Existe algo de exótico no horror japonês que já cativou plateias no mundo inteiro. Entretanto, se formos comparar as versões ocidentais de clássicos como Ringu ou Ju On com os originais, fica claro que a tradução não é perfeita, a estranheza se perde diante da máquina pasteurizadora de Hollywood. É essa bizarrice em estado puro que transparece nos melhores momentos em Corpse Party: Blood Drive.
Este é um terror cru, para não dizer visceral, que é lamentavelmente prejudicado para nossas sensibilidades não-japonesas por decisões equivocadas de design, um ritmo lento demais e uma predileção por clichês de anime.
Festa no colégio
Corpse Party: Blood Drive é a conclusão de uma saga que começou de forma independente em 1996 e se transformou em uma franquia que coleciona uma legião de fãs devotados. Inicialmente concebido com RPG Maker, o primeiro jogo da série revelava como um grupo de estudantes colegiais japoneses desencadeava acidentalmente um encantamento que os transportava para uma dimensão dos mortos, onde um destino cruel aguardava vários deles. Em 2014, o terceiro titulo da série principal chegava ao PlayStation Vita, desta vez em 3D, com uma premissa similar: retornar ao mesmo universo para tentar reverter o Mal causado. A versão para o PC seria lançada somente agora, cinco anos depois.
De imediato, Corpse Party: Blood Drive entrega sua idade e suas raízes. Não espere gráficos primorosos ou uma jogabilidade complexa e a narrativa deveria ocupar aqui o lugar de destaque. Contudo, ainda que devesse estar em segundo plano, a escolha visual de seus criadores acaba depondo contra a experiência: personagens no estilo Chibi na perspectiva 3D geram um contraste inusitado demais para manter a expectativa de imersão. O que antes poderia ser considerado alternativo, improvisado ou até mesmo “charmoso” nos primórdios com RPG Maker, aqui soa fora do lugar e o visual digamos, fofinho, dos personagens apenas atrapalha.
Felizmente, o jogo compensa esse Vale da Estranheza 3D com belas ilustrações, que serão sua companhia e sua jogabilidade por praticamente todo o longo, excessivamente longo, começo da trama. Descontando-se a fixação por jovens novas demais para o papel que exercem, a obsessão por vestimentas inadequadas para o contexto e as expressões faciais exageradas típicas de animes, obviamente.
O impacto inicial de Corpse Party: Blood Drive para aqueles que não são iniciados na franquia é forte: fui apresentado a uma sequência de diálogos expositivos de meia hora, com interação mínima no ambiente e nenhuma possibilidade de pausar ou salvar. Superado esse obstáculo, fui saudado com alguns minutos de interatividade, apenas para contemplar uma hora exata no relógio de mais diálogos expositivos, sem chance de salvar no meio. É claro que é possível pular por completo cada segmento de conversa, mas o que sobraria de “jogo” então? E como seria possível ter o mínimo entendimento do que está acontecendo?
Mesmo assim, apesar da ênfase de seus criadores na construção de seus personagens e sua trama, é evidente a falta de talento para ambos. Não apenas os diálogos são óbvios, cansativos e ainda conseguem deixar brechas no entendimento, como também seus personagens são pouco mais do que arquétipos básicos com nenhum desenvolvimento concreto.
Nossa protagonista é amargurada pela perda da irmã e não irá perder nenhuma oportunidade de se flagelar pelos erros do passado (inclusive literalmente em uma sequência chocante, mas desnecessária), expressar o quão assustada se encontra ou tecer comentários sobre suas necessidades urinárias. Entre os outros personagens, temos o estudante desajeitado e a professora que inexplicavelmente se apaixona por ele, o estudante casca-grossa mas de bom coração, a aliada interesseira que deveria ser fria mas na verdade é frívola, o garoto sinistro que aparece do nada e a inevitável moça de pouca roupa que é dublê de antagonista.
