Tem misericórdia de mim, ó Deus,
segundo a tua benignidade;
apaga as minhas transgressões,
segundo a multidão das tuas misericórdias.
Lava-me completamente da minha iniquidade
e purifica-me do meu pecado.
Salmos 51:1-2
Os pecadores de Cvstodia tiveram o que sempre mereceram. O que alguns chamam de maldição, sob os olhos dos justos é apenas uma resposta do que é mais divino para os atos vis daqueles transgressores. Já não eram humanos decentes aqueles que se transformaram em monstruosidades. Suas mortes nada mais são do que expiação de seus atos.
Blasphemous, o segundo jogo do estúdio espanhol The Game Kitchen nos enche os olhos, a barriga e o coração. Uma experiência de ação e plataforma com um foco muito grande em um combate bem ritmado. A narrativa circunda o mundo de uma maneira envolvente, nos guiando por meandros inimagináveis e revirando tudo por mais informações. Sem dúvidas, uma experiência imperdível em um ótimo jogo estilo metroidvania.
Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem
Cvstodia era uma cidade normal, com pecadores normais, a corriqueira degradação humana afastando-se cada vez mais dos preceitos da Lei Sagrada. Pensando bem, não era uma cidade tão normal assim, a se considerar pela arquitetura estranhíssima, a quantidade absurda de lâminas, plataformas moventes e espinhos homicidas.
Cansado desta situação, o Alto Pontífice decidiu agir diretamente sobre a falta de devoção do povo de Cvstodia. Definhando, ele se transformou em uma árvore seca, murcha e morta. Fogo tomou conta do que era o seu corpo e, durante 90 dias e 90 noites, o Alto Pontífice queimou.
Uma vez que a árvore tinha sido total e completamente consumida pelas chamas, o resultado foi uma gigantesca montanha de cinzas. Em seu pico, o trono dourado do Pontífice permanecia, vazio e desguarnecido. O que havia restado da liderança da igreja se estapeava para alcançar o topo e assumir o trono.
Mas a montanha de cinzas parecia não só ter vida própria, como discordar do que estava sendo feito. Ela começou a se movimentar e, antes que eles percebessem, tudo e todos que estavam na Catedral haviam sido tocados pelas cinzas. E, dessas mesmas cinzas, se levantaram bestas disformes e sanguinárias, agredindo qualquer coisa que se aproximasse, porém, com sua fé absolutamente intacta. A esse acontecimento, deram o nome de “O Milagre”.
Para expurgar o mal do mundo e destituir a podridão que assola Cvstodia, peregrina O Penitente, personagem principal de Blasphemous e seu avatar neste mundo. Preso num eterno ciclo de morte e renascimento, cabe a você libertar o mundo deste destino terrível e enfrentar a origem de sua angústia.
Munido de uma série de aparatos, temos um mundo para explorar. Cvstodia é um misto de Baixa Idade Média com uma era Gótica e um toque de fantasia sombria. Dentro do que aparenta ser essa cidade e seus arredores, estamos soltos para buscar um objetivo levemente abstrato. Como um bom metroidvania, podemos seguir o caminho que desejarmos, dentro do que nossas habilidades nos permitem alcançar. E a narrativa acompanha muito bem esse processo.
Claro que essa busca não será nada nem próximo de um passeio no parque. A não ser, obviamente, que o parque seja um misto de Aokigahara com Silent Hill e uma dose dobrada de Raccon City. Para cada seção que descobrimos, uma dezena de monstruosidades dão as caras. E, por mais bem treinados ou bem equipados que possamos ser, cada embate pode ser fatal.
Nenhum dos inimigos pode ser subestimado, cada combate precisa ser tratado como uma batalha de vida ou morte, porque, de fato, é. Em meio aos golpes recebidos, os desvios e aos aparos, precisamos balancear e encaixar dentro de um ritmo que exige d’O Penitente um cuidado acima da média, os ataques de sua espada, a Mea Culpa.
Nascida da própria culpa, sua espada é a principal ferramenta a ser aplicada neste mundo decadente. A Mea Culpa, por início, permite uma sequência simples de golpes. Porém, quanto mais a utilizar para expurgar as bestas, mais se acumularão Lágrimas de Expiação. Com a devida progressão, O Penitente encontrará Altares de Mea Culpa, permitindo que sejam desbloqueadas novas habilidades e diferentes usos para a espada.
A Mea Culpa ainda possui ranhuras nos quais podemos inserir Corações especiais. Estes itens alteram fortemente o comportamento tanto da espada quanto d’O Penitente, oferecendo um benefício para cada malefício proporcionado. Afinal, uma espada não combina tão bem com corações assim…
E sua espada é só uma das ferramentas que temos à disposição para a limpeza de Cvstodia. Como todo bom penitente, temos um rosário e cada uma de suas contas pode receber um item de customização encontrado pelo mundo, melhorando a defesa, a vitalidade, o Fervor ou diversos outros pontos d’O Penitente.
