Após diversas discussões e adiamentos, finalmente Digimon Survive foi lançado e trouxe uma abordagem única para a franquia em um combo de dois gêneros: visual novel e RPG tático. Aguardado com muita expectativa pelos fãs e rodeado de mistérios, ele chegou como uma bomba e teve, de longe, uma recepção bem negativa: tanto pelo público quanto pela mídia especializada. Afinal de contas, a linha se perdeu de vez?
Antes de ler o texto, já gostaria de deixar claro que o maior problema do jogo somos nós. Somando nossa expectativa com as experiências passadas, o título acaba em um buraco grande demais para a sua execução e acaba não cativando. Vamos ser sinceros, ninguém estava esperando por algo do tipo e nem a Bandai Namco deixou claro o que encararíamos assim que entrássemos no game. Porém, ele está aí e fazendo barulho.
A única certeza que eu posso dar aqui é que ele é muito bom na medida do que você aceita dentro do seu videogame. Vamos destrinchar os seus detalhes abaixo, porém, assim como este texto, o jogo exigirá bastante de sua paciência e tempo, coisas bem difíceis de serem pedidas em nosso cotidiano. Cabe a você analisar se está pronto para isso ou se vai deixar passar esta oportunidade.
O poder narrativo de Digimon Survive
Para começar, Digimon Survive tem uma escala de gameplay bem diferenciada de qualquer outra coisa que já viu. O seu foco principal é o gênero visual novel, onde você tem de passar por diálogos imensos e, muitas vezes, tediosos, para avançar na história e desenvolver laços com os demais personagens. Não apenas relacionado a eles, mas com os monstros digitais também que ninguém sabe de onde vieram e para onde vão.
Além disso, analisar o ambiente e revisitar as mesmas áreas milhares de vezes será essencial para desbloquear batalhas raras e pegar itens que ajudarão durante os mesmos confrontos. Um capítulo pode durar cerca de 2h, mas se você se propuser a estar em sua melhor forma e equipado com tudo o que tem direito, levará mais ou menos umas 4h para completar cada cenário e isso desmotivará bastante os poucos que já encaram isso como algo que dê para relevar.
Particularmente falando, eu não achei ruim. Em termos de mecânica, pelo menos, passou longe disso. Usar o celular para analisar o ambiente, ter diversas opções de diálogo e aumentar seus laços são ferramentas bem executadas no geral e não tem muito o que se criticar ali. A legenda em português também ajuda bastante, sem falar na localização de termos que te farão dar risada em certos momentos e ficar estremecido quando os trechos mais tensos do roteiro aparecerem. Se gosta deste estilo, aqui é um prato cheio para a diversão.
O maior problema deste cenário em Digimon Survive são os seus personagens. Apesar de carregarem certas nuances e terem personalidade, não consegui me importar com nenhum deles em particular. Por estarem cercados de determinados clichês, a aproximação com eles é mínima e não gera impacto, para o bem ou para o mal, quando algumas situações te pedirão sensibilidade. Quer correr sozinho pela floresta e correr perigo à toa, Kaito? Vai lá. A Aoi quer se isolar no meio de uma escola ameaçada por uma aranha mortal? Beleza, segue o jogo. O carisma deles não permite sentir mais do que isso enquanto você avança por toda a história.
Apesar de zero carisma dos heróis, por incrível que pareça o roteiro segue uma fórmula boa e traz uma luz bacana que não existia em nenhum game anterior da franquia. Aqui as criaturas já existem desde a antiguidade e fazem parte de lendas locais, os adolescentes caem lá e em situações completamente adversas e, para completar, existe uma trama maior rolando por trás que segue independente deles. É como inserir crianças na boca de um leão. Houve vários trechos onde me surpreendi positivamente com o caminhar da trama e posso afirmar que há um aprofundamento grande numa mitologia até inédita para a marca.
Os Digimon não são campeões aqui
Infelizmente não posso dizer o mesmo sobre os combates táticos. Digimon Survive é até competente em tirar o básico do gênero, mas nunca chega a se mostrar algo próprio. Desculpem falar deste modo, mas parece que inseriram às pressas e veio ao mundo “do jeito que conseguiram”. Não é ruim, sendo bem sincero com vocês, mas eu esperava bem mais de um título que foi adiado por três anos.
Quanto a isso, tenho diversas críticas em relação à sua execução. Número de golpes é bem reduzido, subir de nível não exige o menor esforço, o mesmo trabalho excelente de localização não ser visto nos combates entre outros fatores acabaram me tirando parte do gosto que eu tive ao jogar o game. Não que eu esperasse um Fire Emblem, longe disso, mas vamos tocar na ferida ao afirmar que Pokémon Conquest fez muito mais no Nintendo DS há dez anos, em 2012.
