Muitas vezes a expressão “O Inferno são os Outros” vem à tona e não poderia ser mais literal que no jogo Hell is Others. Uma aventura macabra que se passa em uma cidade centenária dominada pelas sombras de uma noite eterna e onde o sangue é a moeda vigente.
Na peça originalmente criada por Jean-Paul Sartre e traduzida para “Entre Quatro Paredes” no Brasil, temos uma interessante história onde três almas presas em um quarto no inferno constantemente se torturam, cada qual servindo de carrasco para o outro e de onde surgiu a famosa frase dita por um dos personagens.
Sangre de mi sangre
A noite na Cidade Centenária parece nunca ter fim. Afinal, sempre que o protagonista Adam Smith olha pelas janelas, um céu rubro-negro o encara de volta. A Cidade Centenária cultiva sua noite eterna em Hell is Others da mesma maneira que cultiva as vidas que nela transitam, em um espaço escuro e vermelho como o sangue.
Adam Smith vive um “dia” por vez, em seu pequeno apartamento onde sobrevive à noite eterna e vê as horas passar, saindo uma vez ou outra para realizar algum tarefa como jagunço. Sua vida muda quando um misterioso Bonsai surge à porta de seu apartamento, com um bilhete dizendo que o dono da planta voltaria em dez dias.
Se vendo diante da responsabilidade de manter a misteriosa planta viva por um senso de dever, Adam começa a alimentar a planta com litros e litros de sangue da Cidade Centenária. Junto dela, estranhas entidades começam a se concentrar no apartamento de Adam, o transformando no centro das atenções.
Tais atenções indesejadas envolvem uma estranha criatura que habita uma cratera aberta no banheiro, um misterioso vendedor ambulante e os diversos moradores da cidade, que vivem pedindo por novos trabalhos para Adam. Talvez o título de “faz tudo” seja um mal agouro em Hell is Others. Todos o procuram, seja para o bem ou para o mal.
Tudo tem seu preço
Hell is Others abre com um curto tutorial onde conhecemos Alfred, um coelho humanoide que cuida do prédio onde o protagonista mora e tem como missão ignorar Adam e seus pedidos diariamente, como se soubesse e esconde-se algo. Um outro coelho, chamado Ermete, opera o elevador e jamais diz uma palavra sequer.
Octave, um vendedor de tralhas ambulante que fecha um acordo com Adam, ensina como o jogo funciona através de alguns pedidos. Isso inclui coletar balas de plantas de munição, roubar locais atrás de itens, dentre outras missões na até então vazia cidade.
Os moradores retornam lentamente às suas lojas e casas pelos dias que seguem. Enquanto isso as lojas, casas e prédios são ocupadas por criaturas feitas de sombras e sangue, além das entidades conhecidas apenas como Os Outros, seres humanoides que nos caçam noite a dentro com armas.
A história avança sempre que dormimos, após ter ido pelo menos uma vez até a cidade, mas sem importar se voltamos vivos ou morremos durante a exploração. Afinal, os moradores sempre retornam à cidade quando tem algum pedido a ser feito para Adam, seja comida e bebida, munição, itens diversos ou até mesmo pedaços de criaturas.
Seus olhos, fixados em horror
Saídas diretamente de ideias forjadas pelos tomos primeiramente rascunhados por H.P. Lovecraft, Hell is Others é um noir sobrenatural, onde a cidade está infestada por terríveis criaturas, com carros abandonados em meio as ruas e avenidas, e construções (quase) vazias.
Algumas criaturas são apenas olhos flutuantes que perseguem e agridem Adam se jogando contra ele, outras são bocas e olhos. Tem até bocarras enormes que surgem em paredes para te mastigar. Mas nada chama mais a atenção do que “A Coisa Rastejante”, uma enorme centopeia pronta para se deleitar com o corpo de Adam.
As criaturas conhecidas como “Os Outros” são a quem o jogo se refere em homenagem à obra de Jean-Paul Sartre. Hell is Others é um game de jogador contra jogador contra computador. Ou seja, as ruas estão infestadas de monstros e jogadores que se parecem e agem como monstros.
