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“O problema mais recorrente nos feedbacks até agora foi: – Estou um pouco confuso!
Ora, confusão faz parte do jogo…”.

Estas aspas estão no texto de boas-vindas do último beta de Cultist Simulator, um card game bem experimental no qual você descobre os segredos do oculto e funda seitas para agradar divindades obscuras. Em sua página no Kickstarter (de grande sucesso, aliás), o desenvolvedor o descreve como um jogo narrativo – “a cada escolha o jogador não apenas avança a narrativa, como a constrói”. Experiências narrativas são o meu fraco: levantei a mão e pedi as cartas. Ainda mais sabendo que o jogo estará concorrendo ao prêmio de melhor jogo no BIG este ano!

Ambiência da modinha

A ambiência narrativa e estética aqui são, novamente, os romances romântico-góticos com um toque de Lovecraft. Aquela coisa “Inglaterra modernista anos 20”: na casca uma sociedade cinzenta e de etiquetas; no âmago, uma sede pela redescoberta de sensações perdidas; a erudição servindo de ponte entre as novidades científicas e os mitos pagãos do passado.

Eu disse “novamente” porque esse lance virou tendência: dá uma olhada no vindouro Vampyr, ou o modo Zumbi do novo CODBO4. Além disso, o desenvolvedor de Cultist Simulator é o mesmo de “Fallen London” e “Sunless Sea“, ambos bebendo desta mesma ambiência (aliás, dois jogos que valem a conferida).

Verbos e substantivos

O simulador de cultos e narrativas aqui constrói sua sintaxe a partir de 4 elementos: verbos, objetos, sentimentos e pessoas. Os verbos são representados por pecinhas quadradas que contém slots para alocarmos as cartas, que representam todos os outros elementos. O papel do jogador é ficar encaixando as cartinhas nos verbos, e a partir daí ir construindo seu intelecto, reciclar sentimentos ruins, estudar livros ocultistas, fundar seitas, conseguir adeptos, matar opositores, buscar a iluminação e por aí vai.

Assim como as cartas, os verbos vão surgindo ou desaparecendo conforme a narrativa caminha. Você inicia apenas com o verbo “trabalhar”, e assim que você ganha seu primeiro dinheirinho surge o verbo “consumir” que puxa automaticamente para dentro de si seu dinheiro (ou na falta dele, sua saúde). Seu limite são os marcadores de tempo: a cada 60 segundos o verbo “consumir” vai puxar automaticamente uma carta de “dinheiro”. O verbo “trabalhar” demora uma certa quantidade de tempo também (que difere pra cada tipo de trabalho), e no final do ciclo gera recursos que podem ser usados pelo verbo consumir ou outros (que produzirão outros tipos de recursos). O desafio aqui então é dividir seu tempo de jogo entre realizar trabalhos remunerados e buscar a iluminação pessoal. Cuidado para não faltar recursos, caso contrário o verbo “consumir” puxará para dentro de si suas cartas de “saúde” (e quando estas acabarem você está liquidado).

Gerenciar trabalhos para ter recursos é portanto sua primeira preocupação no jogo, e ajuda a compreender a mecânica principal. A partir daí o jogo vai se tornando mais complexo… muito mais complexo! Difícil, com muitas atividades paralelas, muitos consumos, cartas novas pra compreender, mover, tempos pra calcular, e a lista continua.
Sim, o jogo está difícil a ponto de ser frustrante, e acho que atualmente tem duas grandes dificuldades: a confusão (já citada) por excesso de coisas acontecendo ao mesmo tempo a falta de compreensão e identificação com os parâmetros. São dois problemas que se somam: se o jogador não consegue identificar os parâmetros, fica ainda mais confuso! O desenvolvedor insiste que estas dificuldades são exatamente parte do puzzle da experiência, mas vamos analisá-las mais especificamente: como diria um famoso inglês daquela época, “Vamos por partes!”

Imagem do Jogo Cultist Simulator
Quantidade de verbos e coisas rolando em paralelo!

Sobre a confusão

Atualmente algumas “seitas” de estudiosos de jogos pregam que a motivação das pessoas pra se engajarem num jogo é justamente “desvendar as regras e dominar as mecânicas”; e esta é exatamente o propósito de Cultist Simulator! E olha que bonito aqui como a mecânica casa-se com a narrativa: “lançar-se ao desconhecido para dominá-lo” tem relação estrita com a temática proposta de se “desvendar o oculto para dominar as forças do universo”. Não é perfeito? O problema que vejo é que o oculto está muito oculto aqui, e o jogador pode enfrentar frustração suficiente para desistir das benesses da iluminação bem antes de alcançá-la. Como qualquer projeto de Kickstarter, o jogo foi se construindo aos poucos, permitindo que os apoiadores jogassem cada novo build do alfa dando feedbacks. Meu chute é que o jogo cresceu muito em cima de feedbacks de pessoas já iniciadas na “linguagem”, e hoje um recém-chegado que se sente à mesa tem muitas dificuldades. O novato vai se deparar com uma mecânica sem precedentes em outros jogos, e com uma quantidade enorme de ícones e variáveis, que nem mesmo as explicações de texto na tela dão conta de descrever por completo. Pra que serve esta carta? Como pode ser obtida?

