Na bíblia, Salomão é descrito como um dos homens mais sábios da terra. No capítulo 3 do livro de I Reis, a história do julgamento de Salomão aparece, sendo este considerado um dos grandes exemplos da sapiência do rei de Israel. Em sua corte, duas mulheres brigavam pela guarda de uma criança, já que as duas deram à luz na mesma noite, e o filho de uma delas fora morto sufocado. Para resolver o dilema, o monarca israelita propôs que a criança sobrevivente fosse cortada ao meio, dividindo as partes entre ambas as mulheres. Enquanto uma das mulheres aceitou a solução, a mãe verdadeira recusou a proposta, preferindo entregar a criança à falsa mãe. O ímpeto de salvar a vida do filho, mesmo que, para isso, fosse necessário entregá-lo a outra pessoa, fora a prova suficiente de sua maternidade.
Assim como o rei Salomão se deparava com julgamentos difíceis em sua corte, o DLC Royal Court de Crusader Kings III busca, entre as suas novidades, colocar o jogador na posição de juiz, sendo encarregado de mediar os diferentes problemas entre os membros da corte e os vassalos. Contudo, por ser um jogo com o foco no roleplay, nem todos os personagens possuirão a sabedoria do filho de Davi, e as relações interpessoais serão severamente afetadas conforme as decisões tomadas pelo monarca.
Que rei sou eu?
Além de se passarem em épocas distintas, cada jogo da Paradox foca em aspectos diferentes em relação à jogabilidade. Hearts of Iron foca na logística de guerra, Victoria nas relações econômicas e diplomáticas, Europa Universalis na geopolítica e Crusader Kings nas relações feudais entre vassalos, suseranos e cortesãos. Nesse cenário, é de se imaginar que as expansões da franquia medieval da empresa foquem, sobretudo, no aspecto humano.
Royal Court busca complementar a função do rei. Mais do que oferecer cargos e cumprir a vontade dos vassalos, o rei também tem a função de juiz, sendo o mediador entre os conflitos internos do reino. Justamente com o intuito de expandir tais interações, a sala do trono foi adicionada ao jogo, permitindo visualizar as disputas da corte – além de, é claro, oferecer uma visualização mais clara do seu personagem e os membros da corte em um ambiente mais condizente com o período.
De tempos em tempos, você deverá utilizar o seu julgamento para resolver os problemas apresentados por meio dos personagens do jogo. A variedade dos dilemas é alta, onde alguns podem não apresentar soluções satisfatórias. A capacidade de satisfazer os vassalos e melhorar o reino dependerá, além do seu julgamento, das habilidades do monarca.
Crusader Kings III leva muito a sério o fator de roleplay. No jogo base, personagens com traços alinhados à justiça e às virtudes são penalizados caso realizem ações desonrosas. Do mesmo modo, personagens traços mais traiçoeiros podem agir sem escrúpulos sem maiores consequências. Royal Court também leva esse fator adiante, apresentando casos que a melhor solução, em termos práticos, pode ser uma ação controversa, mas que um rei justo jamais o faria sem acumular alguns pontos de estresse – e diminuir a sua expectativa de vida em pelo menos alguns anos.
A corte em si também possui um nível de grandeza. Quanto maior for esse nível, maiores serão as vantagens para o monarca, além da possibilidade de ser visitado por convidados habilidosos e de desbloquear ações novas para os membros do conselho. Eventos especiais e investimentos na estrutura da corte aumentam o nível da mesma.
A volta dos que não foram
Algo que dava charme ao Crusader Kings II eram os artefatos. Quem já jogou sabe muito bem qual é a sensação de vencer uma cruzada e, ao final dela, receber de presente um dos 600 supostos prepúcios de Jesus Cristo das mãos do papa. Tais itens, além do valor de roleplay, dão diversos bônus a quem o possui, sendo até mesmo alvos da ambição dos outros personagens.
Crusader Kings III finalmente contará com tal sistema, só que ainda melhor. Os itens agora possuem níveis diferentes de qualidade, sendo possível até mesmo perdê-los por degradação. Essa novidade não é inerente ao DLC, mas Royal Court expande a mecânica, adicionando a obtenção de itens para a corte em vez de apenas itens focados no personagem.
Um exemplo bem legal são os banners da sala do trono. No início, você poderá colocar o banner da sua família acima do trono, mas ele não lhe garantirá muitos benefícios. Contudo, conforme o prestígio da sua família cresce, esse banner poderá melhorar de nível, simbolizando o aumento da importância da sua dinastia. Outros itens, como livros – espadas especiais, estátuas e demais decorações – também podem ser visualizados na sala do trono, dando uma imersão maior ao jogo.
Assim como no segundo título da franquia, é possível comissionar itens de outros personagens do jogo. Quanto maior for a proficiência dos mesmos, maior será a chance de conseguir um objeto de qualidade maior. Claro que, além da opção de comissionar um artefato, artistas renomados e aventureiros podem aparecer na sua corte, cabendo a você decidir se os patrocina ou não em troca de itens.
Outra mecânica que retorna são os pequenos cargos da corte. Em Crusader Kings II, além do conselho composto por vassalos em membros da corte, alguns cargos especiais poderiam ser distribuídos a fim de melhorar a opinião com um personagem – ou piorar, como no caso do bobo da corte. Agora, além dos bônus de opinião, cada cargo também trará vantagens ao nobre de acordo com o grau de aptidão do cortesão ou vassalo designado. O bobo da corte agora terá uma utilidade prática, visto que ele dá a possibilidade de eventos redutores de stress.
Conquistando novas culturas
Uma das grandes novidades de Crusader Kings III foi a possibilidade de montar uma denominação nova de uma religião pré-existente. Se, por exemplo, o catolicismo padrão não estiver satisfazendo as suas necessidades, você pode simplesmente criar a sua própria igreja cristã, colocando uma doutrina própria e permitindo práticas que a antiga igreja não permite. De maneira semelhante, Royal Court permite que a cultura agora também seja moldada de acordo com o objetivo do jogador.
Em vez dos pontos de fé, agora os pontos de prestígio funcionam como moeda na hora de criar uma nova cultura. As tradições – que seriam como os dogmas religiosos – são subdivididos em cinco categorias referentes à guerra, à administração, às relações sociais, à religião e à região. Os pilares, por sua vez, são semelhantes às doutrinas religiosas, instituindo o ethos cultural, que determina os benefícios dos personagens contidos na cultura.
Fora as vantagens das novas culturas, a diferença cultural também impacta na governabilidade de um novo território. Alguns povos serão mais propensos a aceitar uma cultura diferente dominante, enquanto outros causarão problemas no modificador de controle. Para amenizar esse fator, além da nova árvore de habilidades da dinástica, referente à tolerância, os personagens podem aprender idiomas diferentes. Desse modo, os povos de outras culturas terão uma opinião melhor de um líder que, apesar de ser parte de uma cultura diferente, compreende e fala a língua local.
Com essas mudanças, Royal Court se mostra como uma excelente escolha como primeiro DLC de Crusader Kings III. Confesso que, quando li sobre o lançamento da mesma, fiquei com o pé atrás, visto que estava esperando algo focado no oriente ou na criação de grupos especiais, mas o resultado final me surpreendeu positivamente. No final das contas, Crusader Kings é mais do que um jogo de estratégia: é um simulador de política medieval, representando cada característica inerente ao ser humano como objetos necessários dentro do jogo político.