Apesar de não ter muitas coisas positivas a dizer sobre as batalhas, no geral eu fiquei feliz com a dificuldade ao capturar as criaturas. Isso força o jogador a enfrentar as batalhas livres com frequência para pegar aquele monstro que tanto quer e acaba te jogando numa espiral de sorte para cair neles de forma aleatória. Por exemplo, juro que vi um Guardromon que até agora não voltou a aparecer para mim. Continuarei caçando, mas feriu meu ego não conseguir pegá-lo logo de cara e está me incentivando a repetir as batalhas para atingir este patamar.
A parte da visual novel que incomoda alguns pode ser sanada ali, já que você pode enfrentar vários oponentes distintos quantas vezes quiser. Seja para aumentar de nível em Digimon Survive ou para capturar seus monstros favoritos. Minha estratégia estava sendo justamente esta: encontrar itens de evolução, confrontos livres e aumento de nível. Quando cansava, voltava para a história e progredia até onde me permitiam. Depois retornava ao ciclo.
Não é a melhor forma de se jogar, tenho de reconhecer, mas foi a maneira que encontrei de me divertir dentro da experiência. E, na real, funcionou. Sempre fui um fã da franquia e achei tudo o que me apresentaram ali “aceitável”. O famoso: não está ruim, então dá para engolir. Inclusive nas partes mais tenebrosas, onde ousam bastante no roteiro para te entregar verdadeiros choques. Não acreditei que a Bandai Namco teve a coragem de tomar certos caminhos da narrativa, mas não apenas tiveram como abusam dele em determinadas cenas e isso impactará bastante as suas decisões.
Passa, mas não tão facilmente
E agora você me pergunta onde entra a sua paciência nisso? Simples, mesmo com as batalhas livres de Digimon Survive, os diálogos e enredo se arrastam por um tempo considerável e no início isso vai te aborrecer bastante. Em questão de quase 2h no começo do título você só participa do tutorial e é tudo que vai encarar por um bom tempo. O resto é só texto corrido, como um filme bem longo. Ou seja, nada de descer porrada nos monstros digitais toda hora. Só quando o jogo te permitir.
E, infelizmente, isso se aplica a diversos outros momentos. Há conversas e diálogos que parecem desnecessários e tomarão de 20 a 30 minutos. Eles não são, vamos deixar isso bem claro, mas vão te soar assim por um tempinho. Porém, quanto mais vontade você tiver de descer um “Bafo de Pimenta” ou treinar suas criaturas, mais a sua afobação te trairá e te colocará em um loop infinito de exploração e conversas.
O principal erro, como falei no início deste texto, somos nós que fomos com a expectativa bem alta em relação ao título. Estamos em pleno ano de 2022 e já vimos diversos games da saga, acreditamos fielmente que seria algo semelhante e caímos em cima dele. Não sendo o que muitos esperavam e queriam, ressoa aí nas diversas reclamações que pode encontrar nos sites especializados e nas redes sociais. E apesar do erro ser nosso, quem tem a culpa no cartório mesmo é a Bandai Namco. A empresa mal investiu na divulgação e em mostrar mais do game, escondendo ele nas sombras dos adiamentos e deixando o público sem saber o que viria.
Confesso ter visto, mais de uma vez, a equipe de desenvolvimento sofrendo para falar de Digimon Survive e explicar suas mecânicas. Porém, o poder de alcance deles não foi o suficiente e ainda assim provocou um efeito contrário no coração dos fãs. Caso tenha comprado e não foi o que queria de fato, peço que não rebaixe o trabalho da equipe. Me recordo de ter assistido a diversas entrevistas em eventos e apresentações, onde sempre deixaram claro a proposta e ainda assim faltou informação. É uma pena isso não ter chegado a todos, este que é o fato.
Se busca uma visual novel, está no caminho certo e esse se mostrará um baita jogo da franquia. Não estava pronto para algumas decisões que o roteiro leva e até tive de me certificar que não cometi nenhuma atrocidade para acabar em determinadas tragédias. Quanto a isso, vá sem temor que em algum ponto acabará cativado. Mais pela trama do que pelos personagens, pois infelizmente não dá para se ganhar todas, não é?
Já em quesito do RPG tático, deve ter em mente que essa deve ser a menor de suas preocupações. É como se fosse um “mini-game” dentro de toda a história que você visita algumas vezes só para dizer que existe ali. Se não abusar do combate livre, isso não se mostrará tão presente e acabará te desapontando demais. Se eu, com mente aberta ali, já me decepcionei, imagino quem não saiu da mesma ideia.
A grande questão é: Digimon Survive é uma aventura legal sim e carrega consigo mais pontos positivos do que negativos. Ainda que a parte tática não se saia tão bem, a proposta de visual novel te preencherá com uma história intrigante e que motivará você a chegar até o seu final. Seja para ver o desfecho da jornada com os monstrinhos ou para ver o que acontecerá com determinados personagens (que você pode amar ou odiar, já te adianto). Se estão inclinados a adquirir, sigam em frente, mas agora sabendo onde irão pisar.