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Dizem que o ser humano é o único animal que possui consciência sobre a inevitabilidade da morte. O dilema do fim da vida e o que acontece (ou não) depois dela são perguntas que permanecem sem respostas satisfatórias desde a aurora da Humanidade. Diante do grande enigma, o homem busca soluções em construtos sociais: a religião é um deles. A Arte é outro.

Não se podem esperar respostas de Beyond: Two Souls, mas ainda assim o jogo funciona como uma celebração da aventura de viver e não foge de temas complexos como necessidade de pertencimento, política externa e, claro, a inevitabilidade da morte.

Começo

Depois de fugir completamente do fantástico em Heavy Rain, talvez por temor de repetir o desastre da segunda metade de Indigo Prophecy, a desenvolvedora Quantic Dream se joga no desconhecido, mistura ciência e espiritismo, para nos trazer algo mais do que um jogo, mas uma verdadeira saga humana, da infância até a vida adulta de Jodie Holmes.

Beyond: Two Souls
Impávida, mas frágil

Jodie Holmes nasceu com um dom único em seu universo: ela compartilha seu corpo com uma segunda alma, uma entidade parcialmente autônoma permanentemente atada a ela chamada de Aiden. Desta interação, brotam a dádiva e a maldição de sua vida, assim como as principais mecânicas do jogo.

David Cage vem sendo sistematicamente acusado de oferecer experiências que estão mais próximas do cinema do que dos jogos eletrônicos e não será Beyond: Two Souls que irá mudar a opinião de seus detratores. Nesse ponto, o aspecto quase voyeurístico de suas obras atinge seu ápice: não apenas pela verossimilhança absurda entre Jodie Holmes e o ator Elliot Page que a interpreta como também pela conexão que criamos com ela. Ora o jogador é convidado a controlá-la, invadindo seus momentos mais íntimos e compartilhando sua vivência, ora o jogador assume o papel de Aiden, literalmente externo a Jodie, mas dela inseparável. Mesmo nos momentos em que não estamos dentro da “pele” de Aiden, o vínculo que nos ata a Jodie é muito forte.

Beyond: Two Souls
A visão de Aiden, o outro “eu”

Essa convivência, essa co-vivência, em que a protagonista está sempre acompanhada por nós (e é possível jogar Beyond: Two Souls de forma cooperativa com outro jogador realmente compartilhando o corpo), cria um nível de imersão que não seria possível em outros jogos e muito menos no cinema. Desta maneira, a Quantic Dream transcende as definições de sua arte e faz o casamento perfeito entre mecânicas e história.

Nós vemos Jodie lutando para se encaixar em uma sociedade que a rejeita de todas as formas: ora é taxada de “bruxa”, ora é vista como uma arma do governo, ora como um perigo, ora como uma filha inconveniente. Daí, brota sua necessidade absurda de fazer parte de algo, de pertencer, de encontrar um lar fora de seu universo particular interior. Sentimos sua solidão acompanhada, mergulhamos no seu âmago, somos Jodie por aquelas horas em que Beyond: Two Souls roda em nossas telas. Mas também não somos: somos algo externo, algo que zela por ela, algo que ataca seus inimigos, algo que deseja seu melhor, irmão e pai, amigo e companheiro.

Acredito que poucas vezes me importei tanto com um personagem quanto por Jodie Holmes, a criança que vi crescer e quis salvaguardar de um mundo que não a aceita. Isso é algo que a saudosa Telltale Games construiu ao longo de vários The Walking Dead para sua Clementine, mas a Quantic Dream faz com um único jogo.

Beyond: Two Souls
O horror, o horror.

Meio

Essa mágica não seria possível sem o talento inigualável do seu elenco. Elliot Page está majestoso, talvez até mais do que já o vi nos cinemas, talvez porque ele aparece quase que literalmente despido para nós em toda sua fragilidade e sua força. William Dafoe empresta sua altivez e sua dor para o papel do doutor Nathan Dawkins, um dos poucos que permanecem ao lado da protagonista até quase o final. São os dois nomes mais famosos do elenco do jogo, mas todo o resto está brilhante em suas interpretações. Kadeem Hardison e seu inesquecível Cole Freeman merecem destaque especial, mas é difícil apontar alguém que destoe em suas falas ou movimentos, ao contrário do que acontecia em Heavy Rain.

Com um brilhantismo técnico e uma seleção caprichada de atores, a Quantic Dream rompe o Vale da Estranheza nessa emulação do real e nos apresenta um nível de humanidade difícil de se obter em um jogo.

Beyond: Two Souls
Nascida para matar.

Se a história se eleva para esferas fora da realidade cotidiana sempre que possível, todo o resto mantém seus pés firmes no chão. Não são apenas os gráficos fotorrealistas ou captura de movimentos anos luz à frente do vem sendo feito na indústria. Isso aparece também na fluidez do combate e na resolução do dilema dos Quicktime Events.