A trama de Corpse Party: Blood Drive se perde, tentando adicionar mais camadas ao lore de seu universo, com algumas revelações que deveriam ser surpreendentes, mas são bastante forçadas. É difícil não sentir vergonha alheia quando a professorinha inocente revela ser secretamente a CEO da uma bem-sucedida empresa aos 24 anos, que escolheu ser professora para ocupar seu tempo vago. Ou a visão da antagonista andando pelas ruas de triquíni revelador e que consegue puxar um alfanje maior que ela mesma, aparentemente de lugar nenhum. São muitos os momentos em que você se flagra tentando entender a visão de mundo dos roteiristas.
Entre traições e surpresas que não são exatamente surpresas, nosso grupo de protagonistas e antagonistas repete o mesmo erro dos jogos anteriores e retorna ao mundo macabro da Heavenly Host Elementary School, com objetivos que qualquer um com mais de dois neurônios perceberia não fazer sentido.
Aula de terror
Ainda assim, soterrado por maneirismos orientais e “fan service”, Corpse Party: Blood Drive oculta um enredo que intriga. A mera existência desse lugar macabro e suas origens desafiam nossa curiosidade. A possibilidade de domar as forças ocultas e sair triunfante dessa realidade é uma mola, uma isca, e o jogador pode sentir, ainda que somente em alguns momentos, o que impele os personagens a cair nessa armadilha.
Corpse Party: Blood Drive realmente começa quando somos transportados de volta para a Heavenly Host Elementary School. Nesse cenário, as paredes pulsam abominações, a carne se manifesta como ameaça em feridas físicas no assoalho, as almas daqueles que lá tombaram vagam por seus corredores em busca de novas vítimas. Em muitos aspectos, lembra o melhor do horror japonês nos jogos, com uma atmosfera que poderia estar presente em Silent Hill, Resident Evil ou Rule of Rose (se formos nos ater à temática escolar). Há grandes sequências perturbadoras e a sensação perene de que o lugar inteiro, não somente seus habitantes, está interessado no sofrimento físico e espiritual dos vivos.
Até mesmo a jogabilidade muda nesses momentos em 3D. A agência passa a estar de fato nas mãos do jogador, que também se sente transportado para essa realidade e precisa tomar cuidado com armadilhas no caminho, descobrir pistas, gerenciar a vida de seus personagens e se localizar no mapa gigantesco. É sufocante, como um pesadelo deveria ser e é possível vislumbrar o fascínio que o horror oriental tem, sua capacidade de nos agarrar de uma forma inesperada.
Entretanto, mesmo esse espaço é prejudicado por decisões equivocadas de seus desenvolvedores. A cada cinco minutos ou menos de exploração desse labirinto perverso, nossa imersão é quebrada por diálogos enfadonhos ou eventos pré-programados, que quebram o ritmo e arruínam a imersão.
É particularmente irritante, por exemplo, como o jogo insiste em nos revelar a cada minuto que a jovem Ayumi está assustada, chocada, seja mostrando ela gritando, chorando ou as duas coisas, o que funciona como um balde de água fria na emoção que o jogador deveria estar sentindo no momento. OK, eu entendi que Heavenly Host Elementary School é um lugar insuportável, eu mesmo estava sentindo o desconforto até ser rudemente interrompido.
O resultado é uma experiência em constante conflito: temos um cenário e mecânicas que são satisfatórias, mas que demoram a aparecer, sofrem com quebras constantes de tom, são prejudicadas por personagens visualmente fofos e psicologicamente rasos. É quase como se Corpse Party: Blood Drive, a exemplo de seu colégio sombrio, não nos quisesse ali, atrapalhando aquilo que seus criadores julgam ser o melhor.
Atravessar esses corredores, sem o polimento Ocidental e com tantos elementos que soam fora do lugar, quase me fez entender porque Hollywood transforma as marcas japonesas em criaturas mais palatáveis.