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Maneater deve possuir uma das maneiras mais badass de apresentar o personagem principal ao jogador. Um filhote de tubarão é arrancado da barriga de sua mãe por um cruel e destemperado caçador conhecido como Scaly Pete – não confundir com Steely Dan. Segundos depois, o pequeno filhote arranca fora o braço do sujeito, e este jura vingança. Nós somos, é claro, o pequeno tubarão.

A partir disso, o jogo da Tripwire Interactive explica com ainda mais concisão seu objetivo principal, pegando o momento seguinte àquele que descrevi acima. A mão do caçador se encontra decepada na água, e nos vemos diretamente diante dela. Talvez o indicador de objetivo nem fosse necessário, já que sentimos um impulso intuitivo de devorar o membro sangrento.

Tutubarão

Com uma narração extremamente bem humorada, ainda que repleta de um senso crítico valioso às mensagens que Maneater quer passar, começa a história de vingança desenfreada deste tubarão. De acordo com o eloquente narrador, após sentir o gosto de sangue, nada mais pode parar a criatura em sua trilha de mordidas.

Imagem do jogo Maneater
Onde tem cabo, tem gruta.

O trabalho da Tripwire se mostra muitas outras vezes exemplar nessa condução do jogador por essas águas inicialmente turvas, tudo com uma boa dose de game design – e level design – inteligente. Reparei especialmente em como diferentes cores – principalmente as quentes e vivas – são bem atribuídas a diferentes ações no mundo.

Cabos alaranjados nos direcionam para uma gruta, nosso esconderijo onde podemos aplicar upgrades no tubarão e criar pontos de viagem rápida. Placas amarelas, quando atacadas, adicionam novos pontos de interesse ao mapa do mundo de Maneater, e caixas emitindo luzes vermelhas piscantes guardam consumíveis mutagênicos que aceleram nosso crescimento.

Este crescimento é estruturado no bom e velho formato do RPG de ação, com níveis numerados que são desbloqueados completando missões, atividades ou simplesmente devorando qualquer ser que vê pela frente. Essa barra de avanço de experiência está organicamente segmentada a partir das fases da vida do tubarão – filhote, adolescente, adulto. A cada fase, aprendemos um novo golpe para usar no calor do combate e somos capazes de acessar novas áreas.

Imagem do jogo Maneater
Se você queria um RPG de tubarão, é esse aqui.

Ainda assim, o progresso não se limita apenas a isso em Maneater, criando um fluxo interessante no gameplay. A primeira das outras formas de progresso surge com o Ranque de Infâmia, que vai de 1 a 10. A cada novo nível de infâmia, um novo caçador de recompensas surge para te caçar, e quando derrotado, te garante acesso a uma nova evolução que pode ser equipada nas grutas, o que é extremamente gratificante.

As evoluções são equipáveis como aqueles que vemos nos demais RPGs, e embora aqui elas existam em um número muito mais limitado, cada uma delas traz mudanças notáveis para o desempenho do tubarão. Podemos equipar dentes bioelétricos, por exemplo, para causar atordoamento com nossas mordidas, ou optar pelos dentes ósseos, que tornam nossa mordida forte o bastante para destruir barcos e segurar feras maiores.

Sobrevivência do mais apto

O próximo sistema então cruza diretamente com o das evoluções: a coleta de diferentes recursos pelo mundo. Esses recurso, como carne, óleo e cristais, são sinalizados logo ao lado da barra de vida de cada criatura. Cada um deles, como esperado, é utilizado em quantidades diferentes para melhorar as evoluções equipadas. Como o processo de devorar as coisas se torna um reflexo natural nosso e do tubarão, isso basicamente significa que sempre estamos progredindo.

Imagem do jogo Maneater
“Nutrientes”.