Pra confundir ainda mais, há vários drops aleatórios; demora a se descobrir quais são aleatórios e quais não são – e caso não sejam, como podem ser “farmados”. Pesa ainda mais sobre a paciência do jogador o fato de que as partidas são razoavelmente longas, e só depois de muitos minutos (tendo que manejar atenciosamente os recursos) é que se pode fazer novas experimentações – e que quase sempre envolvem alto grau de risco: o mínimo deslize leva tudo a perder e é preciso então investir num novo recomeço cuidadoso para se tentar isolar variáveis. Um outro agravante é que há tantos verbos e ações acontecendo em paralelo que é comum nos esquecermos do que foi que fizemos há 20 segundos atrás, dificultando relacionar ações ao seu produto. Fora tudo isso, no início de cada partida o jogo te obriga a escolher uma profissão diferente da que você optou da última vez – o que muda um pouco o modo de jogo e soma portanto mais uma variável na bagunça, ficando mais difícil repetir ações para se tentar entender a mecânica…

Bem, é um jogo jogo experimental não apenas porque é inovador, mas porque exige que o jogador experimente bastante para compreender até os fundamentos principais. Cultist Simulator não entrega nada de bandeja, e além de tudo isso, comparando com qualquer outro jogo que traz “simulator” no título, você vai demorar muito pra começar a entender como criar seu primeiro culto.

Imagem do Jogo Cultist Simulator
Algumas profissões de início. São quatro, mas ele sempre esconde uma a cada nova jogada pra você brincar com as outras.

É preciso morrer diversas vezes e gastar muito tempo para se chegar num ponto mínimo de compreensão para (finalmente) podermos curtir as múltiplas escolhas oferecidas. Quer dizer, estou chutando: em mais de 7 horas de jogatina ainda não cheguei nesse ponto.

Falta de Identificação

“Identificação” é um princípio básico de qualquer proposta narrativa. Se não nos identificamos com as personagens de um filme, por exemplo, não temos interesse em progredir. Card games narrativos geralmente procuram gerar identificação através de desenhos figurativos nas cartas, do texto, das animações e efeitos sonoros que mimetizam os acontecimentos narrados. No entanto Cultist Simulator utiliza poucos desses elementos: são raros os sons narrativos, e predominam os efeitos de manipulação de carteado; os desenhos das cartas possuem ícones simbólicos vagos (um olho aberto, um outro que pisca, uma mão espalmada etc.) Assim, por mais que o jogo indique que estou desenvolvendo determinada ação, não tenho “a sensação” de estar de fato desenvolvendo aquela ação. A experiência toda tende a um simples “tenho que colocar essas cartas nesse slot aqui porque já aprendi que se não fizer isso eu morro”.

Grande parte da narrativa do jogo se baseia em textos, mas estes – pela sua própria temática ocultista – são quase sempre pouco objetivos. A lógica dos verbos também é pouco intuitiva: por exemplo, uma das formas de se conseguir seguidores é colocar uma carta de “segredo” no verbo “conversar”. Ok, faz sentido, mas convenhamos que não é muito intuitivo.

Um outro elemento figurativo no jogo são as fotos em preto-e-branco que surgem e desaparecem no fundo da mesa, de acordo com suas escolhas. Mas a quantidade delas é escassa, e aparecem tão “de vez em quando” (não entendi ainda se é possível fazê-las surgir mais freqüentemente) que se tornam apenas uma oportunidade perdida dos designers reforçarem identificação e clima. Resta-nos ficar encarando a feia mesa verde, espalhando nossa piscina de cartas e “verbos” pra todos os lados. Precisava mesmo ser tão bagunçado assim?

Imagem do Jogo Cultist Simulator
Às vezes essas imagens bonitas aparecem no fundo e dão sentido a esta mesa verde feia. Mas é tão raro!

Diante de todas as dificuldades de compreensão, fica difícil também sentirmos que estamos de fato influindo de forma “autoral” na narrativa – que é um dos fatores mais propagandeados no Kickstarter. A experiência se torna ainda mais distante pelos problemas básicos de balanceamento e aleatoriedade de drops, que não nos oferece muitos recursos para usarmos à nossa maneira: a dificuldade é tão constante desde o início, que em vez de sermos encorajados a “fazer do nosso jeito”, nos vemos obrigados a “fazer rápido e repetidamente com o que primeiro vier pela frente”.

Afinal

“Confusão faz parte desse jogo… mas nós não queremos que ele se torne impenetrável. Portanto agora estamos focando em fazer todos os ajustes necessários para resolver essa questão…”

Essa conclusão por parte (também) dos desenvolvedores acerca do alerta inicial é que me deixa esperançoso em relação ao futuro. Para além de todos os problemas o jogo atraiu constantemente o meu interesse cada vez que apertei o play. Há belíssimas ideias aqui, e porque novas e experimentais precisam ser afinadas. Apesar de não estarem prometidas nenhum tipo de mudança visual e de interface, elas estão vindo: ontem me deparei com a atualização do build de lançamento (posterior a este das aspas), que já possui algumas melhorias visuais e de interface que ajudam a compreensão geral.

Espero realmente que os desenvolvedores alcancem a iluminação para ampliar os adeptos da seita, ou estarão fadados ao se restringir ao minúsculo nicho de jogadores que atualmente conseguem atingir.

Imagem do Jogo Cultist Simulator
A morte mais comum.
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