Por falar em Fervor, é com ele que podemos entrar em preces, invocando poderes divinos para nos auxiliar pela nossa caminhada. Habitualmente obtidas expurgando inimigos, cada uma das preces possui efeitos únicos, como camadas de proteção, ondas de energia percorrendo o solo ou raios descendo dos céus.
Se tua mão direita te fizer pecar, corta-a
Outra das ferramentas são as Relíquias. Habilidades passivas obtidas que alteram a maneira d’O Penitente cruzar os terrenos de Cvstodia, tal qual a possibilidade de revelar áreas secretas ou plataformas sangrentas que aparecem em pleno ar.
E a quantidade de coletáveis não para por aí, além disso, ainda adquirimos dezenas de itens importantes para a realização de tarefas específicas. Fora os itens que podemos doar ou trocar com NPCs para inúmeras necessidades. O mais impressionante não é nem a quantidade infindável de itens, e sim que cada um deles possui um fragmento textual que descreve mais sobre a história de Blasphemous.
Mas o mais estranho deste mundo é coletarmos pedaços e ossos de vários moradores da região, recebendo, com isso, uma breve biografia de personalidades relevantes de Cvstodia e sua influência na situação da região pré e pós Milagre.
Fazendo jus à ambientação incrível de Blasphemous, toda a parte textual também está alinhada com a temática religiosa do jogo, trazendo uma complexidade tal qual um texto bíblico antigo. Devo admitir que precisei dedicar uma atenção redobrada para compreender ainda muito pouco sobre o rico universo que cerca Cvstodia e O Penitente.
Essa riqueza também é levada para as dezenas de NPCs que permeiam o mundo de Blasphemous, personalidades variadas preenchendo maravilhosamente a história e a experiência em Cvstodia.
Como já foi dito previamente, os inimigos são incrivelmente perigosos. Porém a participação deles não se limita a isso. Assim como os outros NPCs, as bestas presentes em Blasphemous são muito variadas, onde cada seção de Cvstodia tem uma série de criaturas que fazem sentido com seu local de conversão. Para poder expurgar cada uma, é necessário que O Penitente entenda como elas se comportam e como atingí-las de maneira eficiente, caso contrário, ele mesmo perecerá em batalha.
Incluindo insulto à injúria, os inimigos não se limitam a bestas relativamente comuns ou banais. Algumas das personalidades de Cvstodia possuem um poder ainda maior e isso é representado por seu tamanho. Chefes gigantescos são desafios constantes em Blasphemous, fazendo com que sua presença intimidadora mostre a insignificância d’O Penitente perante a magnificência d’O Milagre.
Por estar no ciclo de morte, renascimento e penitência, a cada vez que o protagonista perece em batalha, ele renasce em um altar Ore a Deus. Porém, a Culpa da morte cobra um preço de seu Fervor, limitando a quantidade disponível até que O Penitente se reúna com a sombra de seu cadáver e expurgue sua Culpa.
O cuidado com o visual de Blasphemous é impressionante. Animações estupidamente detalhadas. Pixel art em sua mais pura expressão. Os cenários são de um detalhamento digno de pinturas renascentistas, caso elas fossem feitas com pixels. Se Blasphemous não fosse de uma beleza tão horrenda, seria digno de decorar qualquer parede do mundo.
Tendo descrito tudo isso, elogiado tanto Blasphemous, vamos ao que tive de problema com ele. Por ser um jogo com partes tão relevantes de plataforma, duas coisas precisariam ser tratadas para que ele possa se manter desafiador, porém justo: uma refinação nos movimentos, principalmente no que tange aos saltos do personagem, e equilibrar melhor as partes nas quais erros mínimos fazem com que O Penitente morra imediatamente.
Entendo perfeitamente o conceito por trás da dificuldade do jogo e apoio, visto a narrativa do mesmo. Porém, em muito mais pontos do que o necessário, tive minha experiência atrasada em muito por momentos nos quais não conseguia ter uma visão do ambiente onde eu estava, para saber se eu poderia pular tranquilamente ou por ter sido empurrado por ataques que vinham de locais até fora do meu raio de visão. Isso poderia ser visto como algo pequeno, mas por esses pontos, calculo que precisei passar quase 10% do meu tempo de jogo percorrendo os mesmos caminhos para recuperar cadáveres falecidos por conta de situações que não necessariamente foram responsabilidade minha.
Dito isso, Blasphemous é uma obra prima no que tange a ambientação, a narrativa, a visual, a efeitos sonoros, em basicamente tudo o que se pode perceber. Somente algumas ressalvas em relação a movimentação e navegação não fazem o jogo perder o incrível brilho que possui. Absolutamente recomendado.