes, incluindo um buscador geral por funções e um glossário – o que, acredite, se faz muito necessário.
O salto na qualidade da exibição da tela padrão traz uma receptividade muito acima até do que eu estava esperando ao iniciar Crusader Kings III, é muito claro que houve um esforço considerável em construir a melhor moldura possível para o jogo. Ainda sim, mesmo com mais de 30 horas de jogo, ainda me vejo confundindo alguns termos, trocando as bolas aqui e acolá, seja por problemas da nomenclatura historicamente acurada, seja por algumas mecânicas que são apresentadas, mas a explicação não é suficiente.
Cortem as cabeças!
Falando nesta explicação e puxando o ponto do glossário de volta, em inúmeros pontos da interface, termos estão coloridos em tons de azul para simbolizar que possuem detalhamentos. Mantendo o mouse sobre eles, aparece um breve verbete aprofundando seus significados, tudo de uma forma bem natural, como se tivéssemos um ajudante nos lembrando de diversos pontos importantes a serem lembrados. Vale ressaltar, foi informado que isso foi tudo trabalho de um só desenvolvedor, Matthew Clohessy. Meus parabéns para você, querido!
E olha só, uma coisa puxa a outra, o ponto mecânico mais relevante de Crusader Kings III é um ícone que fica na divisa entre o terço central e o da direita. Ele é responsável por enumerar pontos de interesse a se realizar no seu governo, desde criar novos títulos de nobreza, oferecer vassalagem a outros governantes, pedir dinheiro ao chefe de sua religião, até quais guerras temos justificativas para declarar.
A velocidade, adaptabilidade e a possibilidade de ignorar permanentemente alguns dos avisos faz dessa funcionalidade um toque de ouro em Crusader Kings III. A tal ponto que fica a critério do jogador seguir somente as recomendações presentes ali ou ignorá-las completamente e mesmo assim obter sucesso. Podemos usá-la de muleta para caminharmos mais fácil ou para arremessar na cabeça do inimigo.
Complementando a parte visual, outro fator interessante é a quantidade de personagens gerados, cada um com suas feições, expressões e vestimentas correspondentes à sua cultura, religião, estado social e situação atual. Por exemplo, um sultão sueco de uma casa nobre e gravemente ferido terá, em qualquer momento que seja exibido, sua figura representando exatamente esta situação. Caso deixe de ser um nobre, tendo seus títulos retirados, e fique a vagar, suas vestimentas corresponderão à esta situação imediatamente.
Ter mais de um milhar de personagens aparentemente únicos é um feito impressionante da Paradox e serve de troféu para Crusader Kings III. Confesso que em uma enormidade do tempo, pela complexidade dos nomes dos personagens, eu os identificava muito mais pela aparência e pelos títulos adjacentes. Afinal de contas, não é fácil distinguir sequer o que está escrito em boa parte dos nomes nórdicos antigos.
Outro fator impressionante é que o jogo possui uma só tela de carregamento. Só uma ao iniciar uma nova ou carregar um salvamento antigo, dali para frente, é pau na máquina sem parar nem para respirar. Na verdade não, porque dá pra pausar o jogo conforme desejar, além das outras 5 velocidades de simulação, mas em relação a carregamentos, mais nenhum. No máximo uma leve segurada de tempos em tempos quando o autosave está ligado.
As diversas mecânicas de gerenciamento são um show à parte. As mais frequentes giram em torno dos exércitos, seus posicionamentos e movimentações. Temos também os gerenciamentos dos contratos de vassalagem, que são fundamentais para o controle fino do seu império, uma mínima variação na porcentagem de taxas ou de guerreiros pode significar seu sucesso ou fracasso. E outro extremamente relevante que pode ser levado como secundário por alguns, mas é a chave do sucesso, o gerenciamento da sua religião, qual seguir, quem agradar e qual o momento certo de criar uma nova! Não vou dar muitos detalhes do funcionamento de cada uma delas porque o review seria infinito e, devo dizer, que descobrir como e quais elas são é parte do prazer da descoberta. Saber balancear esses malabares todos é o grande charme de Crusader Kings III. Isso e construir um império do tamanho do planeta…
Para poder fechar, voltemos aos pontos que vejo como os maiores problema de Crusader Kings III é que algumas mecânicas não ficam bem explicadas, por mais que exista uma tentativa honesta de fazê-lo, e algumas interações e movimentações ainda são confusas. Um ponto que cabe nas duas reclamações é o gerenciamento de vassalagem. Perceber quais vassalos possuem quais territórios, quem manda em quem, quem é lambe-botas de quem em uma visão simplificada é – até onde sei – impossível. E isso me fez muita falta. Muita.
Com isso dito, mais uma vez elogio o trabalho e o produto da Paradox. Crusader Kings III mora sozinho em um Olimpo só seu. Nenhum outro jogo de estratégia consegue fazer o que ele faz, e com certeza nenhum chega perto de fazer tão bem. Total Wars e Civilizations estão seguindo outras trilhas, outros caminhos de semelhante qualidade, porém nesta crusada, a rainha é a Paradox.