A SEGA tinha em suas mãos uma franquia de sucesso por 15 anos. Sem mudanças drásticas na estrutura, conquistaram o Japão e o mundo, além de ter expandido a saga para filmes, websérie, livros e vários outros conteúdos multimídias. Aí chegou Yakuza: Like a Dragon, que além de mudar drasticamente de gênero, tirou Kazuma Kiryu dos holofotes e trouxe um novo protagonista, Kasuga Ichiban.
Os fãs torceram o nariz, a galera reclamou, porém a produtora estava irredutível perante as alterações. O único jogo que conseguiu sair da sua zona de conforto assim foi God of War, em 2018, o que seria extremamente difícil de replicar em suas próprias regras, principalmente quando refletimos que trouxe um RPG de turnos em pleno 2020. Tinha tudo para dar errado. Mas, incrivelmente, não deu e admito que foi uma das melhores surpresas que tive nesse ano.
A nova jornada do dragão
Yakuza: Like a Dragon, primeiramente, foi criado para um novo público. Após seis títulos da franquia principal, eles sabiam o quanto é difícil para conquistar novos fãs. E nessa proposta que entrei, sendo o primeiro que toquei em toda a minha carreira no mundo dos videogames. Confesso que, apesar de tudo que já vi, nada no universo tinha me preparado para o que apareceria perante os meus olhos. Obviamente, de forma boa.
Meus amigos, há muito tempo que não me envolvia com um RPG tão cheio de coração e de uma história sólida para contar. A última vez que senti isso foi com Persona 5, para terem uma ideia. Ichiban, o grande protagonista desse jogo, é carismático, cheio de expressões e com um histórico de vida sofrido que faz você querer defendê-lo, mesmo sendo contra algumas atitudes que carrega.
O personagem tem o forte desejo de se tornar um herói, mesmo enquanto trabalha para a máfia japonesa. Ou seja, ele traz de volta todo aquele histórico de honra e de honestidade que admira da velha guarda. Vamos lá, a primeira missão é correr atrás de um cara que está vendendo fitas VHS falsas para adolescentes, falando que é pornografia e na verdade são documentários do mundo animal. Esse ideal é carregado em cada atitude dele, o que nos traz um verdadeiro senso de fazer a coisa correta.
Os demais membros da equipe em Yakuza: Like a Dragon também tem vários momentos de brilhar e esse equilíbrio só pavimenta ainda mais a sua vontade de jogar. A construção de cada personagem é feita de forma excelente e, no fim das contas, eles te fazem se importar com cada um do mesmo modo, sem exceções.
Além disso, rola uma grande proximidade a partir do momento que o protagonista se assume fã de jogos role playing game, sendo um viciado em Dragon Quest. E sim, o nome de uma franquia de outra desenvolvedora é citado claramente, incluindo diversas referências durante o gameplay. Mas elas não param por aí. Outro exemplo bizarro é o Dr.Sujimon, que está analisando as espécies diferentes de criminosos pela cidade. Ele te faz baixar o app Sujidex no smartphone, tornando a jornada numa verdadeira caça para completá-la. Isso te lembra algo?
Caso você seja um fã árduo da franquia, sei que a sua primeira dúvida é se a mudança do beat ‘em up estragará a sua experiência. E a resposta é um sonoro NÃO. Na verdade você mal sente que está jogando um RPG de turnos, de tão fluído que são os movimentos dos personagens. Em questão de minutos você já compreende como funciona a mecânica e já poderá disparar atrás de briga pelas ruas de Kamurocho. Além disso, visualmente, ninguém fica parado e isso ajuda a sentir que realmente está vendo a ação como devia ser.
Falando nessa movimentação, tem um dos elementos que me surpreendeu bastante e que me fez apaixonar ainda mais nesse sistema. Você está numa briga contra cinco caras. Aquele lá do fundo está com o HP mais baixo, é esse que você eliminará com o seu golpe. Escolheu o ataque, você corre e no caminho toma um socão de onde menos espera e isso paralisa sua ação. Se estiver algum oponente no caminho entre você e o alvo, eles intervém. Essa jogada foi genial e, apesar de ser mega simples, me deixou ainda mais aprofundado na estratégia.
E, como de costume nos jogos anteriores, em Yakuza: Like a Dragon você pode acabar pegando objetos para acertar as ideias de quem se colocar contra ti. Sejam cones, placas, aquelas lousas de restaurante que ficam nas calçadas, o que quiser. Claro que verá alguns que tirarão umas risadas, como pegar uma bicicleta aleatória e destruir ela na cabeça do inimigo. Dá até para dar uma bicuda ou um murro que jogará eles para o meio do trânsito lotado, pronto para ver um atropelamento na sequência.
O humor é o que não falta nesses combates, vou citar aqui um exemplo do personagem Namba. Por ter vivido nas ruas por muito tempo, ele sempre carrega farelos de pão, que podem ser jogados nos inimigos e invocar uma legião de pombos para o ataque. Além disso, por ter um bafo cheio de álcool o tempo todo, não estranhe ao ver o lança-chamas dele acendendo o isqueiro. Tem muito mais por trás disso, então não se preocupe que verá algo bizarro quando menos esperar.
Entrelaçado com a realidade
Outro detalhe muito importante é a trama de Yakuza: Like a Dragon e como ela aborda temas muito sérios, mesmo com tanta zoeira ao seu redor. Ichiban passou sua juventude trabalhando para a Família Arakawa, pertencente ao Clã Tojo. Após o capitão cometer um assassinato, ele se sacrifica assumindo o crime e passa 18 anos na cadeia em seu lugar. Alguns dos relances mostram como funciona o sistema penitenciário no Japão e dá para sentir a dor dele estar isolado e sem amigos, preso por um ato que não cometeu.