Não é apenas você quem quer voltar para sua casa no fim da noite. Para isso, é bom se preparar para matar alguns humanos. Em uma espécie simplificada de Battle Royale, você deve sobreviver enquanto vasculhas prédios, casas e lixeiras atrás de recursos, sangue e os itens pedidos pelos lojistas de Octave.
Por trás da máscara, um humano
Você pode sobreviver a ida à cidade sem encontrar um jogador sequer, porém se o vir, abra fogo antes e o mais certeiro possível, senão com certeza ele o matará antes. O aspecto visual em Hell is Others fala sempre mais alto, confundindo você com alguma criatura. E a ausência de comunicação com eles torna a cooperação impossível.
O sistema de combate e navegação é bem simples. Com uma câmera top-down (visto de cima), guiamos Adam pela cidade. A direção é controlada com o mouse, algo importante já que mesmo tendo a visão da parte interna das casas, Adam só vê o que realmente está dentro do seu campo de visão.
Se uma criatura estiver fora do cone de visão, você não irá enxergá-la. Cada som feito pelas criaturas e jogadores aparece em volta de Adam. Quanto mais nítido o sinal, mais próximo o perigo, o que te dá uma certa vantagem ao emboscar suas presas. Mas lembre-se: se você pode ouví-los, eles também podem.
Algumas criaturas e condições podem atrapalhar sua visão e audição. Pra resolver isso basta comer e medicar-se, algo que estará fazendo constantemente. Seja de tiros dos Outros, ataques de criaturas ou dos vidros de uma janela estilhaçada que você teve que atravessar pra fugir de um quarto com algum inimigo. Cuidado para não ficar sem estâmina, pois o que te persegue pode facilmente te achar novamente.
Lar, doce lar?
Juntando os itens que são pedidos pelos moradores e os levando até eles, Adam recebe novas armas para se defender, assim como dinheiro e itens para a casa. Estes itens podem ser móveis ou decorativos, como lâmpadas, candelabros, modelos de papel de parede, portas e até mesmo sementes de planta bala.
Adam pode aumentar sua casa ao quebrar paredes com uma picareta, expandindo o número de itens em casa. Sempre que o faz, certos itens concederão melhorias como mais vida, aumento na recuperação de fôlego, mais dano com determinado tipo de arma, e assim por diante.
Busque sempre completar os pedidos dos clientes, para juntar dinheiro e gastar com os vendedores da cidade e sangue para regar suas plantas. Mas cuidado: além das criaturas que querem o seu sangue, você tem apenas 10 minutos para sobreviver na cidade. Após este período, caso não tenha encontrado e chamado um elevador, a noite o engolirá e o matará.
Hell is Others é divertido e excitante, colocando o jogador sempre em uma ansiedade de sobreviver a cada descida à cidade. Ainda assim, tenho que admitir que a instabilidade dos servidores me deixou frustrado, pois enfrentei algumas quedas.
Do paraíso ao inferno em minutos
O cone de visão foi uma boa ideia, mas a mira estendida com o botão direito do mouse é desajeitada e atrapalha mais do que ajuda na hora de atirar. Outro problema difícil de se contornar são os jogadores que muitas vezes ficam a espreita dos elevadores que podem ser abertos, de tocaia esperando algum jogador chegar para matá-lo.
A falta de um local preciso de onde encontrar certos moradores também não ajuda. Encontrar Stellan em La Cittadela, por exemplo, foi particularmente difícil pra mim. Devo ter rodado por muito tempo aquele bairro para encontrá-lo. E só encontrei porque ele soluçou e me deu uma dica sonora. Poderia ser um pouco mais fácil para avançar nas missões.
Hell is Others é cirúrgico na sua ideia, adaptando de maneira excelente a obra “Entre Quatro Paredes”. Porém, ainda há alguns pequenos problemas em sua concepção e gameplay, como a mira problemática e as personagens (muito) escondidas. Mas esta certamente é uma experiência única, digna do gênero e de seu nome.