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Os 5,63 leitores regulares dessa coluna sabem que eu sou um jogador das antigas, para quem videogame é algo interativo, e não algo que o jogador recebe passivamente. Aliás, abre parêntese: o melhor momento das minhas férias de fim de ano foi ver na RTVE espanhola, no excelente programa Zoom.net, uma entrevista em que Hideo Kojima disse algo como “quando eu sentir que não tenho nada mais que contar na série Metal Gear Solid, vou virar diretor de cinema”. Esse momento me valeu ótimas gargalhadas enquanto estava passando roupa. Fecha parêntese.

No entanto, o jogo que mais me impactou nas últimas semanas foi… um visual novel. Sim, a versão eletrônica dos livros “escolha-sua-aventura”. O estilo de jogo que faz com que Metal Gear Solid pareça Super Mario Brothers, que faz com que um QTE pareça Half-Life. Apesar de que, admito, não esperava nada desse jogo. Bem, minto, esperava uma perversão bem pouco saudável, já que esse jogo foi criado por egressos do maior antro de desnaturados da internet, o 4Chan. Mas encontrei algo completamente diferente.

Katawa Shoujo (de acordo com a Wiki, o nome significa “garotas com deficiência”) é um projeto que começou com alguns desenhos bishoujin que apareceram no 4Chan, mostrando diversas garotas com deficiência: uma cega, uma sem braços, outra com pernas protéticas etc. Alguns membros do fórum decidiram desenvolver um jogo a partir daí; no ano passado, apareceu uma versão de demonstração, com o primeiro ato da história, e na semana passada foi liberado o jogo completo.

O jogo conta a história de Hisao Nakai, um garoto japonês típico (de um mangá para meninas, obviamente), que descobre que tem uma deficiência cardíaca grave e potencialmente fatal. Para permitir que Hisao continue estudando e não corra risco de vida em uma escola normal, seus pais o matriculam na Escola Yamaku para Descapacitados, uma escola especial preparada para alunos com condições de deficiência física. Nessa escola, Hisao conhece várias meninas com diversas deficiências: Emi Ibarazaki, que teve as duas pernas amputadas abaixo dos joelhos e usa prostéticos especiais, sendo membro do clube de atletismo da escola; Rin Tezuka, que teve os dois braços amputados devido a um defeito de nascença, e que também apresenta sintomas de autismo; Lilly Satou, que nasceu cega; Hanako Ikezawa, que tem metade de seu corpo com cicatrizes devido a um incêndio quando era criança, e que devido a isso desenvolveu uma introversão quase patológica; Shizune Hakamichi, surdo-muda e presidente do centro estudantil; e Shiina Mikado (Misha), “intérprete” de Shizune (Misha não tem uma deficiência física aparente, mas demonstra certos sinais que podem ser interpretados como síndrome obsessivo-compulsivo, hiperatividade ou mesmo síndrome de Asperger).

De acordo com as (poucas) escolhas tomadas pelo jogador no Ato 1, Hisao se relaciona com uma das meninas (ou, alternativamente, com nenhuma, com o jogador recebendo um final abrupto para a história). Os relacionamentos podem acabar de diferentes maneiras (bem/mal/neutra) para cada uma das meninas, de acordo com escolhas posteriores feitas pelo jogador no quarto e último ato da história.

Novamente: com uma história dessas, e comentários que saíram nos fóruns e blogs na época do desenvolvimento, o que todo mundo esperava era uma perversão com deficientes. Mesmo depois de sair o Ato 1 no ano passado, e que era surpreendentemente casto para o que se anunciava por aí, eu continuava cético; tudo apontava a que o Ato 1 seria simplesmente uma preparação para um final digno de Sodoma e Gomorra.

Mas, para meu espanto, a história é tremendamente respeitosa com as deficientes. Todas elas estão muito bem adaptadas às suas condições, não são umas coitadas e não estão definidas pela sua deficiência – ao contrário, todas elas ajudam em um momento ou outro Hisao, que afinal de contas é quem está se adaptando à sua nova condição. Os relacionamentos (meio bobocas às vezes, afinal de contas estamos falando de uma história shoujo, mas isso é perdoável) não são entre dois deficientes, mas entre duas pessoas absolutamente normais. E mesmo os poucos momentos eróticos que os 4Channers se permitiram não têm absolutamente nada de pornográfico ou pervertido; muito pelo contrário, são muito bem-feitos e bonitos.

E mesmo os valores de produção são ótimos; os desenhos e fotos são lindíssimos, e a trilha sonora, apesar de meio carregada de clichês, foi muito bem feita. Ainda que Katawa Shoujo, de acordo com o meu livro de conduta e estilo, seja mais um Powerpoint que um videogame, a história que ele conta – e a sensibilidade com que essa história é contada – faz a gente lembrar em todo momento que uma pessoa com deficiência é uma pessoa como outra qualquer, e tem as mesmas necessidades e desejos que qualquer um de nós. Não é uma obra-prima, mas com certeza é uma obra que merece ser apreciada.