Em meio a uma catástrofe sem precedentes e incompreensível em escala global, um homem fará de tudo para se reencontrar com sua família. Somerville é feito de opostos: mistérios em escala cósmica e sentimentos em escala íntima. Também é um jogo que prende e te larga, que acerta e que falha e que certamente irá causar paixões avassaladoras entre alguns jogadores, que debaterão seus temas por dias a fio, e ódio profundo entre outros jogadores, que soçobraram diante de suas mecânicas obtusas.
Minhas próprias impressões sobre o projeto inaugural da Jumpship se dividiam entre classificá-lo como uma obra prima ou descartá-lo, por frustração perante erros tão gritantes naquilo que definimos como jogo eletrônico. Esse é um projeto que o animador e especialista em artes conceituais Chris Olsen vinha acalentando desde 2014. A ele se juntou Dino Patti, uma das metades da icônica PlayDead, criadora de Limbo e Inside. O DNA desses jogos anteriores está presente em cada interação de Somerville, mas não seu polimento.
Olsen e Patti fundaram um novo estúdio para completar Somerville. Foram anos de desenvolvimento, cercados de segredos. O que é Somerville? Como explicar um título cuja experiência em primeira mão é fundamental para absorver o que ele está pretendendo dizer? O que ele está pretendendo dizer? Resolvi dividir essa análise em três atos, que refletem muito bem o estranho ritmo que a aventura impõe ou como nem sempre as melhores ideias se encaixam.
Ato I ou Guerra dos Mundos
Chris Olsen conta sem palavras os bastidores de uma invasão alienígena. Ao contrário do que já assistimos em dezenas de filmes ou outros jogos, não estamos diante de homenzinhos verdes ou criaturas insetóides, mas algo cuja tecnologia desafia nosso entendimento. Estruturas colossais descem dos céus para efetuar a colheita de humanos e nossa civilização sucumbe em um piscar de olhos.
Nosso protagonista não é um herói ou um soldado, mas um simples pai de família separado daqueles que ama pelas forças do destino. Os primeiros minutos de Somerville são angustiantes, traçando com choque e horror o impacto da chegada daquilo que não podemos derrotar.
Curiosamente, em sua fase de acesso para a imprensa, o jogo só podia ser jogado com um controle, apesar de ser exclusivo dos PCs. Desenterrei um controle antigo aqui e destaco: o uso da vibração é impressionante. O recurso, que sempre encarei preconceituosamente como uma frivolidade de consolistas, é muito bem empregado, a ponto de me assustar na calada da madrugada, quando a invasão começa.
Entretanto, tão logo o suporte a teclado e mouse foi implementado, retornei ao sistema com que estou acostumado. Fechando esse adendo, gostaria de frisar que a movimentação do personagem no jogo não é satisfatória em nenhum dos dois cenários, porém, girar uma manivela é infinitamente mais fácil no controle.
A partir daí, você acredita que entendeu para onde Somerville está te levando. Há puzzles, seu personagem tem uma habilidade que ajuda a abrir caminhos, a civilização está em ruínas e você terá que reencontrar sua família. A atmosfera já está estabelecida, seja pela arte exuberante, que remete demais a uma arte conceitual em movimento, seja pela trilha sonora, esporádica, mas marcante. Você sente a solidão, você sente o desespero, você sente o horror.
Ato II ou Somerville se perde nas profundezas
Depois de um terço de jogo, atravessando cenários que vão do interior campestre até os bastidores de um concerto de rock obviamente cancelado, Somerville nos joga no mais entediante dos ambientes: uma mina abandonada.
Parafraseando um famoso desenho animado, se eu ganhasse um dólar para cada jogo que me empurrou para uma mina abandonada em minha memória recente, eu teria quatro dólares, o que não é muito, mas é chato que tenha acontecido quatro vezes. Até Trifox tinha essa fase “obrigatória”.
E, lamentavelmente, um terço de Somerville irá se passar em um complexo de mineração e cavernas, que repetem todos os clichês desse tipo de cenário. Há toda uma sociedade na superfície sendo destruída por uma força invasora, mas o jogo te prende em túneis genéricos que você já viu em vários outros títulos.