Se há alguma decepção com Maneater, esta surge na ocasional falta de distinção entre missões de história e atividades secundárias, já que cada ato da campanha consiste de uma checklist de objetivos um tanto intercambiáveis, que quando completos, levam a uma cutscene que avança a trama para o próximo ato. Contudo, isso não quer dizer que o jogo não seja absolutamente divertido.

O maior obstáculo de Maneater está em tornar a experiência de controlar um tubarão em algo realmente cativante e orgânico. Dada a dificuldade histórica que tantas desenvolvedoras tiveram com fases aquáticas, é simplesmente audaciosa a decisão da Tripwire de construir um game inteiro em volta disso. E a audácia rendeu muitos frutos.

Passada a curva de aprendizado, já que pode ser um tanto intimidador ter de controlar velocidade, movimento e câmera a todo momento enquanto tenta desferir golpes e mordidas em criaturas e humanos, a rápida resposta dos controles e a existência de padrões bem definidos de ataques inimigos permitem que o jogador subjugue cada desafio de forma justa – desde que possua o nível necessário.

Imagem do jogo Maneater
Predadores alfa são os mais perigosos.

Há sempre o momento certo para tentar aquela mordida, e quando cravamos as mandíbulas na presa, cabe a nós mastigar o quanto pudermos, ou mesmo chacoalhar a presa de um lado para outro até que ela pare de resistir. Melhor do que isso é desferir uma forte rabada na presa e mandá-la a toda velocidade na direção de outra presa para atordoá-la.

Em Maneater também ocorre uma distinção bem resolvida entre oponentes animais e humanos. As outras feras se baseiam em ataques corpo a corpo, com deixas específicas para esquivar ou tentar um ataque crítico, seguindo aquele estilo popularizado pelos games Soulslike e então implementado por praticamente todo action RPG ocidental de hoje.

Humanos então consistem de padrões de ataques à distância, mirando no tubarão de cima de seus jet-skis e barcos. Cabe ao peixão pular graciosamente para fora da água e pegá-los um a um, despedaçando seus corpos enquanto os comparsas entram em pânico, chovendo balas em sua direção. Boa parte destes inimigos são mafiosos da pior espécie, o que dá um efeito ainda mais poético ao termo “dormir com os peixes”.

Imagem do jogo Maneater
O caçador virou a caça.

Continue a nadar

Já que Maneater nos deixa aproveitar a experiência em nosso próprio tempo, algo que é favorecido ainda mais na estrutura de mundo aberto, não há vergonha em fugir de uma luta muito difícil e tirar um tempo para coletar mais recursos e fortalecer. Até porque nosso tubarão possui um sonar poderoso que rapidamente destaca tudo que há para fazer dentro de uma área próxima.

E essa livre exploração é o que reforça o brilhantismo que Maneater vez ou outra traz à tona. Os comentários são claros, indo desde o número altíssimo de tubarões mortos ao ano, até camadas mais metafóricas, expondo a sujeira (também literal) que nossa raça esconde debaixo da superfície para ninguém ver – logo na segunda área do mapa, encontrei uma “Cova de X9”; imaginem só do que se trata.

No entanto, é de se surpreender o quanto o jogo da Tripwire consegue encontrar leveza no meio de tanta podridão, tecendo tiradas extremamente inspiradas que são muito bem entregues na ótima dublagem em português – na versão original, a narração é feita por Chris Parnell, o Jerry de Rick and Morty. Diria até que existe uma nuance dramática inesperada, que vai se revelando nos momentos narrativos que pontuam a campanha.

De vez em quando, a história até surpreende com algum momento delicado.

Em questão de jogos de tubarão, geralmente o mar não está para peixe. Portanto, seria simples assumir que Maneater já se firmaria como o melhor da laia sem precisar fazer muito. Porém é excelente constatar que o game realmente encontra diferentes maneiras de se exceder em sua proposta, possivelmente até abrindo espaço para um novo subgênero. Podem mandar os Shark Souls e os Sharkam Asylums – ou, como os devs dizem, ShaRkPG -, que há pouco.