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“Desconfiança”, o sentimento que dá nome a Distrust, é um dos sentimentos mais nocivos que pode existir, agindo de maneira sutil e insidiosa, corroendo pouco a pouco relações outrora saudáveis e preparando o terreno para grandes tragédias ou rupturas dolorosas. Ele pode brotar da mais absoluta paranoia ou estar plenamente calcado em atitudes mesquinhas e mentiras veladas, disfarçadas de meias verdades.

A desconfiança é um dos motores que tornam o filme “O Enigma de Outro Mundo” (The Thing, no original) uma experiência ímpar que jamais envelhecerá, mesmo que os efeitos especiais algum dia sejam superados. No isolamento de um dos ambientes mais hostis conhecidos do Homem, a vastidão antártica, a confiança é fundamental para sobrevivência. Seu companheiro de pesquisa, de alojamento, é mais do que um aliado, é quase um irmão. Não saber se pode confiar nele, se ele é quem diz ser ou se é uma inteligência extraterrena conspirando para consumir sua vida é o tipo de situação que causa arrepios no filme.

Distrust
Algo errado não está certo…

A desenvolvedora Cheerdealers em seu trabalho de estreia propaga esse jogo como “inspirado em O Enigma de Outro Mundo” (é o sumário no Steam!) e traz a desconfiança no próprio título. Eu estou aqui para avisá-lo: é um engodo.

Não confie no marketing

Então, Distrust quer enganar você? Sim e não. Se você está esperando uma ameaça alienígena que assume a forma de seus companheiros, gerando momentos onde você não sabe em quem confiar, é melhor procurar The Thing, a excelente continuação do filme original lançada anos atrás para PlayStation 2, Xbox e PC e esquecida por todos. Na verdade, em Distrust, seus companheiros são a única luz de esperança que você pode ter de eventualmente terminar a história, porque todo o resto está se esforçando pela sua derrota.

Por outro lado, se você está esperando uma atmosfera de desespero, habilmente construída através da reprodução sombria de uma estação polar e uma trilha sonora sufocante, Distrust é o seu jogo. Ele NÃO é The Thing, mas mimetiza com perfeição seu ambiente, a ponto de te convocar de volta, de novo e de novo, para sessões de pesada frustração, para experimentar mais uma vez aquela solidão, aquele frio, aqueles sons de outro mundo, aquele horror de que há mesmo algo lá fora atrás de você e sua equipe.

Distrust
Amigo ou inimigo?

A trama é simples, não esconde o que está acontecendo e vai direto ao ponto em uma curta cena introdutória: uma estação de pesquisa manda uma mensagem de socorro, seu time chega de helicóptero, mas sofre um acidente provocado por um estranho fenômeno. Daí pra frente, são notas esporádicas espalhadas que dão mais detalhes do que está acontecendo. E o que está acontecendo não é nada bom… ainda assim, você terá que conduzir esses sobreviventes através de sete zonas diferentes geradas randomicamente, progressivamente mais limitadas em recursos até o inevitável fim. Movimentação constante é o mote aqui, não há tempo para conjecturas, desconfianças, testes de identidade ou mesmo para pensar muito a respeito de suas lógicas internas. Distrust é direto e mortífero.

Não confie nas mecânicas

A jogabilidade é tão fria quanto o clima dessa base abandonada: explore prédios, busque por suprimentos, administre os suprimentos encontrados, veja-os minguando, morra, repita. Não há muitos enigmas a serem decifrados, uma vez que a saída de cada fase está claramente sinalizada no mapa e basta se aproximar dela para entender o que é necessário fazer para desbloqueá-la e avançar.

Distrust
Com três personagens vai mais rápido? Sim. Mas são três personagens para dividir a mesma quantidade de recursos…

O que você terá pela frente é uma frenética corrida contra um relógio invisível: controlando dois (ou mais personagens) ao mesmo tempo, você precisa ter certeza de que conseguiu localizar todos os itens o mais rápido possível, antes que eles sintam fome, frio ou, a pior de todas as necessidades, sono.

