Ninguém sabe a resposta para o enigma da morte que nos atormenta como espécie desde o advento da consciência. Religiões foram fundadas para buscar uma solução, guerras foram travadas em razão de convicções que não se podem provar. Felizmente, a Arte também busca confortar a incerteza, porém de formas muito mais belas.
Spiritfarer é um jogo sobre aceitação do destino final, habilmente disfarçado como um gerenciador de fazenda. Na verdade, ele mistura diversas mecânicas, todas saborosas, para contar várias histórias que não são sobre a morte, mas sobre a vida. Uma vez compreendidos os erros e os acertos, a viagem final se inicia e é você quem está no comando desse barco.
Navegar é preciso
Caronte, o barqueiro dos espíritos, encerrou seu ciclo. Seu substituto é ninguém menos que a adorável menina Stella, uma esfuziante criança acompanhada por um gatinho. Stella é você nesse jogo e sua contagiante simpatia tem o potencial de mudar o pós-vida dos habitantes desse singular universo.
Apesar da protagonista não se expressar por palavras, suas ações irão ditar a tônica dessa aventura. A princípio, Spiritfarer pode guardar semelhanças como mais um título em que você planta leguminosas, prepara refeições e cruza os oceanos, um cruzamento de Summer in Mara com Terraria, porém, o principal recurso que você deve administrar nesse jogo é: empatia. O que talvez pudesse ser um serviço burocrático de leva e traz, de fabricação e aperfeiçoamento de itens, na verdade tem o objetivo de tornar a existência menos dura.
Em torno de Stella, gravitam seus passageiros. Eles estão mortos, mas possuem emoções pendentes. Uma vida somente é um período muito curto para resolver traumas, dúvidas, dívidas, lembranças e nessa viagem eles terão a oportunidade de reavaliar seu passado diante do inevitável futuro. Essa transição, essa pós-vida que ainda não é a morte, é uma realidade que se torna muito menos amarga graças aos esforços delicados da nova barqueira dos espíritos.
Gentileza gera gentileza
Por causa disso, o jogador assumirá a missão espiritual de tornar tudo mais agradável. Seus passageiros são seu real objetivo e eles tem necessidades que precisam ser atendidas. Eles precisam de um espaço físico aconchegante à bordo, precisam se alimentar dos pratos que gostam, precisam receber afeto na forma de um abraço e, acima de tudo, precisam ser ouvidos. Stella e, consequentemente, você, estão ali para isso: espalhar alento.
A Thunder Lotus Games acerta ao “gamificar” o abraço, o melhor gesto de todos. É uma mecânica tão importante para Spiritfarer que cada personagem abraçado tem uma animação diferente de reação, que condiz com sua personalidade.
Ao aumentar o bom humor de cada passageiro, você libera sua ajuda em tarefas comuns do barco, mas isso é tão somente a cereja do bolo, uma vez que suas contribuições não são indispensáveis. O jogo te mostra, sem explicar, que é importante manter essas pessoas felizes porque sim. E um abraço sempre ajuda.
Está indo pra onde?
A função do barqueiro é então preparar os viajantes para o destino derradeiro. Enquanto o momento de embarcar não chega, eles desfrutam de um simulacro de vida, uma espécie de purgatório.
Por incrível que pareça, aqui há atividades normais do mundo real, como comércio de itens (incluindo exploração da classe trabalhadora e greve!), mineração de recursos, guias de turismo, criação de animais. É um Purgatório, se compararmos com a mitologia cristã, mas sem os ranços associados. Todos se vestem de forma igual, cobertos por uma espécie de burca, e parecem não perceber onde estão.
Entre esses, há espíritos que estão prontos para embarcar e cabe a Stella encontrá-los, identificá-los e convidá-los para seu barco. É a desculpa perfeita para explorar esse oceano e seus mais diversos logradouros, todos habilmente desenhados. Cada novo porto em Spiritfarer é uma descoberta mágica, um colírio para os olhos. O próprio mar também tem seus mistérios, com fenômenos climáticos que geram novas e divertidas atividades, habitantes misteriosos e outros viajantes.
Descobridor(a) dos sete mares
Os pedidos de seus passageiros também estimulam a busca por novos recursos em paisagens inéditas, o que pode exigir a evolução constante do próprio barco. Todas as mecânicas se integram com perfeição e não há nada que pareça fora do lugar.
O único defeito nessa dinâmica é que a busca pode levar a alguns becos sem saída. Por exemplo, aquele momento em que você precisa do elemento X, que só pode ser alcançado depois de desbloquear a habilidade Y, que você só consegue… onde mesmo? Entre tantas jogabilidades, há também um toque de Metroidvania em Spiritfarer. Não espere uma reluzente bússola te dizendo o que fazer por aqui, apenas se jogue no mar e aproveite a viagem.
Do ponto A ao ponto B é o período em que você provavelmente irá se dedicar ao aspecto chato da viagem: plantar, colher, fabricar, cozinhar. Não é nada muito exigente e os mini-jogos são até divertidos, mas todo esse micro-gerenciamento pode cansar um pouco.
Eu me flagrei pensando que talvez fosse melhor uma tela que agregasse os status de todos os passageiros, mas cheguei à conclusão que isso mecanizaria demais o sistema. Estamos falando de pessoas aqui, então, sim, você precisará caminhar para cada um deles e verificar como eles estão. Faz parte da proposta, mas é outro ponto que pode provocar pensamentos impuros.
O fim é apenas outro começo
A Thunder Lotus Games consegue combinar um traço visualmente exuberante, que oscila entre o infantil e a arte detalhista de um Corto Maltese, com um dos melhores textos em um jogo em muito tempo. Os diálogos sinceros tornam esses personagens e suas existências bastante palpáveis. Suas formas animais são representações de suas verdadeiras aparências, mas nos dão a calorosa sensação de estar dentro de um conto de fadas.
Em contrapartida, os cenários ilustrados remetem com precisão à arquiteturas de diferentes sociedades, ora italiana, ora japonesa e mais.É o encontro entro o mágico e o naturalismo, entre o celestial e o profano, uma visão ímpar daquilo que poderia estar além do véu da morte.
Resolvidas as pendências, brota a aceitação e o passageiro com quem você se apegou ao longo da jornada está pronto para ir embora. Essa é a função do barqueiro, não hospedar por tempo indefinido, mas levar para o seu destino. É o instante mais forte de um jogo que já é pungente de momentos.
Aos poucos, Stella também irá montando um quebra-cabeças de sua própria existência e as pendências que ela deixou pra trás, em uma família problemática.
Quando se cruza aquela ponte, Spiritfarer não traz as respostas que todos buscamos, é claro. Porém, ele oferece um aconchego tão necessário em tempos difíceis. E vem junto uma bela lição: amarmos uns aos outros.