Após sair de lá e reencontrar o antigo patriarca Arakawa, ele leva um tiro e vai parar, literalmente, no lixo. Salvo por mendigos, ali o game dá outro passo em direção ao além e começa a mostrar a situação dos moradores de rua no país. Existe uma piada aqui e ali, mas eles não desmerecem a situação de ninguém em momento algum. Esse respeito foi fundamental para eu admirar ainda mais a equipe de desenvolvimento.
Entre os outros temas abordados, estão a prostituição entre jovens, os movimentos conservadores, política, conflito entre sociedades chinesas, coreanas e japonesas que convivem no mesmo território e mais uma variedade que vai surgindo para te fazer refletir. Juro que me senti extremamente impactado em certos momentos. Além disso, vale a nota que foi a primeira vez que qualquer game me fez seguir no mapa para um centro de atendimento ao trabalhador para conseguir um emprego, o que eu nunca esperava fazer nos videogames.
Isso também traz momentos hilários, quais compensam ser comentados. Após começar a conviver com os moradores de rua, Ichiban não pode morar no local sem ajudar os demais. Então a sua busca por grana passa a envolver o aprendizado de como caçar moedas e itens de valor embaixo das máquinas de refrigerante espalhadas pela cidade, competir com outros necessitados enquanto cata latinhas pelo bairro entre várias outras tarefas. Mesmo que seja a realidade de muita gente e isso esteja sendo vendido como entretenimento, tudo ali serve para conscientizar como funciona o mundo real.
Entre os minigames, além da caçada às latinhas e aos Sujimon pela cidade, também há o modo Dragon Kart, que é uma verdadeira cópia de Mario Kart, porém com o humor característico que Yakuza: Like a Dragon propõe. Dá para jogar Shogi, se divertir nos caça-níqueis, brincar nas máquinas de rebater como no beisebol, montar e manter uma empresa, além do clássico karaokê que retorna com toda força. Imagina eu, que nunca tinha tocado em nenhum desses, experimentando cada elemento. Foi espetacular, para dizer o mínimo.
Digno de nota está o do cinema, onde Ichiban se esforça para se manter acordado durante um filme antigo. Cheio de ritmo e com bastante graça, são esses pequenos momentos que mostram a excelente experiência que os desenvolvedores do Ryu Ga Gotoku Studio se esforçaram tanto para trazer.
Porém, no fim das contas, o trabalho principal de Ichiban e seus amigos se torna ajudar uma agência que promove a atuação de cidadãos comuns como heróis, protegendo a paz pela cidade. É aqui que estarão as principais side-quests do jogo, então se puder invista um tempo nisso que, além de serem mega divertidas, dão bônus como dinheiro extra e itens exclusivos ao longo da sua jornada.
As camadas da nova Yakuza
Uma coisa que posso afirmar é que Yakuza: Like a Dragon é um game cheio de detalhes e camadas. Ele tem um extenso número de jobs diferentes, que apresentarão técnicas distintas e facilitarão certos atributos. De segurança a xamã, você inclusive se vestirá a caráter e terá equipamentos diferentes. O único problema é ter de voltar ao centro de atendimento ao trabalhador toda vez para isso, mas isso nem pesa muito durante o game.
Além disso, junto com os atributos básicos que você já carrega como ataque, defesa, velocidade entre outros, também existem outros que podem fazer toda a diferença conforme joga. Inteligência, paixão, estilo e alguns formam a sua personalidade e podem alterar o rumo de como a missão pode terminar. Um sistema de proximidade com os membros da party também cria mais integração entre o time e faz cada jogador ter uma experiência única com o que é apresentado.
Vejam bem, apesar de resumir tudo que disse até aqui como “obra-prima”, ele não escapa de alguns erros chatos que podem incomodar um pouco quem busca por perfeição. Várias vezes vi alguns bugs durante os combates, que apesar de alguns serem divertidos, te fará reclamar em algum momento. Outro fator que te encherá o saco será a câmera, que pode te fazer perder várias coisas importantes dependendo do ângulo.
Yakuza: Like a Dragon tem outro porém que é o início arrastado. A contextualização é muito boa, história extremamente bem-construída, a atuação de vozes e tudo mais são arrebatadores. Mas as primeiras 2h do game são de cutscenes, onde você realmente comanda Ichiban em alguns raros momentos de liberdade para aprender o básico. Eu, particularmente falando, achei muito interessante, mas muitos não vão gostar nada desse trecho.
Eu aviso porque sei que alguns reclamarão justamente desses fatores. Porém, para ser muito sincero com vocês, ele tem tanto a oferecer e com uma trama tão rica que não retira de nenhum modo a proeza de ser um acerto de sucesso do estúdio e da produtora. Pense bem, 15 anos testando de tudo para aprimorar uma franquia, mudar subitamente de gênero e manter a excelência? Convenhamos, é para poucos.
Se você der uma chance para Ichiban, Namba, Saeko e Adachi, não se arrependerá nem por um minuto de iniciar essa jornada incrível e sem precedentes. Tem de tudo, desde lagostas assassinas até mafiosos vestidos como bebê, passando por temas sérios e mostrando que a vida é muito mais do que aquilo que está sob os nossos olhos. Como um dragão, esse se destacará e subirá aos céus como um dos maiores RPGs dessa geração.