Um dos grandes problemas das lutas presentes nos títulos anteriores da Quantic Dream (e, vamos ser honestos, em quase todos os jogos onde QTs existem) é a dissonância entre querer prestar atenção no confronto e ao mesmo tempo precisar prestar atenção na tecla para se apertar que irá aparecer na tela. Beyond: Two Souls resolve isso de duas maneiras que deveriam ser óbvias: desacelerando a ação em momentos chave e fazendo o jogador reagir ao que acontece na tela, sem apertar botões específicos, mas movendo a personagem para baixo ou para cima, para a esquerda ou a direita. O resultado é um combate gostoso de se lutar em que somos mais integrados ainda ao que está acontecendo.

Beyond: Two Souls
Uma aquarela.

Aqui, a Quantic Dream parece se libertar da “obrigatoriedade” de se gamificar tudo. No lugar de sermos forçados a apertar botões para tomar café, abrir portas, subir um barranco, Beyond: Two Souls torna tudo mais orgânico, com o objetivo de se esconder que você está em um jogo. Movimentos de mouse muito mais responsivos do que aquilo que vimos em Heavy Rain ditam a tônica nas aventuras de Jodie e as sequências que exigem botões específicos são mais esparsas e menos cansativas.

Não que a desenvolvedora tenha aberto mão de trazer experiências exóticas para a mesa. Momentos que você nunca imaginou viver em um jogo eletrônico estão presentes aqui, como cozinhar um jantar romântico, esmolar por um prato de comida ou fumar uma certa erva proibida.

Apesar de sua imensas qualidades técnicas, nem tudo é perfeito em Beyond: Two Souls. Ainda que o jogo traga uma dublagem exemplar para o nosso Português, há alguns momentos no jogo onde o volume das vozes despenca e, é claro, isso prejudica o mesmo contrato de imersão que o título tanto se esforça para manter.

Beyond: Two Souls
Não é uma cutscene, são as barras forçadas na tela.

Além disso, a obsessão cinemática de David Cage se manifesta na existência de barras pretas forçadas no topo e no rodapé da tela, para manter uma resolução ultra-wide mesmo que seu monitor não tenha suporte a isso. Para alguns jogadores como eu, essa é uma decisão frustrante e arrogante pela falta de uma opção oficial para desabilitá-la. Felizmente, em se tratando de PC, sempre há uma solução e um mod não oficial desativou o efeito, revelando que existe cena embaixo da barra preta artificial.

Fim

Se tudo converge para conectar o jogador com a história, era de se esperar que a Quantic Dream entregasse uma narrativa impecável. E é exatamente isso que acontece na fragmentária trajetória de vida de Jodie Holmes.

Indo e vindo no fluxo do tempo, somos apresentados a diversos momentos de uma vida marcada pelo sofrimento e pela busca de seu lugar. Sua história, removendo os elementos fantásticos, não é muito diferente da vida de cada um de nós, repleta de rejeições, obstáculos, necessidade de ser feliz, reviravoltas, triunfos, amor, ódio. A Quantic Dream nos puxa por um fio de prata e nos prende a essa pessoa e nós iremos até o fundo do poço, até a sublimação do primeiro amor, passando por questões familiares, por questionamentos e, enfim, a Morte, com M maiúsculo. Ou não.

Beyond: Two Souls
O fogo tudo purifica. Mas não aqui.

Nesse caminho, Beyond: Two Souls tocará sem pudores em questões pungentes do mundo real. Entre os desvalidos da sociedade, Jodie Holmes irá reencontrar a esperança e confesso que esse é um capítulo que provoca constantes nós na garganta. “Desabrigada” (“Homeless” no original) é angustiante. A crítica bate forte e é notável o cuidado e a delicadeza que a Quantic Dream emprega nesse e em tantos outros momentos. Até mesmo a política externa colonialista da CIA e suas operações sombrias aparecem em cena e o jogo ora flerta com títulos de ação, como Call of Duty, ora surpreende com o survival horror.

Feito de escolhas, Beyond: Two Souls nos oferece caminhos que terão reflexos na jornada de Jodie Holmes. Não chega a ser um Mass Effect em suas ramificações ou mesmo um Heavy Rain, mas ainda assim o jogo mantém a suspensão de descrença de que estamos no poder. Talvez essa seja a intenção da Quantic Dream e eu ofereço a eles o benefício da dúvida, afinal, um dos temas que o jogo aborda é a falta de controle que a protagonista tem sobre seu próprio destino. Apesar das ilusões, senti que o final que recebi é o final que desejava e o epílogo de arrepiar a espinha promete um futuro que talvez nunca venha.

Despeço-me de Jodie Holmes com a dor de um rompimento, mas com convicção reiterada que a aventura de viver é uma aventura que vale ser explorada, mesmo em seus pontos mais duros. E isso, meus amigos, é a resposta que a Arte oferece.

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