Antes de falar sobre Sea of Solitude, devemos considerar o legado recente dos indies. Ao longo da última década, diversos títulos independentes foram capazes de cercear questões pessoais e íntimas como nenhuma outra mídia e nenhum outro título de orçamento mais robusto, levando o jogador em uma viagem emocional através de uma gramática visual e mecânica bem estabelecida, que é sentida de forma orgânica aos assuntos abordados.
Se Brothers: A Tale of Two Sons dividiu o controle dos irmãos protagonistas em cada metade do gamepad, fazendo-nos sentir a relação de codependência, e mesmo Getting Over It, um peculiar game de plataforma, recria a sensação de levantar, cair e levantar de novo diante da vida cheia de obstáculos, Sea of Solitude se limita apenas à gramática visual mencionada, falhando em se destacar como, ora, um game constituído de mecânicas.
Sessão de terapia
Em uma trama muito mais interiorizada do que o esperado, o título da Jo-Mei Games nos leva a um mundo inundado no qual toda pessoa solitária torna-se um monstro sombrio. Ou, ao menos, toda pessoa que Kay, a protagonista, tem em sua vida íntima. Ela mesma está em processo de transformação e deve, antes de cuidar de sua condição, ajudar o restante dos monstros a recuperar sua humanidade e, acima de tudo, a solitude.
Solitude não sendo solidão, mas a capacidade de serem felizes ou suficientes sozinhos. Nisso, o game idealizado por Cornelia Geppert é certeiro por compreender o essencial dos problemas que aborda, sem partir para uma resposta fácil e sim reforçar que cada um de nós, como indivíduos, guardamos nossas próprias respostas para nossos problemas, sem, é claro, ignorar a importância dos laços afetivos com outros indivíduos.
Por outro lado, em um aspecto que geralmente pode ser bastante positivo em um game de foco narrativo, Sea of Solitude perde em sua falta de especificidade. Claro que os problemas de Kay, uma garota europeia de classe média, serão justamente específicos à sua condição, mas dentro disso o game não almeja ir muito além desta realidade e nem mesmo aborda o que tem em mãos com tridimensionalidade. Há ainda um excesso de diálogos explicativos.
Limitando-se ao imaginário desta garota, Sea of Solitude acaba soando batido e exagerado após tantas outras obras, como Life is Strange e Gone Home, que foram capazes de sedimentar bem os dramas adolescentes de suas protagonistas sem nem mesmo necessitarem de imagens grandiosas, como as vistas neste segundo título sob a etiqueta EA Originals. O mundo inundado é uma representação da mente de Kay, mas a mão pesada das alegorias não condiz com o peso do que se discute.
Ainda assim, as boas intenções são tão boas, e a mensagem tão facilmente entendida, que Sea of Solitude pode e deve fazer a diferença para um público de jogadores mais jovens que passam por situações similares às enfrentadas por Kay, aprendendo a cuidar de si mesmos para depois cuidarem de seus amigos, familiares e pares. Por conta disso, o game tem mais a dizer se mirado nesta faixa etária mais baixa.
De qualquer forma, não deixa de ser um game e, portanto, as fraquezas mecânicas de Sea of Solitude entram em pauta. Como o colega de redação Carlos Aquino disse em seu ótimo review de Tales of the Neon Sea, a “ausência de sentido entre o que precisa ser feito e a forma como você faz” é um problema também latente no game da Jo-Mei, já que a manutenção das emoções da protagonista não se transmite com coerência pela jogabilidade.
Não sei o que sentir, só dizer
As mecânicas são tão importantes a um jogo quanto a mise-en-scène – o “pôr em cena” – é para qualquer filme, seriado ou peça de teatro. Sea of Solitude reflete as emoções em seus visuais, sua música, mas seu gameplay de exploração e plataforma é irrelevante para esta construção, isso quando não simplesmente atrapalha a fruição da experiência, como nas seções de “combate” frustrantes e a solução de puzzles simplérrimos e um tanto nonsense.
O dilema entre entregar uma jornada íntima e um game de plataforma despretensioso é o que impede Sea of Solitude de ganhar um verdadeiro peso, de exercer um poder de permanência emocional que muitas vezes se dá, também, pela memória muscular após jogá-lo por algumas horas. A palavra “sentir”, afinal, vale para ambas as ocasiões, emocional e tátil, e os melhores exemplares se assentam em uma área de intersecção entre as duas.
Há também um problema de estrutura. Enquanto as primeiras fases investem em mapas menos lineares, mais amplos e com confrontos mais tensos com os monstros, em que o barco é uma ferramenta importante para se manter a salvo, Sea of Solitude vai se tornando cada vez mais truncado, com fases de corredor e situações de combate frustrantes – a seção em que Kay deve coletar fragmentos de gelo, por exemplo, com inimigos que possuem animações de combate automáticas e quase inescapáveis. Já a luta final, que deveria ser climática, é vencida sem esforço.
Entre a magnitude visual e sonora e a simplicidade extrema das mecânicas, Sea of Solitude não é capaz de sustentar toda sua ambição estética nem temática. O game roda com fluidez, permitindo um modo de performance priorizada, e os traços limpos das personagens e cenários são agradáveis, mas teria se beneficiado de peculiaridades e idiosincrasias, assim como a protagonista e suas pessoas queridas devem chegar a um acordo com suas próprias.