É nesse ponto que Somerville começa a mostrar suas fraquezas. O que já vinha incomodando antes fica quase insuportável: existe uma irregularidade nos puzzles. Alguns são lógicos e exigem ações que qualquer ser humano pensaria naquela mesma situação. Outros são surreais e ninguém em sã consciência faria aquilo, a menos que estivesse preso em um jogo fazendo tentativa e erro.
A arte do jogo, ainda que fantástica, falha frequentemente em sinalizar o que é interativo e o que não é. Em um desses puzzles, eu gastei mais de quinze minutos tentando todas as possibilidades do planeta, apenas para descobrir que havia uma escada na minha cara o tempo todo, parcialmente indefinida em meio ao ambiente.
Há outros momentos em Somerville que só funcionam com um grande afastamento da câmera, para que o jogador tenha exata noção do tamanho da encrenca em que se meteu. Porém, não são poucos os momentos em que tudo fica pequeno demais e você não encontra o ponto de interação. Um botão de zoom auxiliaria imensamente.
Dino Patti, que claramente é o sujeito que entende de jogos eletrônicos da dupla, até tenta compensar a falta de elementos indicativos usando a cor laranja ao longo dos mapas. Porém, nem sempre o resultado é tão efetivo assim. A forma como o jogo utiliza a profundidade também não é consistente, com o protagonista podendo ir para o fundo da cena em algumas partes (e até mesmo sua sobrevivência depender disso), mas em outras não. Frequentemente, me via indeciso sem saber para onde ir. Há também problemas de câmera em algumas partes, em que eu sequer conseguia enxergar meu personagem.
Ato III ou eu não sei mais o que está acontecendo
É evidente que o tempo passado nas minas é um “filler”, uma encheção de linguiça para esticar a duração de um jogo que ficou curto demais. Essa necessidade de se atender as expectativas do mercado e fugir dos pedidos de reembolso prejudica demais o ritmo. Essa fase, mesmo apresentando uma nova mecânica, tem o efeito de esvaziar todo o impacto de seu primeiro terço, aborrecer o jogador, que não vê a hora de retornar à superfície, e oferecer tempo para avaliar onde mais o jogo está errando.
Há uma reviravolta excelente logo depois que conseguimos sair dos túneis. Somerville então nos apresenta uma nova forma para abrir caminho que se encaixa como uma luva com o momento em que estamos na narrativa e, novamente, você acha que entendeu para onde Somerville está indo. Ledo engano outra vez: quase imediatamente somos apresentados a uma sequência de ação insana, que coloca a adrenalina no auge. Será que o jogo será assim daqui pra frente?
Novamente, a resposta é “não”. O último terço de Somerville é indescritível, para não dizer incompreensível. Aparentemente, nós são oferecidas respostas para alguns eventos dentro da aventura, mas essas respostas apenas são a desculpa para sermos disparados dentro de uma longa sequência lisérgica, que provoca o surgimento de mais perguntas. Há uma forte influência de clássicos da ficção científica aqui e temos a certeza de estarmos lidando com forças muito além de nossa compreensão.
O que é a conclusão de Somerville? Eu não saberia explicar. O jogo tem diferentes finais, dependendo das decisões que você toma em sua reta final. Já há amplas teorias sobre o que eles significam (tem spoilers no link). Infelizmente, a maioria dos jogadores não conseguirá chegar até a conclusão, seja em virtude das falhas técnicas ou dos puzzles frustrantes.
A impressão que fica é que Chris Olsen tinha uma excelente ideia para um longa de animação, uma fusão de Half-Life 2 com A Chegada, porém, Dino Patti o convenceu a transformar em um jogo, e o casamento não saiu tão bom quanto merecia ser. É uma pena. Com o ponto final da análise se aproximando, aceito meu destino: Somerville é obra-prima.
Prós:
🔺 Visuais impressionantes
🔺 Trilha sonora marcante
🔺 Atmosfera imersiva, sem diálogos ou narração
Contras:
🔻 Puzzles desequilibrados
🔻 Ritmo problemático
🔻 Conclusão confusa
Ficha Técnica:
Lançamento: 14/11/22
Desenvolvedora: Jumpship
Distribuidora: Jumpship
Plataformas: PC, PS4, PS5, Xbox One, Xbox Series
Testado no: PC