Com o sono, aparecem duas coisas: a primeira delas é a loucura, um efeito igualmente aleatório que acomete seus personagens com drásticas mudanças de percepção da realidade. Algumas incomodam (como deixar sua visão em preto e branco ou um constante murmurar), outras incomodam demais (como gargalhadas constantes) e outras podem ser fatais (como enxergar tudo desfocado ou ver inimigos por toda parte). E a loucura é cumulativa, quanto mais tempo sem dormir mais manias seu personagem irá adquirir.

Mas o pior é o que acontece quando você finalmente encontra um lugar para seu personagem cair e tirar um cochilo: adormecer atrai entidades enigmáticas e mortíferas de outra dimensão, que aqui funcionam como um inimigo a mais além do meio ambiente e das necessidades dos personagens. Eles fazem dano por proximidade, destroem objetos importantes e são bem difíceis de despistar ou deter. Não são o monstro metamorfo que você talvez estivesse esperando mas são a cereja desse bolo de cianureto cozinhado para te destruir.

Distrust
Quem mandou vocês dormirem?!

Então, você passa a maior parte do tempo correndo de prédio em prédio, tentando otimizar o tempo, torcendo para que os dados lançados caiam a seu favor, torcendo para que nenhum personagem se corte e comece a sangrar até morrer, torcendo para ter um gerador já ligado naquele lugar para onde você está correndo ou uma cama ou bandagens, apenas para descobrir uma lata de sopa sem nenhum fogão por perto e vendo suas chances de sobrevivência sendo arrancadas de suas mãos por vontade da aleatoriedade.

Não confie nos desenvolvedores

Se vale de alguma coisa, a Cheerdealers está ouvindo as críticas sobre a o sistema injusto de distribuição de itens. E aqui cabe um adendo: em minha primeira tentativa, morri pela absoluta falta de camas na primeira fase. Os desenvolvedores fizeram vários ajustes nas mecânicas do jogo para torná-lo menos hostil, para que a sorte seja um pouco mais caprichosa a favor dos jogadores e acredito que Distrust ainda esteja longe de sua versão final, se é que um dia atingirá um equilíbrio capaz de agradar masoquistas e casuais.

Agora, consigo chegar na terceira fase. Apenas para ver minha aparentemente bem-sucedida e sortuda equipe ser dizimada por uma queda de dominós que não controlo. Em todas as minhas tentativas de capturar e deter uma anomalia elétrica, ela escapou das armadilhas e somente agora descubro que era um bug, devidamente, mas tardiamente, corrigido pelos desenvolvedores.

Distrust
A loucura quando chega, chega forte.

Ainda assim, há relatos de bravos aventureiros que viram a luz no final do túnel e atingiram a mítica conclusão. Persistência? Sorte? Insanidade?

Não confie nessa análise

Então, por que continuo voltando e voltando para a mesma ciranda gélida de tentar, tentar e morrer? Por que há algo indizível em Distrust que me fascina. Como um caça-níqueis, fico esperando que a sorte se alinhe, que novidades apareçam (e elas aparecem, seja na forma de enigmas novos para desbloquear a saída ou mesmo novos personagens controláveis). Repito para mim mesmo que desta vez vai, que conseguirei sair desse pesadelo, que estamos indo muito bem, um otimista incorrigível fascinado pela vastidão sombria, pelas memórias de The Thing e “O Enigma de Outro Mundo”.

Conheço os defeitos de Distrust como a palma da mão e seus acertos também. Torço para que melhore. Atribuo o fracasso a minha própria incompetência, ignorando o lamento de diversos jogadores que passaram pelo mesmo sofrimento. Esqueço a desconfiança e engano a mim mesmo.

Mais uma sessão.

Desta vez vai.

Os dados caem…

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