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[miptheme_alert type=”warning” close=”false”]Atenção! Esta coluna reflete apenas a opinião do autor e não necessariamente a dos outros membros do Gamerview.[/miptheme_alert]

Na minha última coluna, soltei a tese POLÊMIKA de que jogos não servem para contar histórias. O nosso companheiro Guilherme Bova soltou uma pequena parrafada nos comentários para rebater os meus argumentos. Comecei a escrever uma resposta, mas o texto começou a ficar tão grande que resolvi fazer uma nova coluna como continuação. Caso você não tenha lido a coluna anterior nem o comentário do Bova, sugiro ler para entender o caso. Eu espero até você voltar.

O Bova diz que não necessariamente o uso de cutscenes ou textos são um defeito de design de um jogo, porque os videogames são um produto de multimídia e, portanto, é natural que usem recursos de várias formas de arte. Obviamente não dá pra discutir aqui. Um jogo pode mudar bastante de acordo com os diversos recursos à sua disposição. Usando o exemplo do absurdo, se a gente pegar a batalha final de Ocarina of Time e colocar a música dos Trapalhões, não vamos ter exatamente o mesmo impacto. Ou podemos deixar de usar a imaginação e pegar o que já está feito. Os olhos de vidro da Aeris ganham um significado completamente distinto com a música certa.

Falando um pouco mais seriamente, o uso do som/texto pode sim deixar o jogo mais rico. O narrador grandiloquente de Bastion deixa um jogo “simples” bem mais emocionante.

Na segunda parte (e coração de seu texto), Bova discorda de mim, dizendo que jogos podem sim servir para contar histórias, dando como exemplo Inside e Journey, “os melhores jogos que já joguei na vida”. Para começar a contra-argumentar, vou resumir aqui a história de um outro jogo:

Você é uma pessoa normal, um anão num mundo de pessoas e vegetais antropomorfizados com o dobro da sua altura. Esse mundo foi invadido por uma tropa de monstros liderada por um enorme dragão/lagarto que cospe fogo, que raptou a sua líder. Você começa a sua jornada para salvá-la sem enfrentar resistência. Por que haveria? Você não é mais que um ser diminuto cercado de gigantes!

Por sorte, o monstro o subestimou. Ele não percebeu que você, o anão, tem a capacidade de saltar e correr como ninguém. Todos os outros habitantes do mundo, que conhecem as suas habilidades, conseguiram esconder itens mágicos por todo o mundo antes de serem presos. Ao perceber o erro e ver que você tem uma chance de ganhar, o monstro começa a recuar, colocando soldados seus disfarçados como ele nos diversos castelos pelo caminho. Iscas para fazer você cair em suas armadilhas. Por sorte, os outros cidadãos do reino o avisam sobre esses ardis, apontando a direção que você deve seguir.

Depois de passar por quase uma dezena de castelos, enfrentando a resistência dos seus esbirros, cada vez melhor treinados e em maior número, e passando um minotáurico e cruel labirinto, você encontra o seu maior desafio: o monstro em pessoa. Mas, mesmo cuspindo labaredas de fogo pela boca e com um arsenal aparentemente ilimitado, ele não é páreo para a sua determinação. Depois de uma curta batalha, você joga o monstro em um fosso de lava. Ele recebe o seu merecido, uma morte cruenta. Que não compensa, nunca compensará, todas as vidas perdidas pelos seus compatriotas. Mas agora, com a sua líder novamente livre, o reino pode ser reconstruído e a paz reinará outra vez.

Para quem ainda não percebeu, eu acabo de escrever de uma maneira estupidamente barroca e obtusa a história de Super Mario Bros. Se eu fosse um escritor melhor, o ponto que eu quero provar claro de saída, mas como não sou, preciso explicar, então aí vai…

Não posso argumentar sobre Inside porque não joguei. Mas joguei Journey, e que me desculpe o Bova, mas a história é rasa como um pires: fulano acorda no deserto e o atravessa para descobrir a si mesmo, chega ao seu destino e encontra o que procura. Sem contar o fato de que o jogo CONTINUA parando para cutscenes para explicar o que está acontecendo. Por pouco tempo, segundos por vez, mas pára…

Podemos acrescentar profundidade (ou pedanterismo, como eu fiz com SMB) ao plot de qualquer jogo para fazer com que ele tenha a história que queremos que ele tenha. Simples (“salvar a princesa”). Complexa (acrescentar motivações e sonhos a nossos personagens). Pedanterismo e obtusidade (por Deus, não). Mas isso não é o jogo, somos nós.

Nesse momento é quando os leitores estão me xingando. E não sem razão. Porque Journey é um jogo excelente, sem dúvida. Mas não passa uma história, pelo menos não uma história boa. Mas passa outras coisas. A jornada do personagem é a nossa jornada. O jogo nos traz sensações. Sentimentos.

Da mesma forma que um haiku de Bashō nos traz o sentimento do autor sobre o fim do inverno. Ou como os Cien Sonetos de Amor de Pablo Neruda passam o que o autor sente sobre sua musa. Ou como absorvemos o orgulho que Camões sente pelo povo português quando lemos os Lusíadas.

Em Journey, sentimos como o personagem que controlamos busca algo. Vemos como existem outros que buscam o mesmo que nós. Compartilhamos nossos medos, nossas esperanças com eles. Sofremos quando a nossa busca aparentemente chega ao fim, dizimados pelo frio, pela exaustão. Nos enche de júbilo ver como acontece uma reviravolta do destino e conseguimos finalmente chegar ao nosso objetivo.

Um jogo não é um conto, uma novela, um romance. E não pode ser. Mas pode muito bem ser um poema quando bem feito. E Journey é um grande poema. Escrito por outros, mas sentido por todos que o jogaram.